CANTADORES, REPENTISTAS E VIOLEIROS - PARTE IV

1---O CORDEL, A VIAGEM - Meu pai, marceneiro, fazia muitas coisas belas, entre elas instrumentos musicais: violões, cavaquinhos, rabecas e bandurras. Certo dia - eu teria uns 5 anos -, parou à porta da oficina um homem alto e forte, chefiando pequena caravana de jovens, um membro do grupo segurava-lhe a mão, guiando seus passos incertos pela rua esburacada - rosto começava a envelhecer, protegia-se do sol com chapéu de abas largas, óculos de vidro negro, todos tendo a tiracolo um instrumento de corda. Meu pai perguntou com quem falava e a voz, possível de se ouvir a cem metros de distância:

" - Com o cego ADERALDO! "

Forte emoção no rosto de meu pai ao se saber honrado com a visita do lendário poeta-cantador! Rabeca para conserto: instrumento de estimação, antigo presente de um admirador. Meu pai artesão pegou carinhosamente a rabeca. Dias depois o cego veio buscar, satisfeito reencontrando a qualidade do som original e perguntou o preço pelo serviço. "Nada", respondeu meu pai, o cego insistiu e meu pai propôs em pagamento uma cantoria na pequena fazenda a uns 30 quilômetros da cidade, onde viviam sua mãe e vários irmãos, quase todos notavelmente voltados para a música. Dias mais tarde para lá nos dirigimos - meu pai, eu e a comitiva de músicos ambulantes. De todas as viagens que fiz na vida, foi a única realmente inesquecível, que permaneceu como "acontecendo' no presente, não como lembrança, memória... A cavalo, estrada obediente aos caprichos do terreno - colinas estirando-se por várzeas arenosas e quietas; elevações vencida, desembocava pequena planície, cavalos a galope por conta própria; e eu sem despregar meus olhos de ADERALDO, a princípio com medo de algum mal lhe acontecer, depois puro deslumbramento - ele firme e elegante na sela, indisfarçadamente feliz com o vento a bater no rosto, a rapidez e o ritmo ondulante do galope. Todos íamos alegres - rindo, falando, contando estórias, fazendo piadas, frases interessantes tomadas como mote e imediatamente glosadas com improvisos. ADERALDO improvisou muita coisas: sobre o perfume dos umbuzeiros que ladeavam a estrada, o pio assustado de aves que fugiam ao tropel, o chapéu dele arrancado pela ventania e rolou muitos metros pela estrada. A noite desceu sem luar, porém rica de milhares de estrelas, que descreveram para ele, logo improvisou sobre a Via Láctea orientando nossa caminhada; rindo, improvisando, galopando, ele era a imagem da liberdade, mesmo acorrentado pelas cadeias da cegueira, mas como Prometeu no alto do monte a que fora acorrentado, muito "acima" de nós, onde não podíamos chegar, sempre cabeça erguida e olhos da imaginação voltados para regiões ainda mais elevadas e de acesso difícil. Enxergávamos conscientes da terra sob as patas dos cavalos; para ele, ao contrário, a terra não era uma prisão, seu cavalo galopando nos ares pelo altíssimo Caminho de São Tiago: assim eu o retive na minha fantasia nesta reminiscência comovida.

2---O VOO - Eu retive na ocasião, creio agora, a própria encarnação da POESIA do povo nordestino que pode naturalmente ser vista de muitos ângulos, mas no hoje só me importa constatar que para a poesia a terra também é estranha, terra como símbolo de imobilidade, duro realismo e rigidez falsamente racional. Como ADERALDO, a poesia pode ser cega, mas é num corcel fogoso que cavalga, corcel cuja marcha normal é o galope disparado. Ela é sobretudo poesia do movimento, da viagem e do voo. Nada é estático na poesia dos ADERALDOS - tudo nela é dinâmico, em particular a narrativa, frequentemente em zigue-zague, por veredas e caminhos secundários, alegre desconhecimento das estradas reais de coerências. Muitas vezes, o começo do poema é a captação de um movimento já em curso: "Quando Jesus e São Pedro / pelo mundo viajaram / em casa de um ferreiro / uma tarde eles chegaram,,," ("Jesus, São Pedro e o ferreiro da maldição", de FRANCISCO SALES AREDA). Em outras, o próprio poema dá início ao movimento: "Para me certificar / da morte de Lampião / arrumei o matulão / andei para me acabar..." ("O grande debate de Lampião com São Pedro", de JOSÉ PACHECO). Se a primeira estrofe é introdução, uma sinopse da estória ou invocação às musas, o movimento virá na estrofe seguinte: "Tudo se deu com um moço / do Rio Grande do Norte / que foi para o Amazonas / para melhorar de sorte..." ("São Francisco do Canindé - um grande milagre", de MANOEL CAMILO DOS SANTOS). ----- Mesmo quando o poema obedece, casualmente, às clássicas unidades de TEMPO, LUGAR e AÇÃO, a força que o dispara é um movimento anterior e o final é apenas o descer do pano sobre um movimento que continua. Uma PELEJA entre cantadores parece à primeira vista estática, duas pessoas sentadas uma diante da outra, a dedilhar violas e fazer improvisos, aspecto exterior da construção... mas a peleja é simples pausa de um movimento que prosseguirá não se sabe para onde - nem RIACHÃO nem NEGRO (famoso duelO) eram de Assu, apenas de passagem: "Um dia determinei / a sair do Quixadá (...) fui até o Piauí / ver os cantores de lá", informa o Cego ADERALDO no início do livreto onde narra a peleja com ZÉ PRETINHO;. Severino Milanez não é de Floresta e também não o adversário Manoel Raymundo; Severino Simeão e Ana Roxinha não são de Petrolina; Severino Borges e Negra Furacão vieram de longe para cantar numa fazenda em Bom Jardim... Terminado o DESAFIO, pé na estrada e nova aventura, destino de menestréis desde a Idade Média: errar, mover-se, vagabundear. ----- E a dinâmica da PELEJA? Comparar com tempestade: começo lento e quase frio, dois cantadores nas "louvações" do estilo, exaltando virtudes do dono da casa acolhedora, beleza da esposa e filhas, amabilidade dos espectadores que vieram de longe para ver-ouvir-aplaudir e decorar versos para repetir sertões afora, num movimento de expansão circular do ato criador - em dado momento, segunda velocidade do vento poético, cessam os louvores, e um cantador começa a provocação, atira a luva, o adversário se agita, arrepiam-se as cordas da viola - sobe a temperatura da cantoria em novo ritmo, terceira é inaugurada: saltar da meia-quadra para o quadrão, deste para o beira-mar, e assim sucessivamente, até a PELEJA adquirir características de furacão, não o lento retorno à calmaria, mas o súbito necessário naufrágio de um dos contendores.

3---POESIA DA VIAGEM - "...começou a viajar / pelo mundo abertamente" ("O Camôes ", de SEVERINO G DE OLIVEIRA) - As perguntas do rei e as respostas de Camões aos 7 anos de idade, por isto se transforma num sábio, capaz de conhecer o passado e ate de profetizar o seu futuro. Certas PELEJAS, como a de MANOEL XUDU e SEVERINO PEREIRA e a de ZÉ MONTEIRO E CACHIMBINHO, são verdadeiros tratados de geografia (arrevesada e incorreta, é verdade), através do anseio de conhecer todos os acidentes e conviver com todos os povos. ----- E como ocorre às PELEJAS, nos ROMANCES também não há fronteiras, estórias se passam em lugares mais distantes e exóticos: "O pavão misterioso", na Grécia, e o drama de "Aprígio Coutinho e Neusa", no Japão. Viajando, o poeta sabe dos casos e conhece quem os viveram: "Tenho visto muitas coisas / nesta vida de estudante / e vendendo meus folhetos / já tenho andado bastante" ("Os matutos da feira", de JOSÉ JOÃO DOS SANTOS, AZULÃO) -- "O homem quando viaja / sempre encontra presepadas" ("Discussão de um fiscal com uma *fateira", de MANOEL DE ASSIS CAMPINA) -- "E viajando este mês / pela linha do Agreste / fui parar numa feira..." (Discussão de um crente com um cachaceiro", de VICENTE VITORINO). ----- Todo personagem importante do ROMANCE de cordel está partindo ou chegando, a ação sempre dispersa os atores ou, como catalisador, os atrai para o centro do drama. A celebridade do boi do coronel Sesinando ("O boi misterioso",de LEANDRO GOMES DE BARROS) traz à fazenda vaqueiros do lugares mais distantes. Um deles vem de Minas Gerais, meios de comunicação e transporte precários ao início do século XIX quase uma "odisseia", mas não aventura impossível para a imaginação do poeta, assim como o boi que não admite **pelas nem currais. -- Viajar é preciso, para saber e agir: os próprios espíritos, para comunicarem-se um com outro. deslocam-se das moradas; para falar com Deus, o Diabo é obrigado a sair "dos antros negros da terra" e viajar até às alturas, viagem longa e cansativa, feita só de tempos em tempos: "Em quarenta o Satanás / foi ao céu ligeiramente / do que havia no mercado / ele a Cristo fez ciente / e agora resolveu / fazer queixa novamente", informa JOSÉ VILA-NOVA, em "Segunda queixa de Satanás a Cristo", escrita muitos anos depois da primeira. -- Viagens, diferentes finalidades ou sem, viagens iniciatórias, muitas vezes plenas de peripécias e dificuldades, perigos e obstáculos que se avolumam na proximidade do destino, onde o esperam amor, felicidade ou conhecimento. Viagens para a liberdade! Raptos de donzelas perseguidas pelo pai tirânico, destinado ao final a ser humilhado em seu orgulho ("Mariquinha e José de Souza Leão"), bem sucedidas fugas de heróis solitários, sempre nômades, inteligentes e bravos, que conseguem derrotar a força bruta de latifundiários malvados ("Zé Mendonça, o sertanejo valente"), fugas desesperadas de jovens amorosos contra os quais se levanta o ódio dos homens e a fúria dos elementos, transformando longo trecho das vidas em luta constante com a morte (intermináveis peripécias de Aprígio e Neusa). -- Viagens por terra, a pé, a cavalo, em veículos antigos ou modernos, lentas com paradas frequentes ou às carreiras, em disputa com o tempo sempre inimigo da integridade física e da liberdade do herói. -- Viagens por mar, entre portos do mesmo país, da terra natal ao estrangeiro, do lar ao exílio, dos campos de paz aos de guerra, da família ao exótico, de certo ao duvidoso, do aqui ao fim do mundo, do presente ao passado do passado ao futuro. -- Viagens às montanhas, ascensão a lugares elevados onde está a salvação e às vezes a realização do sonho. -- Viagens pelo ar, como voam os personagens do ROMANCE de cordel! Com que facilidade e prazer os seus corpos se libertam do peso da gravidade!

(Segue.)

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 03/12/2019
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