INÊS DE CASTRO, A PERSONAGEM E O MITO
TEXTOS-BASE:
LUÍS DA CAMÕES, "Os Lusíadas", episódio de Inês de Castro, Canto III, estrofes 118/135.
GARCIA DE RESENDE, "Cancioneiro geral", "Trovas à morte de D. Inês de Castro.
INÊS DE CASTRO viveu de 1320 a 1355, durante o reinado de D. Afonso IV, da Dinastia de Borgonha - amor ilícito com o príncipe Dom Pedro e a trágica morte, tema rico de aspectos e significações de que se ocuparam CAMÕES e GARCIA DE RESENDE, assim como António Ferreira (A Castro, 1587), Jorge de Lima (Invenção de Orfeu, poema XIX, 1952) e outros. Diversos testemunhos literários, principalmente em CAMÕES e GARCIA o fundamento mítico da história de INÊS, seu significado universal e eterno ao longo dos séculos, gerando o mito, indivíduo-símbolo. O ponto alto no "Cancioneiro geral" é o lirismo suplicante e contemplativo, grande incidência do tema do amor-sofrimento: as "Trovas" se inserem no espírito geral do cancioneiro, enquanto no 'poema épico' é um acrescentador de lirismo.
Nas "Trovas", a própria INÊS fala de seus amores, após uma única estrofe introdutória de narrador impessoal - este aspecto relaciona as "Trovas" à tradição das cantigas de amigo. Importante também a filiação a uma longa tradição literária de "descida" aos infernos, em que o personagem após a morte relata dissabores e penintencia-se de culpas, recurso desde poemas homéricos. Nas "Trovas", a composição alegórica reduz-se a uma só figura, não um ser mitológico e gasto, mas ligado intimamente ao contexto histórico nacional - poeta quase ausente, mas com presença vigorosa no 'poema épico', onde conduz a ação e inclui um ponto de vista emocinado, aderindo à personagem por meio de um discurso emotivo, a CAMÕES importando menos a própria história de INÊS-indivíduo do que a universalidade e a profundeza da história, com repercussção em todos os homens e também nele próprio, autor. Pela concepção renascentista da imortalidade, não só pelos feitos o homem se eterniza, mas também através destes feitos transformados em obra de arte. Somente assim, o caso triste de INÊS DE CASTRO veio a ser digno de memória um caso "que do sepulcro os homens desenterram". Portanto, narrador em ponto de vista ascendente em importância em CAMÕES e GARCIA, talvez da própria importância de INÊS-individuo que passa a ser, além do texto, pretexto - entretanto, em nenhum dos dois se perde o caráter objetivo dos fatos.
Em GARCIA, INÊS conta a história desde antes de conhecer Dom Pedro, assim como os tempos felizes que se sucederam: o núcleo do interesse é o momento que antecede à sua morte, a estrutura lírica passa à dramática, com a fala de Inês, do Rei e de um cavaleiro -- em CAMÕES, intereferem também as palavras dela, mas sem narrativa estrutura dramática ou diálogo: a expressão lírica de subjetividade sublima a significação trágica do episódio -- nas "Trovas", história bem definida, com princípio-meio-fim -- no 'poema épico', a história se abre: da ação para a significação, do presente para o futuro, com a repercussão de INÊS e sua tragédia no tempo e no espaço. "Vós, ó côncavos vales... por muito grande espaço o repetistes" e "As filhas do Mondego... transformaram".
Uma das características do "Cancioneiro geral" seja a progressiva canalização da mulher em relação à poesia medieval mais remota, INÊS, em GARCIA, é quase nada corpórea, não há caracterização física, apenas sentimental - sendo ela o agente de sua caracterização, não caberia uma fala de auto-louvação, contradizendo seu aspecto de inocência e candura -- em CAMÕES, um narrador exterior aos acontecimentos, aspectos sublinhados pela beleza física, através da metáfora e do relacionamento íntimo com o sentimento. "Estavas, linda Inês, posta em sossego." "Nos saudosos campos do Mondego, / dos teus formosos olhos nunca enxutos." "No colo de alabastro, que sustinha / as obras com que Amor matou amores / aquele que depois a fez Rainha, / as espadas banhando as brancas flores / que ela dos olhos seus regadas tinha." "Assi como a bonina... co'a doce vida..." A beleza de INÊS está além disso, apoiada em fragilidade e brandura, recalcadas no contraste com a ferocidade dos algozes - é a INÊS "mísera e mesquinha", jovem e doce mãe e amante, "que furor consentiu... dama delicada?" -- em GARCIA, a fragilidade também é posta em relevo no contraste com os agressores, mas acrescida por sua submissão, subordinada ao elemento mais importante da ausência de culpa (o aspecto ético, quase ausente em CAMÕES, é vital em GARCIA). "Usai de / mais piedade... pois que nunca fiz maldade." -- A INÊS de CAMÕES toma lugar no banco da acusação mais do que no de acusado, ataca mais do que se defende - a figura do Rei é menos branda aqui do que nas "Trovas", embora em ambos os textos haja um duplo aspecto -- em CAMÓES, "o Rei já movido a piedade", o "benino", mas também o "avô cruel", que não tem respeito "à morte escura" da donzela, não movido pela piedade nem pela "culpa que (INÊS) não tinha" -- em GARCIA, o Rei "houve (de INÊS) compaixam", "como seu rosto lacrimoso... mui cristam e esforçado", mas termina por imitar o gesto de Pilatos, dizendo "Se o vós quereis fazer, / fazei-o sem mo dizer, qu'eu nisso não mando nada". A ausência de culpa é o aspecto principal de INÊS em GARCIA, e em CAMÕES avulta o contraste entre sua fragilidade concreta e a força abstrata do Amor, sua firmeza e fidelidade, que vão conduzir ao engrandecimento lírico da personagem e sua mistificação: INÊS em luta contra o Destino adverso, INÊS-heroína trágica que a morte não conseguirá apagar. (O Rei) "Tirar INÊS ao mundo... crendo co sangue só da morte indina / matar do firme amor o fogo aceso" "Se de humano é matar, a quem soube vencê-la".
(Segue.)