A GÊNESE DO POEMA

A costumeiramente chamada “inspiração”, que para designá-la prefiro denominar segundo o conceito de origem castelhana – a espontaneidade – é a voz do Mistério, aliás, o único que é capaz de conceber e fazer aflorar o poema em nós, no exato momento ou situação em que estamos em "estado de Poesia". O poema, vale dizer – a forma ou formato do exemplar em linguagem poética – é a materialidade da Poesia, a concretude verbal e/ou visual, fruto de uma geratriz psíquico-emocional-intelectiva, que não se tem como estabelecer a procedência no plano corpóreo do poeta-autor, e com destinação certa ao mundo fático por obra e arte do poeta-leitor, que é quem lhe dá vida; até então era matéria inanimada, mera inscrição dos estritos domínios de seu agente criador. Tenho a tal de inspiração como um sagaz estado anímico, que se traduz numa centelha desencadeadora que se utiliza de uma linguagem pouco ordenada, confusa, eis que altamente codificada. Somos, enquanto poetas, o canal físico da expressão vocabular da magia dos significantes e seus eventuais significados, que conduzem à imagética, a partir das metáforas de palavra e da dialética (complexa) que o jogo das imagens produz em nossa cabeça geralmente plena de ansiedades e inquietação frente ao entorno de nosso pretenso território de viver. Assim identifico a liberação do alter ego das descobertas freudianas, a seu tempo, tal como o nominou – também a seu estágio temporal – o universal poeta Fernando-Pessoa-ele-mesmo-o-outro: os demiurgos incompletos de sua psique intuitiva e culta e os seus individuados heterônimos, com nome e sobrenome e, inclusive, em Álvaro de Campos, Alberto Caieiro e Ricardo Reis, com registros biográficos, a partir de 1930, em cartas a Adolfo Casais Monteiro, da Academia Portuguesa. Enfim, o universo revelado pela codificação que conduz e caracteriza o sentido conotativo da linguagem – sua criptografia genuína, original. E é somente neste território, com suas peculiares nuanças, que a Poesia se dará a conhecer como tal. Fora disto, entremos no universo fascinante da Prosa, que igualmente tem os seus peculiares cânones formais e conceituais. Na Poesia, a palavra engalana-se com o seu vestido de festa e, via de consequência, o empoderamento dela e o consequente estranhamento que exsurge das baforadas do Mistério na cabeça (e no nariz) do poeta-leitor. A Poética, como fenômeno da humana linguagem, nasce dos limbos entrelaçados da filosofia; do individuado universo psíquico de cada humano ser e do terreno vivencial até a finitude, com os seus (por vezes, tumultuosos) acréscimos: tidos, lidos e havidos existenciais. Tenho que o ato de criação, em Poética, se perfaz em dois momentos: o da espontaneidade, em que prevalece a tal "centelha inspiracional" assentada na emoção momentânea, e o segundo instante, ao qual denomino de "transpiração", em oposição ao designativo usual da "inspiração". Neste último momento, o transpiracional, prevalece a intelecção e os adornos de cultura e experimentação, assentado em muita leitura de obras no gênero Poesia e correlatas. A gestação do criar merece todo tipo de concepção, de óticas e de parte a parte, porque não há como provar com veracidade o que vários categorizados mestres expendem como vertente conceitual para essa gênese. Todavia, algo me parece possível afirmar com palpável fidedignidade: quem dá forma ao poema (com Poesia) é a dedicação ao estudo e à luta com as palavras e (suas) subversões figurativas, no cadinho fervente, tormentoso e desafiante do criar. É a este segundo momento criacional que denomino de – transpiração – o que permite, por vezes, que tornemos a peça poética definitiva quanto ao seu formato. No entanto, para mim, que brigo com a palavra como ingestão necessária e quotidiana, a rigor, o poema (com Poesia) nunca está pronto. E aí novamente me vem à cabeça o respirar do Mistério e os seus bafejos.

– Do livro inédito OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/19.

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