Nos Lábios de Iracema

A Literatura não se encerra em si mesma, talvez falte esse entendimento sobre nossa literatura, talvez por isso estejamos a olvidar o nosso imaginário, nossos mitos, nossos escritores, deixando um espaço aberto para questões que vão além dos braços da arte. Em vez de buscar o que é recorrente, as influências externas, haveria uma estética comum, qual a importância de nossa Literatura para refletir nosso passado, entender nosso presente e buscar nosso futuro?

O objetivo desse texto é trazer um pouco do imaginário da Literatura Brasileira em seus aspectos tropológicos, linguísticos e morais, deixaremos de lado a Literatura Portuguesa, ficaremos em débito, claro, mas é com eles que ficará a outra perna do Saci, pequenos pulos, cheios de fantasia, influências e rupturas esse será nosso itinerário. Essa revisão critica é importante, sobretudo quando surgem movimentos de revalorização da cultura com critérios que estão além da arte, como se a análise estética de uma pintura, agora, não mais estivesse na pintura e sim na água que o artista usou para lavar o pincel: era pura, era benta, era suja?

Como dito acima, a arte não se encerra em si mesma, porém não pode ter condicionantes estéticos, ou morais, que estão além de si. A Literatura traz um imaginário com mitos, lendas, alegorias que ressoam em todas as épocas, mas também questões e preconceitos restritos a uma determinada época, não cabe ignorar, ou, até mesmo censurar, julgar com o olhar do politicamento correto, afinal tolerar os erros de nossos antepassados é um exercício de maturidade importante.

Não é possível falar de Literatura brasileira ignorando o período de colônia, nosso primeiro ponto será justamente esse, o período de nosso defloramento para a civilização européia, início da solidificação de nossa linguagem e de nossos personagens, entre eles o de Iracema, que ocupa um lugar ímpar, nossa vestal que trai sua tribo pelo amor do europeu, remete-nos a opção pela América, já implícita no nome de Iracema.

Esse ponto de partida não exclui a imitação, ou segundo Frye “cada forma literária tem sua linhagem,e que podemos rastrear sua ascendência até os primórdios” (FRYE: 2017 p.34); esses primórdios, que são compartilhados, iremos apenas perpassar.

A virgem dos lábios de mel, que carrega o segredo da Jurema, deixará tudo de lado pelo amor a Martim Soares Moreno, guerreiro português, e com ele terá um filho: Moacir, filho da dor. A escolha de Iracema pode ser vista numa perspectiva geopolítica como um dilema entre Iracema x América, a palavra Iracema é um anagrama de América. Esse dilema quem vencerá, a América e com essa vitória o prêmio da linguagem dos portugueses. Apesar dos esforços de Anchieta em escrever um poema em latim, as ondas vinham lhe informar que o povo daqui não seria dado a declinações.

Por ser uma sacerdotisa, Iracema não poderia pertencer a ninguém, mais uma vez nos aproximamos da linguagem, a linguagem também não pertence a ninguém; Iracema carrega consigo o segredo da Jurema, quantos segredos de Jurema não se escondem em nossos corações? Entretanto ao se relacionar com o estrangeiro, ela perde seu poder místico. Há aqui um diálogo entre a civilização européia e o Novo Mundo, o romantismo que fez do índio o símbolo de nossa afirmação na arte, o índio deixou de ser o exótico. Nessa história de Iracema vemos a corrupção do gentio, não da mulher em si, mas de toda a floresta, da linguagem, da religião, abrindo-se para o explorador, Martim, apesar do amor por Iracema, sente saudade de sua terra, e essa saudade da Europa que transformará o país em um arquétipo do velho continente, arrasta o coração de Martim para um país de glória, afinal em tão pouco tempo um caminho para as Índias, Brasil conquista de Goa e regiões da África, há do outro lado um império em que ele, Martim, representa na América e aqui...os lábios de Iracema. Lábios em que repousa o segredo da Jurema, essa que foi a inauguradora da miscigenação, entre o silvícola e o citadino, em que ambos se encontram em uma fuga pela floresta, cabe a ela a origem do povo brasileiro, em seu filho Moacir (ou filho da dor) talvez seja esse o segredo de nossa alegria, somos todos filhos da dor.

Em Alencar encontramos a musicalidade poética, apesar de ser um romance em prosa, elevamos ao patamar de prosa poética, tal fato não ocorre não apenas em relação aos elementos tropológicos, mas também a própria forma, onde o autor/poeta busca um ritmo, que tanto contribui para o ouvido literário, vejamos o primeiro parágrafo do capítulo V:

O galo da camPIna ergue a roupa escarLAte fora do ninho. Seu límpido triNAdo anuncia a aproxiMAção do dia.

Perceba que ao escandir e pontuar a sexta sílaba, há uma semelhança rítmica que se repete.

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Mas como um texto sobre literatura brasileira começa no Romantismo? Esqueceram os jesuítas? Não, em absoluto, mas convenhamos que São José de Anchieta é mais fictício do que a personagem Iracema, e.g., nosso primeiro autor flutuava e os animais obedeciam a ele! Nossa história literária não deixa muito a desejar perto de obras de Realismo fantástico!

Os jesuítas, diferente de Iracema não traíram os indígenas, catequizaram, mudaram aspectos de sua cultura, para solidificar a religião católica, cumpriam uma profecia de levar o nome de cristo; Iracema cumpria uma profecia ao defender o segredo da Jurema. Em ambos vemos a linguagem, a linguagem revelada e a linguagem guardada. Enquanto Iracema trai seu povo, os jesuítas defendem seu povo, nas missões, nos escritos, nos dicionários, nos boticários, nas fazendas administradas, na luta contra a escravidão dos silvícolas, revelam uma luta com mortos reais. A linguagem foi substituída paulatinamente, os jesuítas fizeram gramáticas e dicionários, aprenderam as línguas dos indígenas, conservando-as e anotando com os fonemas já herdados do latim, mas o adubo de nossa literatura foi a Língua Portuguesa, a última flor do Lácio que deixou aqui uma semente que construiu uma literatura rica, pouco apreciada dentro do próprio país.

Anchieta chegou a ser refém dos Tamoios, que na segunda metade do séc XVI ocupavam o litoral norte de SP e tinham uma aproximação com os franceses, deixá-lo refém foi uma decisão de Nóbrega para mostrar que ele voltaria, a intenção de Nóbrega era levar para os portugueses as condições para que a paz se restabelecesse, foi nesse cativeiro que ele escreveu o seu imenso poema De compassione Planctu Virginis in Morte Filii, nas areias da praia de Iperoig; Anchieta estabeleceu uma relação amigável com os indígenas e, segundo Cordeiro ( CORDEIRO: 2016 p.86), "Ao fim das negociações, e como resultado de sua relação amigável com os índios, o missionário acabou sendo escoltado na volta para São Vicente".

Pero Vaz de Caminha dá nosso atestado de batismo para a Língua Portuguesa, Iracema procria, mas, como dizem que pai é quem cria, coube aos jesuítas a nossa educação, porque os colégios eram a única fonte e irradiação cultural em nosso incipiente solo, isso nos trará rebentos ainda no século XVI, neles se educam. segundo Sodré, Bento Teixeira, Frei Vicente Salvador, Antônio Vieira e Gregório de Matos (SODRÉ: 1964 p.78), continua o autor com alguns autores do séc XVIII: Basílio da Gama, Santa Rita Durão e Alvarenga Peixoto. A lista de pessoas que passaram pelas escolas os jesuítas na Europa também é grande, segundo Franca (FRANCA: 2019 p.52) Tasso, Vico, Molière, Bossuet, Montesquieu e até Voltaire, que talvez carregue alguns traumas da palmatória.

Anchieta trouxe-nos a medida velha da tradição medieval, além e iniciar o teatro com autos que se destinavam "a edificação o índio e do branco em certas cerimônias litúrgicas" (BOSI: 1975 p.23), como poeta usou da símile, com uma preocupação pedagógica, usou de uma linguagem simples, em motes, por meio dos personagens bíblicos, poemas que hoje, apesar de religiosos, soam pueris, mas tentam ser palpáveis, abrangentes, como nosso período sensório-motor, usando uma símile a epistemologia genética de Piaget.

Anchieta, ou São José de Anchieta, entrou na Companhia de Jesus com 17 anos, veio para o Brasil a fim de se curar de fortes dores ocasionada por uma escada que lhe atingiu as costas, porém as histórias do Santo são as mais incríveis, certa vez caiu em um rio, os índios tentaram procurar, até que indo ao fundo do rio encontraram Anchieta recitando seu breviário no fundo do mar. Chegou a impedir um ritual de antropofagia, os animais o obedeciam e não raro flutuava.

Iracema, nossa vestal, Anchieta, nosso santo, falta algo que podemos encontra justamente em Gregório de Matos (1623 - 1696), alcunhado de “o boca do inferno”! Em Gregório de Matos temos o homem dividido do barroco, se em Anchieta e Iracema, podemos apontar diferenças substanciais entre corpo e alma, entre o amor ou a tribo, entre esconder a Jurema ou revelar Cristo, em Gregório de Matos, nosso autor mais significativo no Brasil colônia, vemos uma obra ampla entre o satírico, lírico, burlesco, erótico e sacro. Obra que ora critica fidalgos "caramurus", ora elogia uma mulher, ora está no genuflexório pedindo o perdão dos pecados. Uma síntese que atravessará séculos, e se enraizará em nossa nação, afinal somos um país religioso, mas também país do carnaval e também o país da corrupção.

A linguagem poética já é nosso português com a influência e até quase plágio, ou spoiler de Góngora e Quevedo. Enquanto em Iracema temos o amor à Europa, em Anchieta a apresentação de uma religião, de uma forma de vida que nas missões tentarão por em prática; em Gregório temos o reconhecimento dos abusos e do isolamento do homem brasileiro, inclusive entre os que deveriam representar e respeitá-lo, vejamos esses versos recolhidos de Veríssimo (1969 p.65)

Que os brasileiros são bestas

E estarão a trabalhar

Toda a vida por manterem

Maganos de Portugal.

Substituam "Maganos de Portugal" por políticos em Brasília e veremos que a coisa não mudou muito. Retomar nossa literatura, nosso imaginário é um exercício de reflexão sobre o nosso presente, Gregório de Matos usava modelos estrangeiros em sua poesia, mas seus personagens eram os nossos: padres, freiras, militares, funcionários do governo (capitanias) nossos jovens, hoje, possuem esses modelos brasileiros e outros mais, o que faltaria? O eterno revelar da Literatura, revisitar e trazer nossos estudantes, mostrar aos neófitos, que são modelos necessários, que perpassam a nossa árvore genealógico/Literária, 34 infelizmente se usarmos a literatura em um sentido lato, tudo é literatura, deixamos de lado exemplos essenciais de nosso imaginário, discursos geradores importantes. Não abandonemos os lábios de mel de Iracema.

(Ricardo Gomes Pereira)

Referências:

ALENCAR, José: Iracema São Paulo Ed. Conducta

BOSI, Alfredo: História Concisa da Literatura Brasileira 2.ª ed. São Paulo: Ed. Cultrix 1975.

CORDEIRO, Tiago: A grande aventura dos jesuítas no Brasil 1.ª ed. São Paulo: Planeta, 2016

FRANCA, Leonel, S.J.: O método pedagógico dos jesuítas – O Ratio Studiorum. Campinas, SP: Kírion, 2019.

FRYE, Northrop: A Imaginação Educada trad.: Adriel Teixeira – Campinas,SP: Vide Editorial, 2017.

SAINTE-FOY, Charles: São José de Anchieta: o apóstolo do Brasil trad.: Armando Alexandre dos Santos. São Paulo: Petrus, 2014.

SODRE, Nelson Werneck: História da Literatura Brasileira 4.ªed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964.

VERÍSSIMO, José: História da Literatura Brasileira 5.ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Livraria José Olympio Editora, 1969

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