O REGIONAL SE FAZ GRANDE QUANDO SE TORNA UNIVERSAL - LITERATURA ANGOLA

Ao ler Luuanda, de José Luandino Vieira, é certo que se vê, se percebe e se sabe que África, que Angola, que Luanda está presente no texto. O cerne, o âmago, a raiz de um povo e até mesmo a terra que o povo angolano pisa, com seu cheiro, sua cor, suas muitas sementes, estão lá, colocados propositalmente e artisticamente pelo autor. A língua é portuguesa, mas a fala e o sentimento que a produz são angolanos. É por isso que em A Kinda e a misanga somos alertados de que “embora escritos em português, essas expressões e vocábulos se identificam algumas vezes com a língua do colonizador apenas quanto ao significante, uma vez que, quanto ao significado, se identificam mesmo é com o universo semântico do colonizado, o que obriga o leitor interessado a um conhecimento mais profundo da realidade angolana, para poder melhor penetrar no sentido dos seus textos” (p. 38). Sim, para melhor penetrar no sentido dos textos de Luandino Vieira é recomendável que se conheça a realidade angolana, mas para sentir a beleza e a profundidade artística desses textos basta apenas que se conheça a realidade humana.

Toda nação tem suas lendas, seus cenários, seus eventos históricos mais marcantes; todas têm símbolos e rituais que as singularizam porque representam as experiências, as vitórias e as perdas que dão o sentido e a unidade que tornam aquele território uma nação. Em geral, podemos encontrar todos esses elementos nas obras dos grandes escritores de cada nação, e é exatamente isso que encontramos no Luandino Vieira que vemos em Luuanda. O ambiente dos contos é a cidade de Luanda, nos bairros próximos aos musseques, mas tudo o que ocorre nos musseques acontece também no mundo todo e o que ocorre com os personagens criados por Luandino, ocorre também com homens de todas as cidades. A cidade de Luanda é uma metonímia de todas as cidades do mundo.

Mas é preciso deixar bem claro que esse paralelo, embora verdadeiro, não diminui em nada a particularidade, a individualidade e a importância de Luanda, de Angola e do povo angolano, e não diminui em nada o fato de que Luandino Vieira é um grande escritor, com um estilo próprio, original e fascinante que o torna um digno representante e voz de seu povo. Da mesma forma que o sertão de Minas Gerais tem suas individualidades e características próprias que fazem com que não possa ser generalizado como sendo uma parte qualquer e aleatória do mundo e que Guimarães Rosa não é menos regionalista por ter sido universal, os musseques, com suas características próprias e únicas, não são qualquer parte aleatória do mundo, seus habitantes não são genericamente quaisquer pessoas de qualquer lugar do mundo e Luandino Vieira não é menos regionalista por ser universal.

Por mais que possa parecer contraditório, o fato é que o que torna grandes os escritores como Guimarães Rosa e Luandino Vieira é que escrevem o universal descrevendo o seu lugar e o seu povo. É comum aos grandes escritores que de forma única, com sua visão particular e sua criatividade, tornem geral o particular. Eles são capazes de pluralizar o significado das palavras e do próprio texto, de construir e inverter significados, de criar novas palavras e novas formas de usar as palavras; eles têm o poder de ambientar as ações em um lugar específico e de transformar esse lugar específico no mundo inteiro; eles podem povoar esse ambiente único com personagens que, em sua humanidade universal e individualidade específica, representam uma nação, dão voz a um povo e, ao mesmo tempo, se identificam com muitos povos e com muitas individualidades. Esse poder de retratar a individualidade de um lugar e de um povo e de, ao mesmo tempo, fazer uma literatura universal é o que faz um grande escritor. E Luandino Vieira tem esse poder.

Para falar em identidade nacional é preciso compreender o processo de formação da identidade cultural de uma nação; é uma constante histórica que essa identidade se faça através de um processo de interação entre povos diferentes. Foi dessa forma que se criaram as nações europeias, foi assim que se criou Portugal, parte de um território dominado pelos romanos, que deles herdou a língua e que, com os anos e as muitas influências nem sempre pacíficas, tornou sua a língua herdada, criou sua própria língua e sua própria identidade. Portugal, agora uma nação, de território dominado passou a dominador e a história se repetiu, assim se formou também o que hoje é a nação brasileira e a língua portuguesa que aqui falamos.

No caso dos países africanos que foram colonizados pelos portugueses essa interação se deu pela dominação ainda mais violenta e a libertação desse domínio é mais recente e talvez ainda não se tenha concretizado totalmente. Em todas as relações de dominação de um povo por outro, o resultado costuma ser a adoção da língua do dominador pelo dominado, esse processo, no entanto, não se dá de forma pacífica. Angola é um exemplo e Luandino Vieira descreve esse encontro entre diferentes em Luuanda, com o destaque e a ênfase na “apropriação indevida” da língua portuguesa como forma de resistência e como recurso para manter a própria identidade: “E, dessa forma, pelo diálogo, o “fio da vida” pode ser restabelecido, mesmo com uma parte “podre”. Tudo pela via interna da seiva angolana” (A Kinda e a misanga p. 31).

Cada nação tem seu próprio modo de construir sentido, por conta disso, através de suas experiências e de seu entorno, cada povo é capaz de influenciar e reorganizar a estrutura da língua que usa, inserindo nela tanto as ações quanto a concepção que esse povo tem de si. Luandino Vieira em sua escrita particular, com seu “falar” específico e diferenciado que dá voz e expressão aos habitantes dos musseques, domina a fala do colonizador. Através dele, ao modificar e ampliar a forma e os sentidos do vocabulário e da língua que lhe foi imposta, o colonizado simbolicamente toma posse do colonizador: “Tudo nessa imagem resiste, desde as raízes do cajueiro (o apego à origem, à terra) até as castanhas (o verdadeiro fruto, que é semente e reproduz a estrutura da árvore)” (A Kinda e a misanga p.32).

No início do trecho do conto Estória do ladrão e do papagaio, que foi denominado por muitos como A Metáfora do Cajueiro, podemos ler Angola e o povo angolano, sua história de dominação e sua resistência, mas podemos ler também o surgimento e o crescimento de um povo, de uma nação, de uma cultura, e podemos ainda, ler o surgimento e o desenvolvimento de nossa própria vida. Dessa forma cada leitor, ciente ou não da história de Angola, conhecedor ou não da vida e do povo angolano, pode se identificar, como nação, como povo e mesmo como indivíduo, com esse cajueiro metaforizado: “É assim como um cajueiro, um pau velho e bom, quando dá sombra e cajus inchados de sumo e os troncos grossos, tortos, recurvados, misturam-se, crescem uns para cima dos outros, nascem-lhes filhotes mais novos, estes fabricam uma teia de aranha em cima dos mais grossos e aí é que as folhas, largas e verdes, ficam depois colocadas”.

Mais adiante, quando Xico Futa “que traz as marcas do autor implícito” (A Kinda e a misanga p. 30) relaciona as inúmeras tentativas de destruição do cajueiro: “Fiquem malucos, chamem o trator ou arranjem as catanas, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos”, podemos ver em cada uma dessas tentativas, as ações de Portugal sobre Angola, mas podemos também ver as ações de qualquer dominador sobre o homem e a cultura de qualquer povo. Podemos ver Angola, podemos ver Luanda, mas também podemos ver todos os povos que um dia foram dominados, todas as culturas que foram pisadas; e podemos ver ainda a própria raça humana e a nós mesmos e nossas próprias vidas, tão e tantas vezes abaladas pelos sofrimentos, perdas e desventuras que formam o rosário da existência de quase todos os seres humanos e da própria humanidade como um todo. Por isso, mais uma vez nos identificamos como povo e como indivíduos, independentemente de conhecer a nação, a cidade e o povo de que fala Luandino Vieira.

E quando, depois de enumerar todos os esforços para a destruição, Xico Futa vai mostrando onde ainda se encontra o cajueiro para concluir que "o fio da vida não foi partido", o leitor que se interessar e que buscar as informações, ou aquele que já conhece Angola e sua história, poderá relacionar esse fio da vida à cultura e à resistência do povo angolano porque, em conhecendo, o leitor saberá que Luandino não escolheu o cajueiro aleatoriamente, saberá que não se trata apenas de uma árvore qualquer, mas de uma árvore de importância nacional, saberá que o cajueiro é o símbolo da MPLA (Movimento pela Libertação de Angola). Mas, se não souber de nada disso, ainda assim o leitor se identificará pensando na história de sua própria cultura, de seu próprio país, pensando em sua própria vida, ou ainda na VIDA assim, com maiúscula, a Vida ela mesma, que surgiu não se sabe como nesse planeta azul e que resiste tanto e há tanto tempo sem que se saiba como nem por quê.

De qualquer forma que se leia e que se pense, o fato é que todo leitor sensível perceberá beleza, perceberá poesia e perceberá grandeza nessa narrativa e, consequentemente nesse artista capaz de captar dessa forma o mais profundo e universal regionalismo que se entranha na alma de cada um de nós e que se expõe através do texto, esse outro fio de vida que se desenrola e não se perde mas que precisa começar em algum lugar: “É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas.”

Assim disse Xico Futa.

Divina de Jesus Scarpim
Enviado por Divina de Jesus Scarpim em 10/11/2020
Reeditado em 30/01/2021
Código do texto: T7108714
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