VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS - PARTE II

1-----PORTUGUÊS não é complicado nem a língua mais difícil do mundo... Talvez alguns 'pedacinhos' mais dificultosos, não todos. Idéia quase generalizada de 'não-escrever-e/ou-falar-tudo-errado'... e as gramáticas seriam sempre doutrinárias, universitárias, conceituais, estigmatizantes. Talvez. Em parte. Quem (não) garante? /Eternizada a corretíssima frase "Fi-lo porque qui-lo", de exótico e extravagante ex-morador do Planalto........./ A língua é comunitária, nunca isolada em livro-comandante. O grupo, de forma compreensiva, usa a língua de incontáveis falantes e ouvintes. Comunicação é isto: língua verbal (a linguagem mais importante), gestos significativos, mímica, relações sociais em geral. ----- O povo brasileiro, como todos os outros, não é homogêneo-compacto-igualzinho-espelhado-inatingível. Diferenciações e variações existem - as geográficas (distantes países do mesmo idioma) e as regionais (os falares -carioca, paulista, mineiro etc.), também as diferenciações históricas ou temporais. ----- A linguagem oficial é a ensinada na escola e usada em livros e imprensa; mas tem a do analfabeto, do menos escolarizado e dos rurais; e no meio a linguagem média. Assim, linguagem culta (A), média (B) e inferior (C), individualizadas - todos falam português: o empresário, o bancário, o balconista, o lavrador......... Cruzam-se espaços e a sociabilidade das classes. Quanto à época e à geografia, nada comum entre a lírica trovadoresca medieval, Luís de Camões, João Simões Lopes Neto, Rui Barbosa, Luandino Vieira, Jorge Amado... - linguagens diferentes, modalidades do idioma... Portugal e África lá e nós cá, com as nossas diferenciações internas. ----- O que seria, portanto, "o português correto"? Ah, sim, uma totalidade com diversas subtotalidades. E o português dito brasileiro? Cada segmento, uma peculiaridade linguística, impossível ignorar diferenças numa realidade tão complexa, num país 'quase' (adoro esta palavra!) continental. O português brasileiro é gigantesco... Vejamos: não só a modalidade das classes dominantes, sempre ativas, em distorção da realidade, tentativamente impondo a norma geral, que tentaram forçar como a do Rio de Janeiro, até nos títulos de gramáticas e dicionários, e na literatura. Assim, o 'falar errado' seria um desvio dessa dita 'fala culta' - conflito entre 'a boa linguagem' e a linguagem real. Existe (ou não?) a norma geral do português brasileiro?

2-----Três tipos de DISTORÇÕES da realidade no ensino da língua --- a-TEMPORAL - Em toda língua, definidas fases históricas - três fases em português, que são a dos trovadores (criação da sociedade galaico-portuguesa), a da época dos descobrimentos (outro tipo de sociedade, incluindo Camões) e a atual (bem diferente das anteriores). Lingua dinâmica evolui dentro da sociedade em que é produto e instrumento. Para cada produto novo ou comportamento, surge nova expressão linguística... depois, o objeto se torna antiquado, arcaizante e a palavra também desaparece Exemplos: lampião de gás e vitrola. ----- O latim foi levado para a Península Ibérica e na Lusitânia (antigo nome de Portugal) sofreu muitas adaptações locais, também recebendo invasões germânicas e influência de povos vizinhos; maior enriquecimento com as aventuras marítimas e o progresso sócio-econômico em geral. Esse português veio para o Brasil, depois sofreu novas influências indígenas, africanas e mais tarde foram chegando imigrantes... Hoje, a comunicação é extensa, língua sempre evoluindo no decorrer do tempo, e o sistema linguístico permite o acúmulo de várias experiências, nada imutável, nada eterno. Para os planejadores da politica do ensino da língua nacional (gramáticos, didatas, muitos professores, elite sócio-econômica), a língua é estática - todo exemplo antigo e reacionário sai de exemplos de autores clássicos portugueses - Fernão Lopes, Eça, Camilo, Camões, de séculos anteriores; também citados os brasileiros Alencar e Machado - enfim, os que 'conhecem bem' a gramática, citados até em livros intitulados de contemporâneos. Diz-se que os portugueses falam "melhor do que nós" e estes acham que o brasileiro "fala tudo errado". Servilismo vernacular, o nosso? ----- b-ESPACIAL - Desde o Brasil-Colônia, os bacharéis iam para Coimbra... e ainda hoje o 'bom produto' é norte-americano, japonês ou europeu. O que dizer então da nossa cultura e da linguística? Reversão agora devido ao grande sucesso das nossas telenovelas, a partir de "Gabriela" em Portugal, 1977 - a consequência é a intromissão de nossas expressões, gírias, sintaxe e pronúncias no português lusitano, em especial entre as pessoas comuns e os jovens, não os presunçosos tradicionais e reacionários detentores do poder. E temos a Rede Globo exportando programas para o mundo inteiro... o português do Brasil a caminho de ser modelo qualitativamente, inclusive escritores de lá imitando os daqui - a língua é a mesma, cada país com sua modalidade específica. Outra distorção espacial é a crença da superioridade da língua urbana superior à do campo ou roça - em intensidade maior de comunicação e cosmopolitismo, sim, no entanto o conceito de correção prevalece na prática. No português culto, "Todas as meninas pequenas chegaram atrasadas" (seis vezes informação de feminino plural) Xe no falar caboclo, "As menina pequena chegô tudo atrasado" - para o gramático elitista, deformações...- o português caboclo é o resultado de uma evolução histórica e funciona tão bem como o culto, frase perfeita do ponto de vista da informação a ser transmitida, relativa ao contexto sócio-econômico e sócio-cultural. ----- Qual a função da escola que tem o favelado e o caboclo? Para a ideologia das classes dominantes, a função é melhorar e 'endireitar' a linguagem deste segmento populacional. Por trás da postura ideológica, o preconceito (deformação desde a Idade Média: habitante das vilas "grosseiro-rude-perigoso... vilão") da ausência de civilidade-cortesia-afabilidade-delicadeza etc. Pelo fato do Rio de Janeiro ter sido sede da corte e posteriormente capital federal, a crença da superioridade do falar carioca, norma para todo o Brasil, isto formalmente estabelecido em dois congressos - "Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada", São Paulo, 1938, e "Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Falada no Teatro", Rio de Janeiro, 1958. Alegação de que até MARIO DE ANDRADE concordou com a ideia; acontece que era escritor modernista, iconoclasta, e anunciou uma "gramatiquinha do português brasileiro", sem ser um linguista acabado. Quanto ao uso da língua, os estilistas estão com a palavra. Não se pode considerar o português carioca como a norma, o modelo: fato óbvio que a língua de um povo é usada por esse povo e o brasileiro não é só o carioca; aceitando desta forma, é como se as outras regiões em nada tivessem contribuído para a criação e evolução do português brasileiro. Em São Luís, falam mais próximo do português lusitano, levada para lá no passado. Cientificamente, o português carioca é um dos mais marcados, pelo menos na pronúncia -a fricatização do 't' e do 'd' antes de 'i' (como em 'txia') e a palatalização do 's' final da sílaba (como em 'noix'). Considerada como um todo, a língua dos brasileiros envolve ser centrípeta e unificadora, resultado de comunicação a nível nacional e até internacional, incluindo Portugal, Angola etc., e centrífuga, diversificadora, resultado da expressão das especificações regionais, grupais e até individuais. ----- c-SOCIAL - Deslocamento de tornar a linguagem de uma classe como se fosse de toda a nação, numa sociedade dividida em classes antagônicas: a elite dominante oprime trabalhadores com ameaças de demissão e prisão; a classe média, sustentáculo imediato do poder dominante. O idioma é o reflexo dessa divisão, a língua sendo produto e instrumento da sociedade, e seu ingrediente mais importante. Diferenças de nível de formalidade - linguagem culta (literária, erudita), média e popular. Classes correspondentes na pirâmide: A-elite dominante / B - classe média / C-trabalhadores, roceiros, favelados, marginalizados etc. Considerada norma oficial a linguagem da classe dominante - distorção social, resumo da temporal e da espacial. ----- Linguagem A - tida como ideal pela comunidade (não pelos gramáticos) como um todo - altamente formal e não varia de região para região; sendo ideal, mesmo sem ser usada, sempre consciência de se falar e escrever 'daquela forma'. Linguagem C - extremo oposto, evitada por denotar condição social 'inferior'. Nivel B - intermediário, neutro, sem compromisso por excesso de formalidade ou de vulgaridade. ----- Se a língua do povo brasileiro é usada pelo povo brasileiro, "Amanhã nóis vamo trabaiá" e "Amanhã nóis vai trabaiá", esta expressão C pertence ao português brasileiro. ----- Para as classes dominantes e os gramáticos, a língua é como as leis: norma para ser obedecida. ----- O Projeto NURC (Norma Urbana Culta) é altamente elitista e só inclui a linguagem dos grandes centros. Consequências da distorção social: considerar a linguagem das elites como sendo a de toda a sociedade, incluindo a reforma ortográfica de 1971 - retirada de trema ou acento onde não precisava, não podia ou não existia. Só+zinho=sòzinho, só+mente=sòmente, avô+zinho+avôzinho - neste caso, o acento caiu. Oposições fonológicas em fôrma/forma, êle/ele(nome da letra), pôde(passado)/pode(presente) - fonemas distintos, vogais abertas (é, ó) X fechadas (ê, ô) - acento não poderia ser suprimido. Não se sabia de trema em saudade, vaidade etc. - caiu. Há outras inconsistência da reforma - em pôde, pára, pólo, pêlo, acento permanece. MONTEIRO LOBATO não observava certas regrinhas gramaticais.

3-----A QUESTÃO DA NORMA --- Todo país precisa de uma norma linguística oficial, geral. A língua é o mais importante componente da cultura de um povo. Ih, complicação quando se verifica que a língua usada pelo povo brasileiro não é um bloco compacto. Na heterogeneidade dialetal, necessária uma norma oficial geral a fim de assegurar a intercomunicação entre as diversas regiões e diversos segmentos da comunidade de língua portuguesa. Com tantas diferenciações temporais, espaciais e de classe, o que é a NORMA LINGUÍSTICA BRASILEIRA? Dois conceitos: norma é o "como se diz" e norma é "como se deveria dizer". A norma que o sistema de ensino (gramáticos, professores, escola etc;) tenta impor é a segunda, pois o povo, mesmo o culto, não fala nem escreve com o que ela prescreve, daí as gramáticas intituladas normativas. Na realidade, existem tantas normas como forem as modalidades linguísticas usadas pelos brasileiros: as normas temporais (medieval, seiscentista e atual), as espaciais (carioca, paulista, mineira etc.) e as sociais (culta-A, média-B e popular-C) - todas equivalentes ao como se diz e determinadas circunstâncias. O que interessa é a norma geral, ainda não solucionada. Com efeito, qualquer delas seria considerar apenas uma parte como se fosse o todo - levar em conta a linguagem de todo o país, não privilegiar determinada região, época ou classe social. O chamado Projeto NURC está muito lento. ----- Os gramáticos impingem uma norma que nada tem a ver com a realidade linguística concreta do Brasil e melhor é estabelecer uma norma mais democrática, com base na linguagem culta dos brasileiros. 1-Apesar de ainda elitista até certo ponto, ela se baseia na linguagem de brasileiros e surgiu no contexto das vicissitudes históricas porque passou a nossa sociedade. 2-Brasil inserido num contexto mais amplo, intercâmbio de diversos tipos com o mundo inteiro - mais adequada a linguagem culta, mais cosmopolita, comunicação mais intensa em níveis mais abstratos, mais internacional: informações mais sofisticadas no contexto da moderna tecnologia. 3-Nela todo o repositório cultural do povo brasileiro, nosso acervo histórico - linguagem culta, norma geral brasileira. 4-Mais experiência histórica, permitindo maior distanciamento em relação ao contexto em que é usada - as outras normas muito ligadas apenas a um contexto determinado - norma culta, força unificadora e padronizadora. 5-Norma geral para o Brasil, estabelecida com base na linguagem das pessoas cultas, não a norma erudita das gramáticas lusitanizantes. ----- Diferenças Brasil X Portugal - colocação pronominal: próclise (preferência brasileira - pronome antes do verbo), ênclise (após), mesóclise (no meio). ----- Erudita, a norma línguística geral da língua portuguesa; no Brasil, normas temporais: colonial, imperial, atual; espaciais: carioca, paulista, mineira etc.; sociais ou de nível de classe: culta-A, média-B, popular-C. A linguagem popular é a cabocla; mesmo a pessoa culta usa a linguagem média com familiares, amigos e em situações diversas; a norma culta, ainda por ser definida, a dos professores, juízes e políticos, linguagem da escrita, um tanto erudita-lusitanizante, aprendida na escola. ----- Cada norma em seu contexto porque a linguagem só existe em função de cada comunidade. Para que todos os segmentos da sociedade brasileira dominem a norma culta, utópico seria acabar com injustiças na distribuição de renda e a miséria do povo, pois com dignidade todos teriam acesso à linguagem culta. ----- O que é "ser certo" e "ser errado"? Quem estabelece a norma? Os gramáticos ou os usuários? Errado é por que se desvia do padrão estabelecido? Sim, os usuários, a norma estabelecida democraticamente coordenando os interesses comuns, em estabelecer a palavra com o gramático, isto é, norma de cima para baixo, instrumento do sistema dominante (elite). A língua éum fenômeno sócio-cultural - a comunidade brasileira apresenta diversas facetas e a língua falada reflete essa diversidade; o caboclo não fala errado na sua comunidade e sim diferente porque seu contexto sócio-econõmico é diferente. Não aceitar a frase "Amanhã nóis vai trabaiá" num ofício ou discurso parlamentar e o caboclo não pode aceitar que o gramático reacionário e pedante chegue na comunidade e o corrija para "Amanhã nós trabalharemos" - a linguagem mais adequada do caboclo é a criada e usada por ele.

4-----A QUESTÃO DO ENSINO---É na linguagem culta das bibliotecas, jornais e textos escritos em geral que se processa todo o ensino do vernáculo, cobrada de candidatos vestibular,emprego público ou grandes empresas; não há como negar no atual desenvolvimento da sociedade brasileira que se deve ensinar na escola a norma culta, linguagem mais próxima das classes dominantes, dar ao aluno os mesmos recursos de expressão e comunicação. Não impingir a norma lusitanizante nem assumir uma postura de demagogia barata que o importante é se comunicar; mas quem não leva a linguagem culta aos aprendizes faz o jogo dos dominadores e deixa o povo na ignorância sob opressão e discriminação. ----- Redigir é uma das habilidades linguísticas. O ser humano é eminentemente social e a função da escola é continuar sua socialização, iniciada no lar - educar é adaptar o inivíduo a padrões pré-existentes, mas que não são eternos, imutáveis. Não exigir do aluno formas que só existem em Portugal, obstáculo formal na produção de textos (não apenas comunicar, transformar em comum, igualar-se). Bem expressar-se, produzir textos, pressupõe conhecer técnicas e instrumentos de produção, ou seja, signos, palavras e regras para o uso - produzir textos é exteriorizar conteúdos e só se exterioriza o que já foi interiorizado; portanto, só pedir para redação assunto que o aluno conheça e domine, sensorial e racionalmentee. Sobre a "liberdade", por exemplo, o resultado pode ser catastrófico, por nunca ter pensado abstrata e conscientemente sobre o assunto. O treinamento é como qualquer outro: só se aprende a produzir bons textos, lendo quem já escreveu... só se produz um texto se houver um conteúdo a transmitir. ----- Interessante começar com estorinhas -início, meio e fim (na forma, introdução-desenvolvimento-conclusão). A seguir, outras modalidades de texto, como a descrição de uma cena presenciada, realidade concreta. Em seguida, texto dissertativo, inclusive sobre e liberdade. Não corrigir nas redações iniciais. Tema livre, redação feita em casa, 3 ou 4 alunos lendo o texto para a turma. (cópia em casa de meia página de um texto escrito qualquer: romance, artigo de jornal, enciclopédia etc.) e os alunos passam a gostar da disciplina língua portuguesa. ----- Para gramática ficar menos árida, após grau dos substantovos, uma redação sobre "pequenininhos e grandalhões". Não use a caneta vermelha como arma, caçando "erros de português"...

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FONTE:

"O que é português brasileiro", livro de HILDO H. DO COUTO, 1986.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 01/12/2018
Código do texto: T6516617
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