11- Elementos da Narrativa – INTRODUÇÃO e CONCLUSÃO; Narrativa aberta e Narrativa fechada
1) - Recordemos o que foi dito no capítulo 8:
Para além das 5 questões de Quintiliano, também se costuma ensinar que um texto “correcto” deve ser formado por três partes:
INTRODUÇÃO,
DESENVOLVIMENTO,
CONCLUSÃO.
Nesse capítulo 8, também fizemos notar que essas 'três partes' serão muito importantes, quando tivermos que apresentar um texto de CARÁCTER CIENTÍFICO...
...Mas que, ao contarmos uma história, esta deverá ser contada segundo a Arte de cada autor!
2) - Vamos agora observar o breve conto que figura no capítulo 10:
MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA
Eu nasci ainda a Segunda Guerra Mundial se encontrava no seu auge. Claro, não me lembro de nada disso. Mas recordo muito bem o que os meus Pais costumavam contar... Havia escassez de alimentos, escassez de pão... Para que as pessoas não se atropelassem nas lojas, havia senhas para só se poder adquirir quantidades mínimas de cada produto... Era o racionamento...
Corria o Verão de 1951... Eu teria uns 7 anos... Lembro-me que andava muito feliz. Sentia-me muito importante pois tinha passado da 1ª para a 2ª classe.
Uma prima do meu Pai veio passar alguns dias de férias em nossa casa. Ela era professora primária, solteira. Teria uns 40 anos... Mas não vinha sozinha.
Não sei bem como foi... Sei que, talvez a meio ou no final da Guerra, a Cruz Vermelha Internacional tinha recolhido crianças que tinham ficado órfãs e vagueavam sozinhas e desamparadas pelas ruas das cidades destruídas, por essa Europa fora... A Prima Celeste tinha recolhido uma dessas crianças... Era uma menina austríaca, mais velhinha do que eu... Lembro-me dela... Crescidinha, talvez uns onze ou doze anos... Usava os cabelos compridos até aos ombros, e prendia-os do lado direito com um estreito laço...
Era muito calada... com o seu olhar muito sombrio, nunca sorria...
Ela já falava algumas frases em Português, pois já se encontrava em Portugal havia bastante tempo, e a Prima Celeste levava-a com ela, para as suas aulas...
Lembro-me que ela vestia uns vestidos desengraçados, alguns já lhe ficavam curtos... A Prima Celeste foi na verdade muito bondosa, mas não tinha gosto com a Inger, tratava-a com bastante indiferença... Muito triste...
Eu era muito pequena, mas como me tinham explicado a razão da sua presença entre nós, eu pensava – “Esta menina não fala comigo porque vive mergulhada em pensamentos muito tristes...”
Como não havia camas bastantes para tanta gente, puseram a Inger a dormir na minha cama... Certa noite, acordei... acordei com um abraço... A Inger tinha passado um braço sobre os meus ombros, e percebi que chorava... Apertei-lhe as mãos contra o meu pequeno coração... E foi então que ela falou... Lembro-me como se fosse hoje. No meio da noite, alguma luz entrando pela vidraça da janela... E ela, num Português mal amanhado, mas eu percebi tudo:
– Quando vejo Vocês todos a conversar... Lembro-me meus Pais... A Mãe era muito bonita... como a tua... Mais bonita! Minha Mãe tocava violino... Eu estou sempre a ouvir o violino... Vocês estão à mesa, e eu estou na minha casa, a minha Mãe, a minha Avó, o meu Pai... O rádio, as notícias... Os aviões... Muito barulho, muitas bombas... Um dia, fui à loja, comprar pão... Quando voltei... já não estava lá nada...
Depois, sacudiu-me, e perguntou muito angustiada:
– Percebes o que eu disse?
E eu respondi, chorando como ela:
– Sim, percebi tudo... Mas eu sou tua amiga...
1º:
Eu podia ter começado este conto, logo no 2º parágrafo, onde diz:
“Corria o Verão de 1951... Eu teria uns 7 anos... Lembro-me que andava muito feliz. Sentia-me muito importante pois tinha passado da 1ª para a 2ª classe.
Uma prima do meu Pai” ... ... ... ...
...(etc)...
Talvez até que toda a SEQUÊNCIA que se DESENVOLVE a seguir a estas frases, ficasse mais enigmática... e por isso, mais atraente...
Mas para quem nasceu recentemente, que memórias poderá ter que lhe permitam entender o PORQUÊ do episódio aqui narrado?!
Então, como AUTORA, preferi dar um APOIO INFORMATIVO que permita aos leitores mais jovens, ou mais distraídos, ou pouco interessados na História do Século XX, que funcione como uma EXPLICAÇÃO prévia que lhes permita ENQUADRAR a ACÇÃO deste conto no seu CONTEXTO histórico:
“Eu nasci ainda a Segunda Guerra Mundial se encontrava no seu auge. Claro, não me lembro de nada disso. Mas recordo muito bem o que os meus Pais costumavam contar... Havia escassez de alimentos, escassez de pão... Para que as pessoas não se atropelassem nas lojas, havia senhas para só se poder adquirir quantidades mínimas de cada produto... Era o racionamento...”
Esta EXPLICAÇÃO prévia, este APOIO informativo – constitui a parte da NARRATIVA que se designa como INTRODUÇÃO.
2º:
Agora, faço a seguinte pergunta:
Se lermos o conto até ao fim, até à última frase, ficaremos a saber COMO TERMINOU a história? Perguntaremos:
As duas meninas ficaram amigas?
A Inger pouco falava de Português: Como é que se entendiam?
Elas conversavam muito? Ou preferiam brincar com bonecas, “às mães e às filhas”, conforme se dizia antigamente?
Ou preferiam ir brincar às corridas, no quintal?
A narrativa não nos dá essa informação...
Diremos que esta narrativa NÃO tem CONCLUSÃO...
Vai ser o LEITOR quem vai ficar a IMAGINAR como foi que terminou este episódio da infância da Autora...
Por outras palavras:
Diremos que este conto não ficou FECHADO por uma ‘conclusão’...
3ª:
Falta fazermos uma experiência:
...Então... e se colocássemos o 1º parágrafo... no fim do conto? Claro, teremos que lhe dar um pequeno arranjo, enquadrá-lo na sua nova colocação, para que toda a narrativa forme um todo harmonioso:
MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA
Corria o Verão de 1951... Eu teria uns 7 anos... Lembro-me que andava muito feliz. Sentia-me muito importante pois tinha passado da 1ª para a 2ª classe.
Uma prima do meu Pai veio passar alguns dias de férias em nossa casa. Ela era professora primária, solteira. Teria uns 40 anos... Mas não vinha sozinha.
Não sei bem como foi... Sei que, talvez a meio ou no final da Guerra, a Cruz Vermelha Internacional tinha recolhido crianças que tinham ficado órfãs e vagueavam sozinhas e desamparadas pelas ruas das cidades destruídas, por essa Europa fora... A Prima Celeste tinha recolhido uma dessas crianças... Era uma menina austríaca, mais velhinha do que eu... Lembro-me dela... Crescidinha, talvez uns onze ou doze anos... Usava os cabelos compridos até aos ombros, e prendia-os do lado direito com um estreito laço...
Era muito calada... com o seu olhar muito sombrio, nunca sorria...
Ela já falava algumas frases em Português, pois já se encontrava em Portugal havia bastante tempo, e a Prima Celeste levava-a com ela, para as suas aulas...
Lembro-me que ela vestia uns vestidos desengraçados, alguns já lhe ficavam curtos... A Prima Celeste foi na verdade muito bondosa, mas não tinha gosto com a Inger, tratava-a com bastante indiferença... Muito triste...
Eu era muito pequena, mas como me tinham explicado a razão da sua presença entre nós, eu pensava – “Esta menina não fala comigo porque vive mergulhada em pensamentos muito tristes...”
Como não havia camas bastantes para tanta gente, puseram a Inger a dormir na minha cama... Certa noite, acordei... acordei com um abraço... A Inger tinha passado um braço sobre os meus ombros, e percebi que chorava... Apertei-lhe as mãos contra o meu pequeno coração... E foi então que ela falou... Lembro-me como se fosse hoje. No meio da noite, alguma luz entrando pela vidraça da janela... E ela, num Português mal amanhado, mas eu percebi tudo:
– Quando vejo Vocês todos a conversar... Lembro-me meus Pais... A Mãe era muito bonita... como a tua... Mais bonita! Minha Mãe tocava violino... Eu estou sempre a ouvir o violino... Vocês estão à mesa, e eu estou na minha casa, a minha Mãe, a minha Avó, o meu Pai... O rádio, as notícias... Os aviões... Muito barulho, muitas bombas... Um dia, fui à loja, comprar pão... Quando voltei... já não estava lá nada...
Depois, sacudiu-me, e perguntou muito angustiada:
– Percebes o que eu disse?
E eu respondi, chorando como ela:
– Sim, percebi tudo... Mas eu sou tua amiga...
Como se vê, eu nasci ainda a Segunda Guerra Mundial se encontrava no seu auge. Claro, não me lembro de nada disso. Mas recordo muito bem o que os meus Pais costumavam contar... Havia escassez de alimentos, escassez de pão... Para que as pessoas não se atropelassem nas lojas, havia senhas para só se poder adquirir quantidades mínimas de cada produto... Era o racionamento...
A Segunda Guerra Mundial, tal como todas as guerras, deixou o seu rasto de devastação que durou por muito tempo. Este episódio - que muito me marcou para toda a vida - mostra que uns seis anos após o términos da Guerra, ainda havia crianças deslocadas, que ainda não tinham regressado ao que restasse das suas famílias nos seus países de origem...
4º:
Podemos concluir que a ARTE da narrativa está em saber manusear, e dosear, estes “recusros estéticos”...
Diz-se que uma narrativa SEM a CONCLUSÃO expressa, é uma NARRATIVA ABERTA – aberta à imaginação do Leitor;
E que:
Uma narrativa com a CONCLUSÃO bem definida, é uma NARRATIVA FECHADA.
Esta minha história, na versão do capítulo 10, era uma NARRATIVA ABERTA;
Agora, que lhe demos uma CONCLUSÃO bem definida, ficou uma NARRATIVA FECHADA, mostrando claramente qual o objectivo da Autora ao escrevê-la.
Claro, cada Autor, ao desenvolver a sua história, optará pelo processo que lhe permitirá dar maior ênfase, maior impacto, ao seu trabalho.
Pois ESCREVER não é propriamente um divertimento de horas vagas.
ESCREVER, como fizeram - e continuam a fazer - os grandes nomes da Literatura universal, é uma MISSÃO de interesse para toda a SOCIEDADE! Veremos isso na continuação destas breves noções de Teoria Literária:
Há escritores que através da sua ARTE DE CONTAR chamaram a atenção do grande público para problemas candentes da Sociedade. Muitos escritores têm contribuído para alertar a opinião pública para problemas cruciais que era urgente resolver:
Muitíssimos ESCRITORES usam a sua Arte para alertarem o grande público para a gravidade dos problemas que subjugam as classes sociais subalternizadas, ou os povos desfavorecidos ou explorados.
Há grandes exemplos deste valor da Literatura, que o mesmo é dizer, grandes exemplos de como a Leitura tem sido necessária e útil para o Progresso das mentalidades e dos costumes!
Limitar-me-ei apenas a alguns exemplos:
CHARLES DICKENS (1812-1879), autor de “Oliver Twist” – obra de 1837;
ÉMILE ZOLA (1840-1902), autor de “Germinal” – obra de 1885;
JOSEPH CONRAD (1857-1924), autor de “O Coração das Trevas”, obra de 1899;
BORIS PASTERNACK (1890-1960), autor de “O Doutor Jivago”, obra de 1957;
JAMES BALDWIN (1924-1969), autor de “Se esta rua falasse”, obra de 1974;
ANTÓNIO LOBO ANTUNES (1942), autor de “O Esplendor de Portugal”, obra de 1997;
SUSANNA TAMARO (1957), autora de “Para Sempre”, obra de 2011…
Anteriormente, já nos referimos a outros grandes nomes da Lituratura Universal, como LEON TOLSTOI, EÇA DE QUEIRÓS, MACHADO DE ASSIS, ou JORGE AMADO.
Com as suas narrativas, tão empolgantes, tão bem arquitectadas, os grandes escritores proporcionam-nos horas de deleite intelectual, horas de fantasia – mas igualmente fazem-nos reflectir sobre as realidades da Vida humana, da Sociedade, da Natureza – quer do Passado, contribuindo para o ‘esclarecer’, quer do Presente, para melhor o compreendermos!
As histórias desenvolvem a nossa capacidade de observação e aguçam o nosso espírito crítico, pois tocam a nossa imaginação, e sublimam a nossa sensibilidade. As histórias que estes grandes escritores nos contam, marcam etapas visíveis na evolução da consciência crítica das sociedades das suas respectivas épocas.
Pois é mais atraente falar da Vida através de “histórias”, do que através de “tratados” . Uma verdade que como também já vimos, já era constatada nos antiquíssimos tempos das narrativas orais, em volta da fogueira comunitária!
© Myriam Jubilot de Carvalho
2020