AS RUÍNAS DE SELINUNTE / ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO

As Ruínas De Selinunte

Murilo Mendes


Correspondendo a fragmentos de astros,
A corpos transviados de gigantes,
A formas elaboradas no futuro,
Severas tombando
Sobre o mar em linha azul, as ruínas

Severas tombando
Compõem, dóricas, o céu largo.
Severas se erguendo,
Procuram-se, organizam-se,
Em forma teatral suscitam o deus
Verticalmente, horizontalmente.

Nossa medida de humanos
-Medida desmesurada-
Em Selinunte se exprime:
Para a catástrofe, em busca
Da sobrevivência, nascemos.

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PLANO DA SINTAXE

O poema tem como tema Selinunte e suas ruínas. Vejamos
alguns dados a respeito de Selinunte:
cidade da Sicília, na costa sudoeste. Fundada no ano de 651
A.C. , atingiu rapidamente alto grau de prosperidade. depois de ter
sido destruída pelos cartagineses em 409, foi reconstruída por Her-
mócrates, de novo arrasada em 429, e depois restaurada. Era flo-
rescente quando os sarracenos se apoderaram dela em 827 da era Cristã: mataram e venderam como escravos os seus habitantes, e
fizeram dela um montão de ruínas. Vêem-se ainda na Torre de Polu-
ce os restos de sete templos arrasados na época grga por um abalo
horizontal de tremor de terra que os lançou todos para o mesmo
lado; um deles, dedicado a Júpiter, era de colossais dimensões.
O poeta fala, portanto, de uma cidade várias vezes arrasa-
da, e várias vezes reconstruída. Pode-se perceber também a recu-
peração possível das tragédias que a atingiram pois, reconstruída,
logo voltava a prosperar.

A nossa primeira observação recai sobre a inversão na construção do poema. Verificamos que "as ruínas compõem dóricas
o céu largo", oração principal do primeiro período, aparece apenas iniciada no fim da primeira estrofe (as ruínas), indo completar-se somente no segundo verso da segunda estrofe (compõem dóricas o
céu largo). O poema inicia-se pela caracterização das "ruínas":

"Correspondendo a fragmentos de astros,
A corpos transviados de gigantes,
A formas elaboradas no futuro,"
........................................................

No próprio procedimento de construção nota-se a "fragmentação" das idéias e uma "elaboração" maior da sintaxe:

-a fragmentos de astros
"As ruínas correspondendo" -a formas elaboradas no futuro
-a corpos transviados de gigantes

-sobre o mar
"compõem ,dóricas, o céu largo severas tombando"
-em linha azul


Pode-se afirmar, portanto, que o poema é trabalhado de tal forma a perceber-se no procedimento de construção uma justificação, pelo que é realizado, daquilo que foi afirmado.
Notamos ainda que "as ruínas severas tombando" (expressão reiterada através do paralelismo de construção) ao mesmo tempo "tombam" e "compõem o céu largo". Podemos justificar nossa afirmação pelo emprego do gerúndio "tombando" (indicando um fato coexistente ou imediatamente anterior ao verbo que acompanha). Daí, podermos concluir: ao mesmo tempo em que tombam as ruínas, juntas em uma determinada ordem, formam um corpo exato, sólido, resistente(por associação a "compõem", "severas" e "dóricas"), formam o "céu largo". Há, ainda nessa expressão -"céu largo"- uma afirmação da grandiosidadedas ruínas, reiterada por "severas se erguendo", já que largo remete a extenso, amplo. Ora, apenas ruínas imensas, poderiam, apesar de tombadas, erguer-se a ponto de compor de maneira sólida (dórica) o céu amplo.
Vejamos agora o que acontece a partir dos quatro últimos versos da segunda estrofe:

"Severas se erguendo,
Procuram-se, organizam-se,
Em forma teatral suscitam o deus
Verticalmente, horizontalmente."
...............................................

Vemos aqui uma sintaxe mais ordenada, elaborada novamente de acordo com o conteúdo semântico (organização).

-procuram-se
(as ruínas) -severas se erguendo
-organizam-se


-verticalmente
em forma teatral suscitam o deus
-horizontalmente


Da mesma forma que as ruínas "procuram-se, organizam-se", o procedimento dentro do texto é a busca da organização.
Qual o tipo de organização buscada?
Temos o seguinte:
"Em forma teatral suscitam o deus
Verticalmente, horizontalmente."
Podemos dizer que pelo aspecto trágico (teatral) as ruínas lembram o deus a que foram erigidas. Havia em Selinunte um templo dedicado a Júpiter (deus dos deuses e dos homens) de colossais dimensões; muito maior do que os outros e destacando-se dos outros, portanto.
Suscitar remete a invocar, invocar um deus para livrar-nos de uma tragédia.
De que forma se configura o modo como as ruínas invocam o deus?
"Verticalmente, horizontalmente."
Verticalmente indica-nos altura e, por extensão, espaço; horizontalmente indica-nos linearidade e, por extensão também, tempo.
Observando o texto, podemos concluir que a busca da organização aparece no poema através da disposição organizada do texto no espaço e no tempo (verticalmente, "preenchendo" a folha) e (horizontalmente, ao "ocupar" as linhas). Existe aqui um paradoxo relacionado ao próprio título pois ruínas lembra desorganização, desmoronamento, caos. Esse contraste mesmo, criado pela oposição entre o título e a organização do poema reforça a impressão causada pelo título, destacando-o como se destaca um vulto negro, desenhado numa folha branca de papel.Encontramos a busca da organização linear no nível da enunciação das idéias, alcançado de forma objetiva:
"Nossa medida de humanos
-Medida desmesurada-
Em Selinunte se exprime:"
Que acontece porém nos dois últimos versos da terceira estrofe?
Nova inversão na ordem do pensamento expresso:
"Para a catástrofe, em busca
da sobrevivência nascemos."
Isso nos leva a crer que a organização, embora perseguida, não pode ser alcançada.

-para a catástrofe
nascemos
-em busca da sobrevivência

Qual o móvel a impedir que se alcance o objetivo perseguido?
Percebemos que o texto é estruturado predominantemante por sintagmas nominais: nomes, adjetivos, verbos nominailizados, locuções adjetivas, conforme exemplificamos abaixo:

(Correspondendo) a (fragmentos) (de astros),
A (corpos) (transviados) (de gigantes),
A (formas) (elaboradas) no futuro,
(Severas) (tombando)
Sobre o mar em linha azul, (as ruínas)
(Severas) (tombando)
Compõem, dóricas, o (céu largo)."
.............................................................

A predominância de sintagmas nominais dá-nos uma idéia de estaticidade, de passividade, de ausência de ação; diante da catástrofe permanecemos estáticos, passivos. Apesar da busca pela organização, não se descreve uma ação.
O texto, baseado em sintagmas nominais, principalmente, transmite diretamente o fato. Causa uma impressão, através de uma informação, mas em seguida, resulta fechado sobre si mesmo, através do paradoxo criado pelos dois últimos versos da última estrofe:
"Para a catástrofe, em busca
Da sobrevivência, nascemos."

No entanto, apesar de voltado para si próprio,divisamos no texto uma pista deixada pelo trabalho de adjetivação percebido no poema.
Notamos uma busca nas diversas maneiras de caracterizar, ora através de locuções (de astros, de gigantes), ora através de particípios com função adjetiva (elaboradas, transviados), ora através do próprio adjetivo (largo, teatral).
Se atentarmos, porém, para os nomes que aparecem nos dois últimos versos da última estrofe, vemos que eles não estão caracterizados. Notamos que "catástrofe" e "sobrevivência" evidenciam-se pela própria ausência de caracterização. Isto poderia sugerir que ao final da busca pela organização e pela reconstrução o poeta parece deter-se diante da força significadora da palavra (do nome).

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PLANO DA IMAGEM

Observemos os nomes que aparecem nos três primeiros versos do poema e reparemos a caracterização que sofreram: "fragemtos (de astros)", "corpos (transviados de gigantes)", "formas (elaboradas no futuro)". Vemos que estes nomes, relacionados com o título do poema e empregados, a princípio, em sentido denotativo, pela qualificação recebida, adquirem e nos transmitem uma impressão de irrealidade. Tornam-se ambíguos, permitindo mais de uma interpretação. Percebemos aí, o início do processo metafórico.
Podemos notar dois planos semânticos trabalhados pelo poeta:

a) mar - ao qual se associam: corpos transviados, tombando, horizontalmente, medida de humanos, catástrofe, nascemos.

b) céu - ao qual se associam: fragmentos de astros, verticalmente, erguendo, deus, sobrevivência.

Esses dois planos se opõem criando uma tensão que percorre todo o poema. Mas, há pontos de contato, pontos de fusão. São eles: "linha azul" - horizonte - limite entre o céu e o mar;
"procuram-se, organizam-se" - busca do desorganizado em organizar-se - entre o céu e o mar; "medida desmesurada" - medida sem medida - como é a medida entre o céu e o mar.
As ruínas de Selinunte representam formas elaboradas no futuro, se lembrarmos que são ruínas de uma cidade reconstruída pelos gregos. Esse povo atingira considerável avanço arquitetônico, se comparado a outros povos da época.
Com a mesma exatidão e solidez( formas elaboradas no futuro) com que foram construídas, elas tombam "sobre o mar." E a "solidez e exatidão dóricas" ainda se fazem presentes quando elas se erguem e "compõem o céu largo", buscando uma forma definida ao "procurar-se" e "organizar-se". "Severas" também remete a "com dignidade". Poderíamos deduzir então, que com a mesma dignidade com que "tombam", "erguem-se", sobrevivendo à "catástrofe". Elas buscam a organização como uma forma de sobreviver.
As ruínas, compostas, ainda representam (por associação a teatral) o deus que reverenciavam, lembrando-o, verticalmente amontoadas e horizontalmente dispostas.
Na terceira estrofe vemos colocados paralelamente "homem" e "ruínas", quando se diz que "nossa medida de humanos, em Selinunte se exprime": semanticamente vemos contrastar a "medida rigorosamente proporcional e exata" das construções gregas de Selinunte, com a "medida desmesurada" sem medida, própria do homem.
Estaria, na verdade, a "medida de humanos" expressa em Selinunte?
Não haveria aí uma grande oposição? Reparemos nestes versos:
"Para a catástrofe, em busca
Da sobrevivência, nascemos."
Eles são uma síntese de todo o poema e, portanto, reafirmam o que foi dito nas primeiras estrofes.
Se, como dissemos anteriormente, os versos:
"Nossa medida de humanos
-medida desmesurada-
Em Selinunte se exprime:"
opõem-se à parte anterior do poema (ao dizer implicitamente que a medida de humanos não está expressa em Selinunte), então,
"Para a catástrofe, em busca
Da sobrevivência nascemos."
são a desafirmação da afirmação anterior, e conseqüentemente da oposição aparente, e, uma reafirmação do paralelo estabelecido entre "humanos" e "Selinunte". Notamos um adensamento do processo metafórico em sucessivos desdobramentos ao longo do poema. Muitas palavras, embora em sentido denotativo, são plurissignificativas.
Por exemplo: "forma" pode significar qualidade de estilo literário ou modo de expressar-se; "compor" remete a fazer versos e "medida" ao número de clsses e sílabas de cada verso.
Uma das possíveis leituras, portanto, dentro da plurissignificação do poema poderia rferir-se à busca do poeta no "fazer poético".
Já vimos que a maior elaboração da sintaxe está nas duas primeiras estrofes, Por outro lado, a maior elaboração semântica existe na última estrofe. Outra coisa já vista é a culminância da busca do poeta no encontro da palavra em sua força significadora. Se associarmos, portanto, "palavra" a "ruínas" (fragmentos, corpos, formas) veremos que ela não pode significar isolada, não estruturada. Assim as palavras "buscam-se", "organizam-se" invocando e evocando o poeta (deus) através do espaço (verticalmente) e do tempo (horizontalmente). Por outro lado, uma vez organizadas no todo constituído pelo poema, as palavras "representam" a possibilidade do poeta sobreviver através do tempo e do espaço. Na verdade, são as palavras que possibilitam essa sobrevivência: o poeta vai sobreviver através do poema (palavra organizada).

O poema nasce para a catástrofe (desaparecimento, desmoronamento), buscando uma organização no cosmos (céu,futuro), isto é, a sobrevivência.
Como sobreviver?
Correspondendo a formas elaboradas no futuro. Antecipando-se.
A medida "de humanos", intento de fazer alguma coisa imensa, enorme, é restringida por "desmesurada", sem medida. Pode o intento concretizar-se em humanos limitados? Se o homem é limitado, sua medida também o é.
No momento em que é feito, o poema junta-se à abundância (mar) de poemas, tombando sobre eles no limite entre o que vai perdurar e o que vai sucumbir (linha azul). Sobreviverá se, ao organizar-se, alcançar o intento desejado adequando-se às formas que serão elaboradas no futuro.
Já notamos um emprego predominante de sintagmas nominais reiterando a força do nome (palavra), mas indicando ausência de ação.
"-Medida desmesurada-", aposto, também nos dá uma negação do valor de "medida". Se a medida é "desmesurada" e o poema estrutura-se com "palavra" e "medida", na negação do valor de medida, temos uma afirmação do valor da "palavra". Por outro lado, há a indicação de que a ação é necessária para que a medida seja mesurada. Sem a ação de medir, o fazer poético tem uma medida desmesurada, um excesso, uma impropriedade, uma medida sem medida.
Outro aspecto notável é o aparecimento na segunda estrofe de uma oposição entre a construção sintática e o conteúdo semântico. Enquanto vemos o emprego de orações coordenadas (independentes) vemos a dependência da palavra em relação ao poeta (deus) para organizar-se.
Há um relacionamento íntimo entre poeta e palavra, entre palavra e poeta. De igual forma, um estará na dependência do outro para sobreviver?
Temos aqui a possibilidade de supor que existe uma reflexão sobre a sobrevivência do poeta através do poema e da poesia (poema) através do poeta.

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ESTRATO FÔNICO


Notamos primeiramente uma alternância de vogais abertas (as, an, ar) e fechadas ( i, u, ui, us ...) que nos remete diretamente à alternância de sons fortes e fracos causados por um desmoronamento.
Temos um "verso livre" e a métrica irregular do poema justifica e reitera a afirmação:
"Nossa medida de humanos
-medida desmesurada-"
Vemos também, quanto à métrica, que no primeiro, segundo e terceiro versos da primeira estrofe há um crescendo de sílabas que podemos associar ao estrondo causado pelo desmoronamento. Depois, do terceiro ao nono verso, notamos irregularidade métrica correspondendo à fragmentação a ao caos (a palavra) enquanto procura organizar-se. No décimo e décimo primeiro versos, notamos certa regularidade, indicando organização. Finalmente, do décimo segundo ao décimo sexto versos notamos certa regularidade métrica contrastando-se com o paradoxo semântico. Dentro dessa oposição entre regularidade métrica e sentidos opostos fica acentuada a própria contradição do sentido.

A partir da segunda estrofe, a presença , repetida em todos os versos, do "enjambement" dá-nos uma idéia de quebra, mas também nos dá uma idéia de continuação (quebra da frase, mas continuação do sentido). E como o procedimento repete-se ao longo da segunda e terceira estrofes, temos a idéia reiterada de quebra e continuação, quebra e continuação...

Assim, pela idéia, pela impressão causada pela utilização repetida do "enjambement", temos uma das possibilidades de interpretação a respeito do poema analisado: do mesmo modo que em Selinunte "as ruínas tombam e erguem-se" o poeta está numa busca constante de reconstrução a partir de elementos "tombados" (o "Thesaurus"), que ele vai utilizando para (re) construir seus poemas e expressar uma poesia que o eterniza e é por ele eternizada.



Nilza A. Hoehne Rigo


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OBRAS CONSULTADAS

KAYSER, Wolfang -Análise e Interpretação da Obra Literária
MOISÉS, Massaud -Guia Prático de Análise Literária
BECHARA, Evanildo -Moderna Gramática Portuguesa
CASTAGNINO, Raul H. -Análise Literária
GARCIA, Othon M. -Comunicação em Prosa Moderna
CUNHA, Celso Ferreira -Gramática do Português Contemporâneo
CÂNDIDO, Antonio -Presença da Literatura Brasileira III
Dicionários diversos

Sobre Selinunte: Enciclopédia e Dicionário Enciclopédico