OUTRA VEZ CAMUS ( 1913/1960 )
1---No Brasil, agosto de 1949, já era famoso... - três anos antes, nos States, sob olhar suspeito das autoridades, visto como "um comunista perigoso" - aqui, recebido com homenagens oficiais e convites cerimoniosos, sempre os membros da 'intelligentsia' local disputando-lhe companhia e atenção. Enfado nestas paqueras, pois sua vida era simples, problemas de saúde, depressão, fraqueza, quase ideias de suicídio: viagem transformada em pesadelo? Recaída de tuberculose... ----- Em 1978, publicados na França os 48 dias no Brasil, "Cadernos de viagem", sem esconder incômodo e melancolia. Para ele, São Paulo era uma Orã de maior porte - sobre existencialismo, ironizou que achava a cidade extraordinária, um fenômeno, ninguém ainda lhe fizera esta pergunta. ----- Ácidas observações sobre a vida brasileira e espanto sobre contrastes sociais - "favelas a cem metros do luxo" e dos palacetes - e violência do trânsito - "motoristas alegres loucos ou frios sádicos", atualidades reais não atribuídas a seu mau humor. Corpo diplomático ficou perplexo com temas sensíveis e declarações polêmicas: "Brasil, país da indiferença e da exaltação". ----- No Rio, o lado não ruim. Teatro Experimental do Negro, trupe de ABDIAS NASCIMENTO encenando "Caligula" sob perspectiva afrobrasileira - ele admirou os 'romanos negros' e lhe pareceu uma representação cruel, viva e vagamente sensual. Abdias o levou ao município de Duque de Caxias e terreiros de candomblé, que lhe causaram forte impressão, e a uma noitada na gafieira Elite, no centro do Rio. Fez amizada com MURILO MENDES e uma moça de "olhos verdes de mãe malvada". Com OSWALD DE ANDRADE, em Iguape, interior de São Paulo, presenciou a festa anual do Bom Jesus; durante os rituais, fiéis arrancam pedaços de uma pedra com poder de cura - esta lenda lhe inspirou um conto, "A pedra que cresce" (publicado em "O exílio e o reino", 1957). Na verdade, a pedra jamais cresceu. Fotografado com LINA BARDI, arquiteta modernista, comendo feijoada na casa de Oswald. Este o levou a uma penitenciária, conversou meia hora com um detento e opinou: "É a sociedade que faz o criminoso." ----- Fora de seu meio natural, se sentia efetivamente um estrangeiro, como se sentiu aqui.
2---Centenário de nascimento em 2013. - "O estrangeiro", grande romamce do argelino ALBERT CAMUS, publicado em Paris em 1942. Personagem Mersault matou um árabe sem saber por quê. Sem motivo externo, será que o sol forte o atordoava? Assim, destruiu o equilíbrio e a sensatez do mundo, pois nada justifica um ato irracional - proximidades de absurdo e liberdade... impulsão sem sentido., intolerância arraigada e primitiva. Personagem recebera noticia da morte da mãe, que estava num asilo, frio telegrama com leve atraso. Dois de licença no trabalho, "A culpa não é minha", pensa. Tranquilo. Depois do enterro, caso encerrado, normalidade - fatos distantes que nõ lhe dizem respeito: só não quer vê-la morta no caixão aberto. Luz intensa na sala do velório - pensa, então, que a morte é uma assepsia. Durante o enterro, sol forte de derreter asfalto... e a consciência. ----- De volta ao trabalho, patrão aborrecido, dois dias de folga e fim de semana, ganhara quatro dias. Pensa que a culpa não é nossa, mesmo nos sentindo um pouco culpados e ninguém é responsável por nada. Nada mudou com a morte da mãe, o que justifica sua indiferença e tédio. O tempo não pára. O vizinho Raymond Sintès é contraventor, à margem de convenções e regras, também não responsável por isto - neste mundo de autômatos, cada um age "como deve agir" e isso é tudo. Aí, vem a briga com o árabe que irã matar. "...não fui eu que provoquei. Ele que quis." Age por reflexos, responde a provocações, defende-se, nunca autor de seus atos, nunca assina sua própria existência. Triste ideia contemporânea: o autor morreu. ----- O sol pesado lhe aumenta a indiferença. Relaciona-se com certa Marie que pergunta se quer casar-se com ela. "Tanto faz" - não existem sentimentos mas posições. Não existem escolhas - o mundo é um taboleiro no qual o destino sonolento joga a sorte. ----- Matou o árabe só porque o amigo Raymond se sentia perseguido por ele - na praia, o árabe os olhava como se fossem pedras ou árvores mortas. Mersault é preso, promotor tenta encontrar um motivo que justifique o crime horrendo, mas nada encontra, nada faz sentido, apenas impulsos; não razões, mas irracionalidade......... como nos dias de hoje. Atualidade de Mersault, do livro, da presença atordoante do escritor argelino, vivo, ressuscitado entre nós. ----- Preso, espécie de prostração salvadora, sono leve e sem sonhos. No julgamento, advogados perdidos na ausência de provas materiais, passam a agir como psicólogos ante um caráter vazio e o próprio Mersault não se sente culpado, sente-se um boneco, arrastado pela Terra por um destino mau e traiçoeiro... vida irreal e estúpida. ----- Há uma sentença célebre de JEAN-PAUL SARTRE: "Não importa o que os outros fazem da gente, mas o que a gente faz do que os outros fazem da gente." Para Mersault, sentença impensável - não responsável por nada, limita-se a sofrer e reagir. Não dono de seus atos, não dono de si, não pensa. Haverá um "si" ou somos todos máquinas, ligados a fios e satélites, respondendo mecanicamente aos desejos de um grande deus inerte e inevitável? ----- Mersault não tem dúvidas nem pensamentos, nada no peito vazio: é um fantoche, um embriagado ou drogado ou fanático que cumpre a lei que lhe é ditada ou um ventríloquo, boneco humano que chegou a um limite em que a humanidade é só um breve resto de memória.
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NOTAS DO AUTOR:
ORÃ - Cidade no litoral mediterrâneo da Argélia, cerca de um milhão de pessoas, na época, área metropolitana para muito mais...
ABDIAS NASCIMENTO - Poeta, ator, escritor, dramaturgo,a artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras.
FONTES:
"Uma vista problemática: a visita de Albert Camus ao Brasil" --- "Mersault hoje", artigo de José Castello - Rio, jornal O GLOBO, 2/11/13.
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