FOLCLORE - ALGUNS MITOS: ESTÓRIAS
1---ALAMOA - Feminino de 'alemão', no linguajar do povo. Em Fernando de Noronha, antigo presídio fundado em 1737, aparece à noite, antes da tempestade, um vulto branco de mulher linda, diabrete nua, loura, cabelos soltos, que dança ao som das ondas e dos ventos, na praia iluminada pelos relâmpagos, fantasma quase familiar pela assiduidade. Como todos os fantasmas, não deixa rastro - pertence ao mesmo tempo ao fogo-fátuo, o velho Mboitatá colonial, e ao ciclo das Iáras sedutoras. Em versões, seduz para matar de medo, transformando-se em esqueleto, ou é uma alma penada, em penitência lúbrica de tentação, procurando homem forte que desenterre um tesouro escondido no Pico, baliza de basalto, 332 metros, visível a 30 milhas.
2---CURUPIRA ou CURRUPIRA - Deus que protege as florestas e na tradição secular é um pequeno tapuio, astuto, ágil, com os pés voltados para trás (como os enotocetos de Megastenes, registrados em ESTRABÃO, historiador-geógrafo-filósofo grego), cabelo vermelho ou cabeça pelada, dentes azuis, assobio estridente, sem os orifícios necessários para as secreções indispensáveis à vida, atrapalhando cavaleiros e viandantes. Infinitas lendas de norte a sul - no Pará, o dizem "muciço" (carne sem gordura e osso); na viagem pelos rios paraenses, o som é de uma pancada longínqua nos bosques; os remeiros (remadores) o dizem batendo, com o calcanhar no alto Amazonas e em Óbidos com o pênis, nas sapupemas (nome de uma planta) para ver se estão fortes para aguentar a tempestade, pois a função do Curupira é proteger as florestas e punir quem estraga inutilmente as árvores, punindo sem atinar com o caminho de casa (para quebrar o encanto, fazer três pequenas cruzes de pau e colocar no chão triangularmente), assim explicava COUTO DE MAGALHÃES sobre a autoridade suprema nas matas do Norte e do Oeste do Brasil - arquitetou uma teogonia ameraba e deu escala hierárquica a deuses e subdeuses, obediantes a uma tríade: Guaraci (Sol), Jaci (Lua) e Rudá ou Perudá (Amor, instinto amoroso, ligação), cupido de bronze animando o desejo das cunhãs - os subdeuses protegiam espécies animais e vegetais, proibindo ao indígena a destruição total e desnecessária. Curupira, o primeiro duende selvagem o branco fixou em papel e comunicou a países distantes - ANCHIETA o citou numa carta em maio de 1560, cronistas coloniais o incluiram entre os mais temidos e guerreiros aliados a portugueses confidenciavam pavores. Anhanga dirigia a caça de porte, Caapora, a caça miúda, Curupira chefiava todos os assombros da floresta tropical. BARBOSA RODRIGUES o filiou a mitos asiáticos, vindo nas invasões pré-colombianas, diferentes formas pela imaginação das populações indígenas e mestiças: "No Amazonas, geralmente um tapuio pequeno, 4 palmos, calvo ou cabeça pelada, corpo todo coberto de longos pelos, um olho só, pernas sem articulação, muciço e sem ânus, dentes azuis ou verdes, orelhas grandes, pés voltados para trás, força prodigiosa". No Maranhão, no Espírito Santo e ao Sul, onde espanhóisdominaram, é chamado CAIPORA, CAAPORA, CAIÇARA ou ZUMBI, cães e porcos-do-mato como amigos inseparáveis; em Pernambuco, só tem um pé - em nome ou pseudônimo, agita pavores, poderoso senhor da caça e dono da mata cujos segredos sabe e defende. Parece mais um mito tupi-guarani que de outro povo. A característica de pés virados ao avesso está nos fabulários distantes da literatura europeia e asiática: AULO GELO o registrara na antiguidade, assim como CRISTÓVÃO DE ACUNHA, sacerdote que acompanhou BENTO TEIXEIRA de fevereiro a dezembro em 1639, do rio Amazonas a Belém. Em relato dos tupinambás, os vizinhos matuicés, calcanhares para a frente, deixavam rasto ao contrário - o jesuíta missionário SIMÃO DE VASCONCELOS fez crônica em 1663 em que explicou os matuiús impedirem de serem seguidos. Mito de tribo em tribo - desde os sipaias, estudados por CURT NIMUENDAJU, que são tupis, até os xerentes (acuãs), que são jês; entre estes, URBINO VIANA ouviu que "o BICHO-HOMEM, rei ou governador das caças, é um caboclo grande e cinzento, que não permite que matem bicho novo ou mãe que esteja amamentando; interdita caçada a fêmeas ou o caçador será sempre infeliz.
3---MÃE-DO-OURO - "Ubi est ignis est aurum", latim, 'onde há fogo, há ouro'. A égide das minas, defendendo pepitas e escondendo jazidas, com forma de chama, lume que denunciava o metal e o protegia. Inicialmente, clarão seguido de trovões: relâmpago dizendo a direção da Mãe-do-Ouro e os trovões, a sua cólera. Mito ígneo informe, passou ao ciclo do ouro e, na versão de MANUEL AMBRÓSIO, depois ao número dos fenômenos metereológicos, confundido com a estrela cadente zeladora, capaz de atender pedidos durante a trajetória cintilante (tradição de civilizações caldaicas via Portugal). No Paraná, Mãe-do-Ouro antropomórfica, mulher sem cabeça, escolha feminina tupi-guarani, em cuja teogonia todas as coisas têm 'ci', mãe criadora; em SP, o mito infiltrou-se no ciclo das Mães d'Água, de quem assimilou a sedução. Reside inexplicavelmente numa gruta, num rio, rodeada de peixes, atravessando os ares num cortejo de luzes vivas. Diz CORNÉLIO PIRES que os homens deixam família e amigos arrastados pela Mãe-do-Ouro, tal qual a Iara verde e sonora. Perdida, de ano em ano, sua finalidade protetora, ela converge naturalmente para ciclo dos Batatá, a velha mboitatá com estágios na fase meteorológica. Finda a missão nas minas esgotadas, emigra para outras formas em vida perpétua. A Mãe-do-Ouro aparece do Sul para Leste, entrando nas Missões com índios guaranis, região povoada de lendas do ciclo do ouro, com salamancas, cerros bravos, animais luminosos como nhandus, gatos e teiuaguás, que correm, voam e desaparecem nas coxilhas em halo faiscante; em Minas Gerais, tem forma de serpente, fogo punidor dos destruidores de pradarias, registrado por ANCHIETA; algum fio do folclore árabe, de zaoris, furnas encantadas do fabulário oriental.
4---MAPINGUARI - É o mais popular mito da Amazônia, vivificado pelo medo na população que mora nas matas e nos rios, grandes águas sem nome, caçadores e trabalhadores o citando como demônio do mal, cuja satisfação é aliança momentânea com os cristãos. Fome inextinguível, mata quem encontra. Homem agigantado, negro, cabelos longos o cobrem como um manto, mãos compridas, unhas em garra. Vulnerável pelo umbigo, lugar clássico para a morte dos monstros, como o Lobisomem. Ao contrário de outras entidades fabulosas, não é noturno, seu horário de dormir - perigo está no dia penumbroso nas florestas, obscuridade dos troncos obscuros, num avanço com berros altos e curtos, roucos e contínuos, atordoadores. Origem não muito antiga, nome ausente dos cronistas, comum nas narrativas de seringueiros ou recém-vindos da Amazônia, como STRADELLI e TASTEVIN. Segundo COUTO DE MAGALHÃES, um homem grande, pelos negros por todo corpo e cara, montado sempre em enorme porco, tristonho e taciturno, um grito de vez em quando. É evidentemente um Caapora desfigurado, mito das matas - do africano quibungo, o Mapinguari tem a posição anômala da boca, rasgada do nariz ao estômago, lábios rubros de sangue, pés-cascos pisando ao avesso, como o Curupira. A palavra 'mapinguari' é uma contração de 'mbaê-pí-guarí', que tem o pé torto retorcido, ao avesso. O traço visível da catequese católica é resguardar dias santos e domigos; nem caçador pode caçar nestes dias proibidos ou será morto.
5---PÉ-DE-GARRAFA - Ente misterioso que vive nas matas e capoeiras, visto raramente, apenas soando gritos estrídulos, ora amedrontadores ora familiares como sendo de um caçador extraviado pedindo socorro., porém grito multiplicado e enlouquecedor em todas as direções - deixa sua passagem com um rasto redondo e profundo, sugerindo um fundo de garrafa. VALLE CABRAL, um dos primeiros a estudá-lo, disse-o natural do Piauí, morando nas matas, estatura invulgar, dedução pela pegada enorme na areia ou no barro mole do massapê. ALÍPIO DE MIRANDA RIBEIRO o encontrou em Mato Grosso - homem completamente cabeludo, uma única perna que termina em casco na forma de fundo de garrafa. Não se sabe se come ou é inofensivo.
6---QUIBUNGO - É o papão negro, um Bumann africano que se mudou para a Bahia, vivendo em estórias populares - alinha-se na fileira dos entes espantosos da fauna imaginária porque sua vida é diária: não mito como os outros e sim uma figura, personagem, centro de interesse na literatura oral afro-baiana, com bestial verocidade, feiúra, estupidez e inexistente finalidade moral. Títere poderoso em literatura sem limites, surge sempre num conto romanceado, com versos para cantar (como ainda podemos ouvir na África Equatorial e Setentrional, reino estendido por Angola e Congo, e na China ao ar livre, artistas e "netos" baatardos da Roma Imperial), episódio feliz ou trágico, mas indeterminado, inlocalizado e infixo. Barba-Azul de meninos, Saturno preto, infecundo e bruto, devorador permanente de crianças, variante do Tutu e da Cuca nas insônias - locomove-se nas narrativas infantis, arrastando fome de cem anos.
7---SACI-PERERÊ - Cronistas coloniais não o registraram no Sul, omissão injustificável, influência não semelhante à do Curupira, Ipupiara, Anhanga, Jurupari, Caipora etc. Entretanto, seu domínio é vasto no Sul (não no Norte ou Nordeste), em regiões outrora povoadas pelos tupis-guaranis, de cujo idioma nasce seu nome, criação desta raça migrante, e repúblicas vizinhas, cabelos vermelhos tal qual o Curupira, com naturalidade aborígene. MONTEIRO LOBATO "denunciou" a existência fantástica do duende negrinho, ágil, uma perna só, nuzinho, carapuça vermelha (numa das razões, igual a cabeleira rubra do Curupira - casquete vermelha como atributo sobrenatural), assombra, corre a cavalo e desmancha a alegria de quem encontra. Mito não popularizado nos início da colonização, só aparece em fins do século XVIII. Subindo para o Norte, assimilou elementos que pertenciam ao Curupira e ao Caipora, confundindo-se com a Mati-Taperê; inicialmente, fora apenas uma ave singular, reunindo fábulas e episódios misteriosos; e assim, o Saci, mito ornitológico e local, teve impulso maior. Do Curupira, o sinistro de interromper a carreira para desmanchar nós e tecidos atirados pelo perseguido, desnortear viajantes, fazendo perder-se na floresta, antigo privilégio do Curupira; do Caapora, o assobio, surra os cães, atrasa negócios, pede fumo e protege amigos - monta, faz rédeas das crinas entrançadas como teias, emaranhado impossível de desfazer, e cansa os animais. Aleijado? Em várias tradições sul-americanas, a presença de seres unípedes e poderosos - os maias da Guatemala tinham o deus Hunrakan e os mexicanos veneravam Tezcatlipoca. Para LEHMANN-NITSCHE, representados pela constelação da Ursa Maior, origem astral do nosso mito - os negros contribuíram, assemelhando o Saci ao Gunocô, fantasma protetor das matas. A perna única é recordação clássica do fabulário europeu, seres estranhos como o Ciapodo, o Monocoke e o Troll. A influência portuguesa no mito do Saci-Pererê é maior como duende noturno - o Fradinho-da-Mão-Furada, lenda portuguesa, usa também carapuça escarlate. O uso do fumo é brasileiro: o Yaci-Yaterê dos outros países não pede fumo e sim fogo ou alimentos - no Brasil, o indígena ensinou a fumar ou 'beber fumo', pecado castigado pelos padres, embora sem fundamento teológico. Para BARBOSA RODRIGUES, fumo é presente ritual do caçador ao Curupira, o Caapora herdou o vício e na soma desses elementos o Saci mantém o hábito à custa alheia, como o Curupira ameríndio e a Guiné africana. O venerável ANCHIETA registrou a popularidade literária do Curupira, porém o Saci, mito de existência relativamente moderna, é o demõnio de estórias, anedotas, 'causos' das conversas matutas-caipiras-fazendeiras, assombração inesperada, maliciosa e humorista, que não mais causa medo.
8---VAQUEIRO MISTERIOSO - Em todas as regiões brasileiras de pastoreio, desde o Nordeste, a tradição de um vaqueiro misterioso, sabedor de segredos infalíveis, o cavaleiro mais hábil, afoito, melhor cavaleiro que todos os outros reunidos. Usa vários nomes, não se sabe onde nasceu ou onde mora - aparece nas horas de vaquejada ou apanha de gado novo, ferra ou batida para campear. Vence todos os companheiros, recebe o pagamento, desaparece e surge, vinte ou cinquenta léguas diante, noutra fazenda, nas mesmas façanhas julgadas sobrenaturais. Monta em cavalo velho ou égua aparentemente imprestável e cansada; mal vestido, humilde, sofre remoques de vaqueiros e campeadores, ternina sendo o primeiro, mestre supremo, aclamado herói, desejado pelas mulheres, convidado pelo fazendeiro - recusa tudo e remergulha no mistério. Aparecendo numa fazenda, o vaqueiro desconhecido, cavalo relâmpago, cerca e encaminha sozinho para o curral, em poucas horas, toda a gadaria; galopa léguas em minutos, imobiliza touros possantes com um gesto ou palavra. No Nordeste, nas vaquejadas, derruba e nenhum novilho ou garrote foge à mucica (tique nervoso, cacoete) que o sacode três vezes de patas para o ar, entre palmas - nenhum boi-marruá foge para o mato. Onça-Borges dos mineiros e Ventura do Nordeste, é figura humana, moralmente símbolo de velha profissão heróica, sem registros e prêmios, contando-se as vitórias anônimas.
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FONTE:
"Mitos Brasileiros", de LUÍS DA CÂMARA CASCUDO -Cadernos de Folclore vol. 6 - Rio, MEC, 1976.
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