Análise literária dos livros "Ciranda de pedra", Lígia Fagundes Telles, e "Relato de um certo oriente", Mílton Hatoum.

Pinceladas de palavras. As imágens na literatura.

“O pintor contempla, o rosto ligeiramente voltado e a cabeça inclinada sobre o ombro. Fixa um ponto invisível, mas nós os espectadores podemos identificar-nos facilmente nele já que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos olhos. O pintor apenas dirige seu olhar a nós na medida em que nos encontramos no lugar do objeto”.

Michel Foucault. As palavras e as coisas.

Introdução

Segundo Virgínia Woolf, um escritor sempre haverá de perguntar-se como levar o sol à página, como conseguir que o leitor enxergue a lua, enquanto ela se eleva no horizonte, por meio de uma ou duas palavras. Quer dizer, haverá de perguntar-se como conseguir um efeito máximo por meio de recursos mínimos.

De acordo com a própria tradição, a faculdade perceptiva de uma obra de arte é a inteligência auxiliada pelos sentidos, ou vice-versa, os sentidos auxiliados pela inteligência, em ambos os casos há gozo na percepção porque a obra de arte apresenta-se como perfeita.

O artista literário não trabalha obsesso por produzir beleza, esta se apresenta quando o autor se preocupa por expressar, o mais intuitivamente possível, as imagens que selecionou para associá-las a determinados sentimentos. Quando isto é conseguido, o leitor sente agrado por estar reproduzindo ditas imagens e então percebe a obra como bela.

Então assim como a pintura vale-se de cores e a música de sons, a literatura recorre à linguagem verbal como meio para fazer intuitivas suas expressões.

De um modo geral, a linguagem é empregada como meio de conhecimento, quase sempre conceitual. A linguagem, que é o instrumento da literatura, e à que chamamos linguagem artística, caracteriza-se por três aspectos:

Primeiro: Não se interessa pelas idéias, mas por criar e evocar imagens.

Segundo: Maneja o significado dos termos com muita liberdade, empregando licencias e figuras que, pela mesma razão, se denominam figuras literárias.

Terceiro: um dos seus propósitos principais é o de atrair a atenção sobre a forma da mensagem, para o que utiliza artifícios (remitir-se a obras pictóricas, músicas, fotos, esculturas, paisagens, etc)

A linguagem humana está feita para ser veículo de idéias e imagens. Pela sua própria natureza entrega mensagens construídas com o sentido denotativo das palavras, mas admite a anexação de vários significados conotativos.

Por tudo o dito, é que duas imagens descritas por autores literários brasileiros nos levaram a investigar a relação que existe entre as imagens e as palavras.

Demonstração

As obras de arte, como todos os produtos da atividade humana, podem ser apreendidas colocando-nos desde diferentes pontos de vista ou considerando diferentes fatores, que tem a ver com a sua geração, com sua apreciação, e com a obra materializada.

Temos então vários olhares frente a qualquer obra de arte, música, literatura, pintura, cinema, etc. Um primeiro olhar é desde o artista, o olhar do criador frente ao que quer representar, isto inclui também um receptor pensado e pressuposto pelo autor, um sujeito que o autor localiza mentalmente numa posição definida respeito dos objetos que são representados; portanto o que deve ser analisado aqui, é o artista no seu contexto cultural, político, social, econômico e geográfico, assim como as influências que recebe, a evolução artística, as imagens e temas predominantes contemporâneos, a imaginação, as técnicas disponíveis e as técnicas selecionadas.

A seguir, e ficando no meio, está o objeto, o universo da matéria com suas formas, imagens, temas, técnicas, elementos de composição, ou seja, a aproximação iconológica, formal e semiótica.

Um segundo olhar é o do espectador, uma pessoa física, um receptor subjetivo e concreto. O espectador é o universo das respostas, com a contemplação, o gozo estético, a percepção, a subjetividade, os sentidos, a lembrança e a memória, a imaginação e a prefiguração, tudo o que conforma a aproximação estética e psicológica.

Ambos olhares (autor e receptor) confluem na tela, nas palavras, nos sons, e nos movimentos, objeto da análise.

Falamos acima de imagens de obras literárias a serem analisadas, e elas serão: a roda de anões de pedra, como escultura (Ciranda de pedra, Lígia Fagundes Telles) e a aquarela de Klee, do homem remando, como pintura (Relato de um certo oriente, Mílton Hatoum).

“Tem um caramanchão cheio de plantas e, perto do caramanchão, uma fonte no meio de uma roda de cinco anõenzinhos de pedra...” (pág. 20, Ciranda de pedra)

É assim como os autores começam mostrando-nos duas imagens simples: uma escultura e uma pintura que no primeiro momento apenas nos fazem ter uma imagem mental simples. Podem ser nada mais que uma lembrança do passado da jovem Virgínia, carregada de saudade de bons momentos da infância, ou apenas uma recordação perdida e achada num momento da dança da memória. Assim como o desenho que observa a personagem de Relato, nunca mais representado na obra senão no final.

“Ao observá-lo de perto, notei que as duas manchas de cores eram formadas por mil estrias, como minúsculos afluentes de duas faixas de água de distintos matizes; uma figura franzina, composta de poucos traços, remava numa canoa que bem podia estar dentro ou fora d'água. Incerto também parecia o seu rumo, porque nada no desenho dava sentido ao movimento da canoa. E o continente ou o horizonte pareciam estar fora do quadrado do papel [...] ao contemplá-lo, algo latejou na minha memória, algo que remete a uma viagem, a um salto que atravessa anos, décadas” (pág. 10-11, Relato de um certo oriente)

Esta anuência lingüística é a que permite ao autor literário fazer seus jogos expressivos, de maneira que o leitor evoque as imagens que finalmente farão surgirem nele os sentimentos pretendidos pelo autor, porque a obra literária não é simplesmente informativa, é expressiva e como a expressão integra-se com os elementos , um interno (imagens, representações) e outro externo (significantes lingüísticos). Pode se falar também de dois aspectos da forma correspondente às estruturações de tais elementos. O especial desta forma é a forte solidariedade entre seus elementos, a tal ponto que se, no aspecto lingüístico varia uma só palavra é destruída a intuitividade da passagem, incapacitando-a para evocar a imagem pretendida pelo autor com o correspondente efeito estético.

Vale a pena trazer aqui os dois princípios tradicionais da arte, que desde os tempos de Aristóteles até os séculos XV e XVI, sustentavam os criadores: Primeiro, na arte há regras às quais debe sujeitar-se o artista. Segundo, a arte debe imitar à natureza, para fazer, então, um breve histórico de como a escrita, seja ela prosa ou poesia, teve que desenvolver técnicas para reproduzir qualidades próprias dos quadros, qualidades que deviam predispor à “visibilidade” dos textos, ao mesmo tempo em que a pintura estava confinada às alegorias dos textos.

A importância da experiência visual, em relação à experiência que procede dos outros sentidos, já havia sido questionada na Antigüidade. Em Metafísica, Aristóteles (980 a.c.) afirma que a visão nos permite ter acesso a um maior conhecimento das diferencias entre as coisas. Durante o Renascimento, León Battista Alberti e Leonardo ressaltam o valor superior do olhar, dado que capta a imediates e a simultaneidade, características estas, da arte mais elevada, a pintura. No século XVII, o empirismo de John Locke preparou o terreno para as idéias expostas por Joseph Addison em “Sobre os prazeres da imaginação” (1712) sobre o papel privilegiado da visão para estimular a faculdade imaginativa. A divulgação dessas teorias provocou nos poetas uma associação previsível: a beleza está vinculada de maneira inerente à percepção visual. John Dryden escreveu no prefácio de sua tradução (1695) do tratado “De Arte Graphica” (1656) do pintor francês Charles Alphonse Du Fresnoy: A expressão e tudo o que é relativo às palavras é ao poema o que o colorido é para o quadro.

O escritor por meio de uma multidão de artifícios, sabe colocar um objeto isolado numa série de instantes, os quais aparecem `a visão do pintor de um modo diferente, e este tem que esperar até o último destes momentos para apresentar-nos como acabado aquilo que nós, lendo ao poeta, temos visto começar.

Por exemplo quando o poeta grego Homero quer mostrar-nos o carro de Juno, é necessário que Hebe o componha ante nossos olhos, peça por peça. Vemos as rodas, os eixos, o assento, a lança do carro, as correias e as cordas, nem tanto no conjunto que naturalmente formam, quanto do modo e a maneira como vão conformando uma unidade sob as mãos de Hebe. Só para descrever as rodas o poeta emprega mais de um traço: nos mostra os oito raios de cobre, a pina de ouro, os aros de bronze, o cubo de prata, cada coisa com todos os detalhes. Dir-se-ia que, como as rodas eram mais de uma, o tempo que havia de se empregar para descrevê-las devia ser proporcional ao tempo que se requeria para colocá-las.

“Um dia você também se vestirá como uma princesa e brincará de roda com os anõenzinhos (pág. 21, Ciranda de pedra)

“No extremo esquerdo do gramado, em meio da roda dos anões de pedra, jorrava a fonte (pág. 32, Ciranda de pedra)

“Aproximou-se dos anõenzinhos que dançavam numa roda tão natural e tão viva, que pareciam ter sido petrificados em plena ciranda. No centro, o filete débil da fonte a deslizar por entre as pedras. “quero entrar na roda também”- exclamou ela apertando as mãos entrelaçadas dos anões mais próximos. Desapontou-se com a resistência dos dedos de pedra. Não posso entrar? Não posso?(pág. 60, Ciranda de pedra)

A Ciranda de pedra do título é uma bela metáfora e refere-se a anõezinhos de jardim entrelaçados em ciranda, petrificados. A imagem é sutil por seu duplo sentido: representa as irmãs e os amigos, grupo em que a pequena não consegue entrar; no entanto, quando Virgínia vira mulher, pode-se perguntar então quem cresceu mais: ela ou os anões? A imagem permite questionar também se aquelas amizades aparentemente tão sólidas resistiram ao passar do tempo. Quem está petrificado não está morto?

“Agora a ciranda de anões mergulhava na escuridão. Ali estavam os cinco de mãos dadas: Conrado, Otávia, Bruna, Afonso, e Letícia”(pág.91, Ciranda de pedra)

“Virgínia sorria ainda num relaxamento doce. Sentia um gozo obscuro em ir passando de mão em mão. Afinal, a roda era pequena, logo chegaria a vez de Conrado “assim como chegou a da irmã”(pág. 115, Ciranda de pedra)

“A estranha ciranda. Eram solidários e no entanto se traiam. Eram amigos e contudo se detestavam”(pág. 119, Ciranda de pedra)

Em algumas obras as imagens evocam significados contraditórios, que oscilam entre dois pólos: o aparecer e o aparentar. Assim, as imagens resultam ambíguas e ambivalentes. São como metamodelos, pois representam dois rostros, um inteligível e o outro sensível.

Tanto as esculturas dos anões como a pintura na parede são utilizadas num primeiro momento pelo autor para dar apenas um marco à estória que ele narrará. Mais tarde, ao longo da obra se ocupará de enviar mensagens ligadas a essa primeira representação, de maneira que o leitor, lembrando-se sempre dessa figura inicial, irá acrescentando idéias e sentimentos para conformar o verdadeiro sentido que o escritor quis passar, os desejos, crises, desafios e realizações das personagens. É como o quadro pintando-se aos poucos, mas, com palavras e frases certeiras para não desviar-se do alvo final que é a proposta com que o autor está sendo guiado pela sua imaginação ou pela sua vontade.

“Os cinco_ pensou Virgínia encaminhando-se para a roda de pedra. Ali estavam os cinco de mãos dadas, cercando obstinados a fonte quase extinta. Achou-os mais reais, mais humanos, em meio da nevoa da manhã que lhes emprestava uma atmosfera de sonho. Em cada um deles como que havia um segredo, um mistério... “que sabe você de nós?”- Otávia perguntara. Virgínia acariciou a carapuça de uma das cabeças: “Nada” (pág. 145, Ciranda de pedra)

“Os semideuses eram apenas cinco criaturas dolorosamente humanas” (pág. 146, Ciranda de pedra)

Assim, finalmente concluído o relato, o leitor haverá de ter passado sem se dar conta por toda uma estória bem humana, mais sendo refletida em imagens estáticas como são uma escultura ou uma pintura. Haverá de perceber através de suas quietudes a imensidão de sensações, aquelas que a própria imagem nos transmite e algumas outras às que o leitor adicionará, fruto da sua própria experiencia de vida. Porque o artista projeta uma imagem que se constitui num símbolo especial. Um símbolo que não está em representação de outra coisa, que não se refere a algo que exista além dele. A função primordial deste símbolo é formular experiência e presentá-la objetivamente para a apreensão, a intuição, o reconhecimento. Este seria o ofício empregado por uma boa obra de arte. Quando assistimos à projeção de um filme, por exemplo, nos deixamos guiar por roteiros que a lente do criador nos mostra. Nos deixamos impregnar pela visualidade, pelo som das palavras no caso da poesia ou pela construção literária, e as imagens no caso das artes visuais. Numa palavra pelas formas em geral, e isso constitui a experiência estética. Haverá um segundo momento em que daremos liberdade a nossa discursividade, em que detectemos nossas identificações ou nossas críticas ou comparemos percepções, mas esse será um momento posterior. Nesse momento posterior é onde cabe a função estético-psicanalítica.

“Pensava (ao olhar para a imensidão do rio que traga a floresta) num navegante perdido em seus meandros, remando em busca de um afluente que o conduzisse ao leitor maior, ou ao vislumbre de algum porto. Senti-me como esse remador, sempre em movimento, mas perdido no movimento, aguilhoado pela tenacidade de querer escapar: movimento que conduz a outras águas ainda mais confusas, correndo por rumos incertos”(pág.165, Relato de um certo oriente)

É significativo que à personagem que fala no parágrafo acima, não lhe seja imediatamente possível identificar o autor do desenho, como é significativo que nele se represente, afinal, a sua própria figura de narradora, também composta de poucos traços, ou talvez de um só: a franzina remadora debatendo-se com uma das mais persistentes metáforas da passagem do tempo, o rio no fim do romance, as figuras do rio e do remador surgem em explícita conexão, já sem necessidade de referência ao desenho, quando descreve a dificuldade de ordenar o relato.

Da mesma maneira acontece com Virginia quando fala “Retirando a mão da água, mergulhou-a na relva. Não, não, tudo aquilo era já passado, chegara a hora de dizer-lhe adeus. O fluxo da vida, que corria como aquele rio, era tão belo, tão forte!”(Pág. 146, Ciranda de pedra)

O fluxo das aguas, o rio que corre, que passa, dá as duas estórias uma mesma imagen, um mesmo significado e um mesmo final: o passado que fica para atrás, um passo adiante no porvir, não é à-toa que já o filósofo grego Heráclito dissera "Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda diz de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio, que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente", semelhando-se assim uma mesma intenção dos dois autores.

Conclusão

A literatura e a arte são almas gêmeas. Uma é inspiradora da outra. Aliás, já sejam vistas juntas ou individualmente, a escrita e a arte podem dar às pessoas um forte sentido de satisfação estética.

Como já percebemos, a literatura é um ato constante de comunicação muito especial já que:

1. O autor/emissor, quando escreve , não pretende apenas informar ou alguma outra finalidade prática, senão que o faz simplesmente obedecendo seus próprios estímulos de artista.

2. O receptor/destinatário não é um leitor em especial, senão que são muitos, alguns inclusive não nasceram ainda; eles apenas poderão receber a mensagem sem que haja possibilidade de comunicação recíproca.

3. No que se refere à mensagem, o fato especial consiste em que o principal deste não é o conteúdo mas a forma. O leitor procurará nessa mensagem, não o que é dito mas como é dito, e ao encontrá-lo experimentará o prazer da estética.

Do expressado anteriormente desprende-se que a obra literária recria-se com cada novo leitor, porque este recebe a mensagem unicamente se for capaz de reproduzir as representações, por meio das quais reviverá os sentimentos que o autor pretendeu dar-lhes.

Da mesma forma, podemos concluir que se trata de um ato de comunicação criadora, desinteressado e destinado a produzir a emoção estética.

Portanto o escritor procura por meio das palavras fazer com que sintamos as mesmas impressões físicas que os objetos apresentados, e nessa ilusão/ficção nos tornamos conscientes para o relato cobrar vida dentro de nós.

Bibliografia

Hatoum, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo, Companhia das Letras. 1989.

Telles, Lygia Fagundes. Ciranda de pedra. 14 ed. Rio de Janeiro, J. Olykpio. 1982.

Angela Sánchez

Manilkara
Enviado por Manilkara em 03/11/2007
Reeditado em 13/11/2007
Código do texto: T722000
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