E, então, que país inclassificável é este? Affonso Romano de Sant'Anna + Arnaldo Antunes(1)

Por Fabrício de Andrade Raymundo

Arnaldo Antunes é poeta contemporâneo, de origem, ao que tudo indica, elitista, central, com acesso às informações e detentor de grande conhecimento. Diz este neopoeta sobre os rasgos de “sua” gente: inclassificáveis. Partindo desta assertiva-título da canção de Antunes, temos desde a primeira estrofe uma mistura em forma de confrontamento entre as distintas raças, que mais a frente se desdobram por meio de neologimos vários. Estariam aí a nação, o país?

O coloquialismo arbitrado e a zeugma que esconde os verbos na primeira estrofe, trazem um aspecto mais urbano à proposta do autor. A segunda estrofe dilacera tal aspecto mundano, verbal, um tanto quanto alheio às formalidades dogmáticas da língua portuguesa.

Como primeiro produto a partir das fontes primitivas – o índio, o negro e o branco – surge a afirmativa: “aqui somos”. Isso é fato consumado, notório, mas têm-se a dúvida: de que forma? Como assim? Inclassificáveis. Mestiços, mulatos, cafuzos, pardos, mamelucos, sararás parecem querer mostrar uma raça única, a raça híbrida brasileira, a raça da mistura verde-amarela. Seríamos então um país desclassificado? Ou apenas inclassificáveis?

Crilouros, guaranisseis e judárabes, algo irreal, novas palavras que nos remetem ao caráter de impossibilidade se tomarmos como foco as nações originárias – das matérias primas em questão – dessas prováveis (ou não) neo-pseudo-raças brasileiras.

Vê-se então misturas como: de indianos e nômades (indociganagôs), de americanos, quilombolas e latinos (os ameriquilatos) e um dos que mais chamam a atenção o leitor: os iberibárbaros, a mistura de europeus ocidentais com bárbaros. Mas quem seriam estes bárbaros? Seriam os bárbaros nórdicos, “vikings”. Ou os doces bárbaros da tropicália. Não. Creio que sejam os simples e rudes, brutos brasileiros da labuta cotidiana. Estariam aí os formadores deste país? Mas, que país é este? (2)

Inclassificável, mas o autor é certeiro quando afirma em tom “plural”, “somos o que somos”, nos remetendo à força subjetiva que a realidade nos condena, ser o que se é, apesar de não sabermos o que somos realmente. Seguindo no raciocínio, chegamos ao “xis” da questão, às classes, não à luta de classes marxista, mas depuração do substantivo classe que se adjetiva , tornando-se “inclassificáveis”, incorporando uma ampla significação. Ressoando como indecifráveis, contudo existentes.

Nas sexta e oitava estrofes, além da estrutura sintática similar, temos as presenças de teses e antíteses, trazendo à tona o estilo barroco. Quanto a estas, a carga cosmopolita do poema recai quase que por completo sobre elas; temos representadas a pluralidade de etnias, de culturas, da religiosidade, das leis e convenções, harmonicamente conviventes.

Outro aspecto importante está fortemente ilustrado na figura do astro maior, o sol. No trecho: ... “não há sol a sós” ... (e não sóis) que vem a quebrar a seqüência da estrofe anterior, a qual supostamente induziria o leitor a essa leitura (sóis). No entanto, o verbo (haver) em “há sol” conectado à preposição (a) de “sós” nos desvela a relação celestial – abençoada pelo astro maior - existente entre as raças de forma uniforme, tolerantemente conjugadas, culminando como condição “sine qua non” (3) à miscigenação que garante a existência do sol e da nação. Daí podemos deduzir o seu brilho, seu calor, sua unicidade, sua beleza, sua luz. Sem o “multi” o sol e a nação são nada.

Enfim, o texto de Antunes nos traz a certeza de que sua carga semântica, com redefinições de significados, com as conexões do rito “yoruba” africano aos oxigenados que reverenciam o sol, do misticismo e a miscigenação, remontam essa dialética cultural-psicodélica brasileira de uma forma verossímil, firme mas indecifrável, de grandioso valor incalculável, ou melhor inclassificável. É dizer, o Brasil é “multi” etecétera e tal, e como diria o autor Ariano Suassuna por meio de seu personagem Chicó: “não sei, só sei que foi assim!”.

NOTAS

(1) Análise ante os textos: Poema-canção “Inclassificáveis” de Arnaldo Antunes e poema “Que país é este?” de Affonso Romano de Sant'Anna.

(2) Menção a obra de Affonso Romano de Sant'Anna– Que país é este?

(3) “Sine qua non” ou “condição sine qua non” originou-se do termo legal em latim para “sem o qual não pode ser”.Refere-se a uma ação, condição ou ingrediente indispensável e essencial.

TEXTO FONTE

Inclassificáveis - ARNALDO ANTUNES

que preto, que branco, que índio o quê?

que branco, que índio, que preto o quê?

que índio, que preto, que branco o quê?

que preto branco índio o quê?

branco índio preto o quê?

índio preto branco o quê?

aqui somos mestiços mulatos

cafuzos pardos mamelucos sararás

crilouros guaranisseis e judárabes

orientupis orientupis

ameriquítalos luso nipo caboclos

orientupis orientupis

iberibárbaros indo ciganagôs

somos o que somos

inclassificáveis

não tem um, tem dois,

não tem dois, tem três,

não tem lei, tem leis,

não tem vez, tem vezes,

não tem deus, tem deuses,

não há sol a sós

aqui somos mestiços mulatos

cafuzos pardos tapuias tupinamboclos

americarataís yorubárbaros.

somos o que somos

inclassificáveis

que preto, que branco, que índio o quê?

que branco, que índio, que preto o quê?

que índio, que preto, que branco o quê?

não tem um, tem dois,

não tem dois, tem três,

não tem lei, tem leis,

não tem vez, tem vezes,

não tem deus, tem deuses,

não tem cor, tem cores,

não há sol a sós

egipciganos tupinamboclos

yorubárbaros carataís

caribocarijós orientapuias

mamemulatos tropicaburés

chibarrosados mesticigenados

oxigenados debaixo do sol

Fabrício de Andrade
Enviado por Fabrício de Andrade em 07/09/2007
Reeditado em 19/09/2007
Código do texto: T642552