CANTADORES, REPENTISTAS E VIOLEIROS

Eles se inspiram no sol, na seca, na caatinga, no Padim Ciço e em Lampião para criar uma rima popular que só existe no sertão nordestino.

Falar em violeiros-cantadores-repentistas, surge na memória o cearense CEGO ADERALDO, príncipe dos poetas populares nordestinos - nasceu em Crato, viveu 91 anos e ainda fazia versos e cantava suas dores, amores e desilusões de seu povo. Cantou para sertanejos, Padre Cícero, Lampião, governadores, presidentes e intelectuais, lembrado como o maior repentista que andou pelo Nordeste. Morreu, virou estátua em Quixadá/Ceará, nunca substituto à altura. Porte altivo elegante, verso saía fácil e ganhava destaque na voz forte, afinada aos acordes de viola, rabeca ou violino. ----- Cento e dois anos depois do seu nascimento, a cidade de Quixadá reuniu os violeiros do Nordeste para inaugurar-lhe uma estátua, entre cantorias e acordes de viola - cenário entre belíssimas formações rochosas e a vegetação de mandacaru, xique-xique e facheiro; lá foi construído o primeiro açude para combater a seca, a mando do imperador Dom Pedro II, o Açude do Cedro. Nesta cidade, o cantador ficou cego e viveu a maior parte da vida. E ele contava - quando tinha 18 anos, o pai alfaiate morreu num 10 de março e logo no dia 25 a desgraça lhe tirou a "luz do mundo", palavras dele; Pediu água para beber, casa defronte onde morava - devolveu o copo com um 'muito obrigado', sentiu horrível dor, um arrocho querendo sair da cabeça, olhos ficando turvos, dor como se estivessem cheios de espinhos de mandacaru... ----- Poesia, dádiva divina - nunca frequentara escola ou empunhado uma viola ou tentado fazer um verso. Cego e pobre. Implorou a Nossa Senhora, Jesus Cristo e São Francisco do Canindé - queria um caminho, uma vereda que o levasse a um abrigo seguro; uma noite sonhou cantando: "Oh Santo de Canindé / que Deus te deu cinco chagas, / fazei com que este povo / para mim faça as pagas / uma sucedendo às outras / como o mar soltando as vagas." Depois desse sonho, nunca mais parou de cantar; começou fazendo toadas em Quixadá, cantou no Brasil inteiro, introduziu o gramofone e o cinema mudo no sertão cearense - nas sessões de cantorias, ligava em espetáculo o gramofone na varanda das fazendas para o povo ouvir as "músicas do estrangeiro"; depois, num projetor de manivela, passavam filme preferido de todos, "A paixão de Cristo" Certa vez se encontrou com o bando do temido cangaceiro João 22 e foi obrigado a passar o tal filme - na hora da crucificação, o bandido sacou o revólver, atirou em todos os guardas romanos, estragando o lençol branco que servia de tela. ----- ADERALDO cantou com todos os repentistas famosos da época e bateu todos nos desafios de viola. Na história dos violeiros, um encontro com ZÉ PRETINHO do Piauí, a grande plateia esperava Zé Pretinho derrubar o cego ou a cantoria duraria noite inteira. Meia hora de confronto e o cego derrubou Zé Pretinho com golpe de mestre: "Amigo José Pretinho, / não sei que hei de cantar. / Só sei que depois da luta / o senhor vencido está. / Quem a paca cara compra, / cara a paca pagará," Depois dessa estrofe, o negro temido pediu desculpas e se retirou. -- Outros grandes encontros foram históricos, como o de Lampião, Cego Aderaldo e padre Cícero - o cego cantou para os dois e como lembrança Lampião o presenteou com uma pistola, ainda hoje - 1981 - guardada pelo filho adotado MÁRIO ADERALDO; aliás, tudo de ADERALDO continua intacto na casa deste filho que conserva com desvelo mobiliário, óculos, roupa, violas, rabecas e violino - o cego não casou nem teve filhos, mas adotou 26 crianças, Mário, o único que o acompanhava tocando rabeca e violino. ----- O mundo dos violeiros é fantástico, vivem somente para as cantorias, viajando de um lado para outro - não dava para viver, mas hoje os cantadores estão presentes em estas de padroeiras, eventos políticos, encontros folclóricos... versos estudados em universidades brasileiras, americanas e europeias - violas não mais fabricadas artesanalmente; as de madeira se estragam rapidamente, mais frágeis, hoje industrializadas e mais resistentes, mas sem a mesma sonoridade das antigas. Naquele tempo, andanças menores em torno das fazendas e sítios da região, hoje convites para outras cidades, vários estados, violas se estragam rapidinho. ----- Um dos últimos artesãos de viola, ANTÔNIO DO CABO PEREIRA, hoje vive consertando instrumentos musicais, 68 anos de idade, há 20 se dedica à viola, oficina em velha casa no centro de Fortaleza. Nas prateleiras ou pendurados em arames, violas, violões, violinos e até guitarras. Com voz macia e riso fácil, ele poetiza que "Viola é instrumento sagrado: para fazè-la, é como montar uma rosa, com muita delicadeza, forma harmoniosa como o som que dela emana - muito cara a artesanal, mais barata a industrializada vendida em loja. Às vezes transformo um violão numa viola de oito bocas, o resultado é bom". ----- Como as violas, também mudaram as formas de cantorias, mas sempre obedecendo à métrica rígida de rima e número de sílabas, diferentes combinações de estrofes e melodias, onde os violeiros improvisam os versos - formas remanescentes da poesia medieval ibérica. Hoje a nova geração de cantadores são vigorosos, mas com muitas preocupações: política, ecologia, direitos dos homens e das mulheres; têm televisão , rádio, protetores folcloristas e estudiosos; no passado, as preocupações eram da própria natureza: mulher bonita, sertão, vaqueiro, Padim Ciço, Lampião e a seca - sobraram a mulher bonita e seca. ----- JOSÉ MARIANO canta desde12 anos e agora vive do saudosismo dos dias de glória com Aderaldo - muitas sextilhas. ----- A gemedeira ("Ai, ai, ui, ui!") foi criada pelo índio AZUPLIM TROVADOR que nasceu no Pará, tribo kaxinana, e aprendeu a cantar com violeiros nordestinos, emigrantes das secas no Ceará; para suas cantorias, usava instrumentos típicos da região paraense: ganzá, viola, viola e tamborim - foi também um dos famosos cantadores batidos pelo cego Aderaldo num encontro no interior do Pará. ----- Em qualquer encontro de violeiros, Ceará ou Pernambuco, festivais de cantadores, apresentados todos os estilos: mourão de 7 linhas, décima, dez pés a quadrão, mourão voltado, Brasil Caboclo e muitos outros, sempre com rima certa, voz aprumada e viola bem afinada - só a hora de começar é obedecida, a de terminar não se sabe. Inaugurada a estátua de Aderaldo, Quixadá passou a ser um novo ponto de encontros de romeiros diferentes

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NOTA DO AUTOR:

Novela "Roque Santeiro", 1985, cidade nordestina de Asa Branca - personagem Cego (falso) Jeremias conta em versos, na porta da igreja, a estória de Roque.

FONTE:

"O canto e a saga dos violeiros", reportagem de Laércio de Vasconcelos, texto, e Júlio Jacobina, fotos - Rio, revista Manchete n. 1533, 5/9/81.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 01/12/2019
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