15.1- Estrutura do texto para Teatro

Uma vez que uma PEÇA DE TEATRO é uma narrativa,

tal como o ROMANCE ou o CONTO, terá que ter os mesmos elementos estruturantes de que falava Quintiliano, como vimos no capítulo 1:

o quê

quem

como

quando

onde

porquê

Mas como agora estamos perante um tipo de narrativa muito especial, a maneira de apresentar esses elementos vai ser diferente.

Primeiro que tudo, temos que considerar que para haver Teatro, tanto o Autor, como os Artistas, como os Espectadores – TODOS partimos de um COMPROMISSO, ou CONVENÇÃO:

Aceitamos a ILUSÃO de que estamos a VER um acontecimento real, que se desenrola ali, naquele preciso momento, na nossa frente!

É como se, de cada vez que uma PEÇA é REPRESENTADA, a ACÇÃO estivesse sempre ali, PRESENTE, a REPETIR-SE PARA NÓS!

***

Então, como é que se nos apresenta o texto para Teatro?

=ACÇÃO – que neste caso costuma designar-se como TRAMA, ou ENREDO, é fornecida apenas através dos DIÁLOGOS entre as personagens – exprimindo os seus sonhos, devaneios, acordos, divergências, conflitos...

= PERSONAGENS – em Teatro, são-nos apresentadas através do desempenho dos ACTORES

= LOCAL – é o PALCO, com o CENÁRIO – ou CENÁRIOS.

= TEMPO – ou ÉPOCA: é sugerido pelo estilo do VESTUÁRIO, o estilo do PENTEADO e da MAQUILHAGEM, o estilo do MOBILIÁRIO, algumas especificidades do próprio VOCABULÁRIO, as fórmulas de tratamento...

O MOMENTO ou HORA do DIA ou da NOITE é sugerido pela ILUMINAÇÃO...

***

Como se estrutura – ou organiza – o TEXTO para uma peça de Teatro

Em primeiro lugar, temos que ter presente que o TEXTO para TEATRO se destina a ser TODO MEMORIZADO pelos ACTORES!

No capítulo anterior, falámos de Bernardo Santareno.

Vamos continuar a apoiar-nos nos seus textos:

Os TEMAS do Teatro de Bernardo Santareno incidem no choque entre os DIFERENTES e os “normais”...

Não esqueceremos que Bernardo Santareno era médico psiquiatra. É mais que natural que se interessasse pelos problemas provocados pelas “DIFERENÇAS”

= a homossexualidade – numa época em que era vista como escandalosa e pecaminosa,

= o misticismo, quando confundido com histeria,

= a diferença religiosa,

= o sentimento de revolta e as suas raízes profundas...

Sempre o “indivíduo” – face à força e poder ou preconceito do “colectivo”, e do Poder Político...

No capítulo anterior, falámos da peça “O LUGRE”:

Em O LUGRE, há o Comandante do navio, o Contra-Mestre, e os PESCADORES.

O Comandante representa a ordem: a Lei;

O Contra-Mestre é o seu auxiliar;

E há os Pescadores, com os seus problemas pessoais e familiares, as suas dificuldades económicas, e os conflitos entre eles. Há os Pescadores submissos, há os que se revoltam contra as dificuldades da profissão mal paga, e as dificuldades da vida a bordo, com má alimentação. Alguns são submissos, outros vivem agitados e revoltados. E há um que viveu a tragédia de um naufrágio, e ficou com medo do mar... Esse trauma provoca-lhe um comportamento estranho, que a maioria dos colegas não pode compreender... e que desencadeia o desfecho.

Hoje, vamos debruçar-nos sobre uma pequena peça: “IRMÃ NATIVIDADE”.

Porquê esta peça?

Por duas razões muito práticas:

= Primeiramente, porque esta peça é muito pequena e, assim, torna-se fácil transcrever para aqui algumas passagens que nos vão servir de “exemplos” a ilustrar o que precisamos de explicar.

= Em segundo lugar, porque corresponde ao apontamento com que terminámos o capítulo anterior, quando falámos das “operações” cognitivas que se dão no nosso cérebro, o nosso “computador portátil”. Aí, dissemos que o nosso cérebro opera de várias formas:

= lê o ambiente

= pensa, e sente

= sente, e pensa

= observa

= analisa

= interpreta

= resume

= condensa

= recorda

= sintetiza

= compara

= explica

= aprecia

= critica

= conclui

E

= de repente, SINTETIZA todas essas operações e TUDO quanto EXPERIENCIOU e SABE,

e LEVANTA VOO...

...e CRIA.

... ...E depois:

auto-avalia, auto-critica,

e

REFORMULA ou CORRIGE o que for preciso!

Ora bem:

Esta pequena peça, em apenas 1 ACTO, certamente terá deixado o seu Autor algo insatisfeito...

Assim, foi mais tarde reformulada – e aumentada! O Autor desenvolveu o ENREDO e alterou o título:

Deste modo, aumentou o texto, passando a ACÇÃO a desenrolar-se em 3 ACTOS e um EPÍLOGO; e a peça passou a ser intitulada “A Excomungada”.

Quer dizer: o Autor AUTO-AVALIOU ou auto-criticou este texto, e depois REFORMULOU-o!

Então, conforme já sabemos:

= O ENREDO ou ACÇÃO desenvolve-se num TEMPO e num ESPAÇO;

= Quando é preciso mudar o TEMPO, ou passar a Acção para outro ESPAÇO:

Muda-se de ACTO

Vamos então passar a transcrever o início, para se entender isto muito bem:

A abrir o seu texto, o Autor indica quais vão ser as PERSONAGENS, onde vai ser o LOCAL DA ACÇÃO e a ÉPOCA:

PERSONAGENS:

Ao enumerar as PERSONAGENS, o Autor informa-nos como deseja a CARACTERIZAÇÃO dos Actores;

= para que os Actores saibam dar às suas expressões, a intenção que o Autor imaginou:

IRMÃ NATIVIDADE – Vinte anos ansiosos, vibrantes, fisicamente tensos, cheios de seiva. Sensível a todas as brisas. Força, violência. Morena, olhos negros iluminados, boca carnuda.

MADRE PRIORESA – Setenta anos, ligeira obesidade: natureza bondosa, certa, por vezes simpaticamente rude, ainda misturada com o sol dos campos onde nasceu. No sobrenatural, caminhou degrau a degrau: hierarquia, ordem, equilíbrio, estabilidade. Mãe: sempre mãe segura e justa. Sensível, afectiva, impetuosa: tudo harmonizado na graça de Deus.):

IRMÃ TRINDADE – Quarenta anos, magra, alta: violência ardente nos olhos, no fundo dos quais, através duma cortina de neve, as chamas ardem alto. Um todo de dureza conquistada, luminosa. Linguagem quase sempre em afirmativas incisivas, breves: vontade que mede, que coa tudo. Distinção, nobreza marmórea, realçadas pela presença das outras religiosas. Quando sobe o pano, lava as mãos da Madre-Prioresa, servindo-se de uma pequena bacia.

IRMÃ ANGÉLICA – Vinte anos puríssimos, fé simples tão natural como respirar, toda impregnada da Graça de Deus, alegria infantil.

Outras religiosas da Comunidade

Época:

ACTUALIDADE

Em seguida, o Autor DESCREVE o CENÁRIO:

““O quarto ou cela da Madre-Prioresa, num convento-clausura de freiras contemplativas. Paredes e tecto brancos, caiados. Sobrado de tábuas muito limpas, sem tapetes.

Na parede do fundo, um Cristo crucificado, de marfim, com cruz de madeira negra. À esquerda, central, uma porta.

Uma cama de ferro, muito pobre, com coberturas brancas.

Mesa de cabeceira, na qual se vêem vários frascos de medicamentos.

Uma estante-prateleira, cheia de livros, na parede da direita, por cima da cabeceira da cama (esta vista de perfil pelo espectador).

Numa mesa, ao fundo, vários livros e uma jarra com rosas brancas.

No ângulo fundo-direita, um pequeno armário de pinho pintado, como a mesa.

Em local adequado, uma cortina esconde um lavatório.

Ao subir o pano, a Madre-Prioresa está metida na cama, meio sentada, recostada sobre várias almofadas.

Hábitos brancos.””

Novamente, PERGUNTAREMOS: Para quê tanta informação?

Muito simples:

Estas informações dirigem-se aos intervenientes na produção: ENCENADOR, CENÓGRAFO, ACTORES... Informam como o Autor idealizou o ambiente onde todo o drama irá decorrer.

Aqui, vemos que TODO o drama (ou ENREDO, ou ACÇÃO) se vai desenrolar na cela da Madre Superiora de um convento.

Ora bem:

A Madre Superiora é idosa, e doente, e está deitada na sua cama.

Está a conversar com uma freira.

É a CENA 1.

Quando esta freira sair e a Madre ficar sozinha: teremos a CENA 2.

Quando entrar uma outra Freira, teremos a CENA 3.

E assim por diante.

Isto quer dizer:

Há mudança de CENA quando há alteração do número de PERSONAGENS no PALCO:

= Perguntaremos:

Para que é preciso indicar esta mudança de CENAS?

Muito simples:

Para que o ENCENADOR e os ACTORES possam identificar o que estão a ensaiar! Ou qual o material de que precisam:

Por exemplo:

Para que o ENCENADOR possa dizer ao Carpinteiro:

– Preciso da mesa pintada de branco para a Cena 1!

Ou então, um dos actores diz ao Colega:

– Podes repetir comigo o diálogo da Cena 4?

Vamos regressar ao texto:

Agora, a escrita do texto teatral é muito simples: É sempre em DIÁLOGOS.

Vejamos, pois, a CENA 1, não esquecendo que as informações que eu transcrevo em letras maiúsculas, deveriam ser em ITÁLICO, e que não se destinam a ser faladas!

IRMÃ TRINDADE –

Não está muito quente a água, pois não, Madre?

MADRE –

Está bem, Irmã Trindade, está bem... Deus lhe pague!

(A IRMÃ TRINDADE VAI COLOCAR A BACIA NO LAVATÓRIO. VOLTA COM UMA TOALHA E PROCURA ENXUGAR AS MÃOS DA MADRE.)

Ai, Irmã! Que dor! Perdoe... mas realmente hoje sofro tanto! Ao mais pequeno movimento... Ai! Ao mais pequeno... Assim... Agora estou melhor... muito melhor!

(MUDANDO:)

Está tudo pronto para a Missa da meia-noite?

IRMÃ TRINDADE –

Tudo como indicou, Madre-Prioresa.

(VAI PÔR A TOALHA NO LAVATÓRIO.)

MADRE –

(SORRISO BOM, INFANTIL.)

Ainda bem, ainda bem...

Bem, voltemos à peça:

A Madre e a Irmã TRINDADE conversam:

A Madre está queixosa, cheia de dores.

Mas ambas estão preocupadas com uma freira jovem, a IRMÃ NATIVIDADE, que tem um comportamento arrebatado, que ouve vozes – coisas que a Irmã TRINDADE não compreende...

É esse detalhe, “ouvir vozes”, que vai dar origem ao CONFLITO, ao DRAMA desta peça.

Para concluir, resta-nos acrescentar que todas as instruções que o Autor dá a todos os intervenientes numa representação - desde o Encenador aos Actores, e que em geral são escritas ENTRE PARÊNTESIS e em ITÁLICO, se designam por DIDASCÁLIAs.

Por fim, penso que dentro das possibilidades, dei uma ideia de como escrever um TEXTO para TEATRO.

Myriam

Fevereiro de 2021

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 14/02/2021
Reeditado em 22/05/2022
Código do texto: T7183949
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