UMA GALINHA (CLARICE LISPECTOR) ANÁLISE E INTERPRETAÇÂO
Uma Galinha
ERA uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém. Ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou -- o tempo da cozinheira dar um grito -- e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporádicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado em telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser.É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma das asas através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e asim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de ser um ovo. Só a menina estava perto e assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:
--Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou a cabeça de uma galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
--Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
--Eu também!jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a de sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga -- e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito contente, Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho -- era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo doas séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos.
Laços de Família. Contos.
Liv. José Olympio
Ed. Sabiá, 1973
**************************************
Análise E Interpretação Do Conto
A uma situação inicial - do primeiro e segundo parágrafos - segue-se uma quebra do equilíbrio causada pela fuga da galinha, restabelecido novamente e num mesmo grau quando esta é presa.
No sétimo parágrafo, de forma mais atenuada há novamente rompimento do equilíbrio vigente, dado o seguinte motivo dinâmico: "De pura emoção a galinha pôs um ovo."
Ao restabelecer-se, este equilíbrio atinge um ponto superior em relação ao plano inicial: "A galinha tornou-se a rainha da casa" - se considerarmos a posição da personagem protagonista; já as outras personagens atingem o equilíbrio num plano inferior ao inicial, pois a galinha não mais iria servir para a refeição do domingo.
A tensão, pois, percorre o texto até o final. Aí, no desfecho, o equilíbrio volta à normalidade para os elementos da família, quando a galinha é morta; em relação à protagonista há, nesse ponto, nova quebra de equilíbrio, permanecendo o conflito.
Esquematizando
Galinha:situação inicial - (fuga) quebra; (prisão) restabelecimento;(ovo) quebra; (RAINHA DA CASA) restabelecimento um nível acima; (morte/refeição) quebra um nível para baixo.
Família:situação inicial - (fuga) quebra; (prisão) restabelecimento; (ovo) quebra; (expressão afetiva) restabelecimento um nível abaixo; (morte/refeição) quebra;(DESENLACE) restabelecimento um nível acima.
O conto apresenta-se em dois aspectos distintos, porém combinados: o da família e o da galinha.
Há pois dois conflitos:
--inconsciência da família em referência à galinha - matá-la para o domingo - não consideração do valor da sua existência, isto é, galinha enquanto ser. Essa inconsciência, em função de uma ação externa - a fuga inconsciente - é forçada a ceder.
--galinha na procura inconsciente da sobrevivência: ação movida por motivos internos e precipitada por fatores externos.
De um ângulo ficcional fixo o narrador tem, de cima, conhecimento de todos os fatos conforme vemos nos motivos: "O rapaz porém era um caçador adormecido." ; "Não vitoriosa como seria um galo em fuga." ;"Nem ela própria contava consigo, (...) crista" e outros.
Utiliza-se do discurso indireto livre e narra os fatos na terceira pessoa. A comunicação com o leitor se faz através de pensamentos, ações e palavras:
"Nunca se adivinharia nela um anseio."
"Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a."
"Estúpida, tímida e livre."
Há distância entre leitor e narrador, diremos mesmo uma grande distância, no que percebemos um procedimento na direção de levar primeiro à análise, raciocínio e reflexão sobre os fatos. Isso pode permitir que ele, desligado de um envolvimento emocional e isento de uma identificação com a situação, possa alcançar um entendimento melhor sobre alguns aspectos temáticos. Retomaremos adiante este aspecto e completaremos sua fundamentação no contexto da análise.
Dividimos o conto em três partes, a saber:
--situação inicial: "Era uma...........anseio."
--fuga e perseguição: "Foi pois.........indecisos."
--postura e suas conseqüências: "Foi então.........anos."
Nas duas primeiras partes, à uma unidade de ação corresponde uma unidade de tempo, portanto ao tempo cronológico corresponde o tempo psicológico; na terceira parte, à uma unidade de tempo da história, corresponde uma unidade menor do discurso.
Chegamos então à conclusão de que há, na maior parte do conto, um paralelismo entre o tempo do narrador e o das coisas narradas.
O conto começa com um sumário - primeiro e segundo parágrafos - iniciando, parcialmente, a caracterização da galinha.
Temos no terceiro parágrafo uma parte cênica sobre a fuga e a perseguição da galinha.
Ao longo do conto vão-se alternando cena e sumário, havendo quase um equilíbrio entre ambos. Prevalece, entretanto, o sumário, fato esse reforçador da idéia de distanciamento entre narrador e leitor externo.
Temos sumário nos trechos em que a galinha é figura central, caracterizada pela autora; por outro lado, a cena é utilizada nas situações de relacionamento das outras personagens com a protagonista.
Não existe diálogo propriamente dito, isto é, as "falas " das personagens ficam em suspenso; não há respostas ou troca real de idéias, conforme vemos no parágrafo oito, dez e onze.
A cozinha, o quintal e o quarteirão, ambientes do conto, estão ajustados à situação narrada. Existe porém um desvinculamento da personagem em relação ao meio - não há dependência necessária entre ambos.
A ação desenvolve-se num ambiente relativamente restrito e num espaço determinado.
A galinha é uma personagem esférica que evolui ao longo da narrativa. O dono da casa também é uma personagem esférica. As outras personagens são planas de acordo com sua própria condição de estáticas.
A maior caracterização incide sobre a galinha, aparecendo em seguida o dono da casa como uma personagem bem caracterizada.
Vejamos a caracterização da galinha:
de domingo - ainda viva (oposição)
curto vôo - vôo desajeitado (paralelismo)
hesitante - trêmula (paralelismo)
alegre - triste (oposição)
muda - concentrada (paralelismo)
nada - uma galinha (oposição)
exausta - velha (paralelismo)
suave - arisca (oposição)
apatia - sobressalto (oposição)
rápida - vibrátil (paralelismo)
inconsciente - vazia (paralelismo)
Notamos uma alternância de antíteses e paralelismos. Esse procedimento nos remete ao problema da insuficiência dos vocábulos em seu poder significativo. Talvez, o dizer de várias formas, através de sucessivas nomeações possa traduzir a intenção da autora de mostrar a incapacidade da linguagem para exprimir exatamente o que se sente e também para definir os objetos.
Reafirmando o conteúdo semântico, a mãe aparece como figura apagada e não dinâmica, pouco caracterizada. Notamos porém , através dos motivos recorrentes - "mãe cansada" -> mãe; "velha mãe habituada" -> galinha - um paralelismo entre a mãe e a galinha.
Assim, é através da galinha que se insere no conto a problemática da mulher dentro da comunidade.
Constatamos no conto a presença de duas personagens atuantes:
-a galinha - protagonista
-o rapaz - antagonista
As outras personagens, embora exerçam uma função definida no contexto narrativo, permanecem num segundo plano.
O tempo pretérito imperfeito "era" dá-nos uma idéia de indeterminação no tempo. Essa idéia subsiste ao longo da narrativa, principalmente nos momentos em que aparece o sumário.
Isso vem mais uma vez corroborar nossa afirmação do distanciamento do leitor externo. Já nas cenas, o emprego do pretérito perfeito permite uma certa aproximação deste e é o fator necessário para atraí-lo.
O início antecipa o fim pois o termo "ainda viva" insere uma conotação de instável para a situação.
Inesperadamente a galinha de domingo foge e, de maneira instintiva, mas insegura, procura escapar. Presa, de pura afobação, ela põe um ovo. Diante desse fato e por instância da filha deixam de matá-la. Ela passa a ocupar um lugar privilegiado dentro de casa, sem, no entanto, disso ter consciência. Finalmente, um dia, matam-na e comem-na e passam-se os anos.
Para escolha da galinha "apalparam sua intimidade com indiferença."
"Na fuga", ela não era "vitoriosa como o galo", nem "contava consigo como um galo crê na sua crista", quando foi perseguida pelo rapaz.
No nono parágrafo temos a oposição "não era nada" - "era uma galinha."
Ela está desempenhando instintivamente sua função, sem consciência do ato - perpetuação da espécie de maneira inconsciente. Nesse momento o que prevalece é a afetividade - "seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas (...) um ovo."
Através desses motivos recorrentes no conto desnudamos a plurissignificação e o simbólico no conto, sugerindo entre outros, os seguintes temas;
-- no plano moral: a mulher, escolhida com indiferença para satisfazer as necessidades do homem;
--no plano social: supremacia do homem sobre a mulher, vigente há muito tempo em alguma sociedades;
--no plano psicológico: predomínio da emoção sobre a razão;
--no plano antropológico: para a galinha a perpetuação da espécie; para a família a conservação da espécie.
Passamos a citar, pela ordem, alguns dos motivos recorrentes, bem como outros procedimentos que justificam os aspectos temáticos por nós levantados.
Temos pois, para os diversos planos:
"Mesmo quando a escolheram apalpando sua intimidade com indiferença."
"O rapaz, porém, era um caçador adormecido."
"E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado."
"Não vitoriosa como seria um galo em fuga."
"Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista."
"Em seguida, carregada em triunfo (...) e pousada no chão da cozinha com certa violência."
Neste aspecto temático concluimos que, através do ponto de vista escolhido (o foco narrativo) a autora, ao mesmo tempo em que mostra o predomínio apontado, procede na construção do texto de forma a levar o leitor a uma análise desvinculada de envolvimento emocional.
Vemos ainda, nesta parte, como a autora habilmente nos coloca esta alternância de valores da mulher e da maternidade, esta , com uma espécie de status que granjeia privilégios: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" (as aspas são da autora).
Finalmente, voltando aos motivos - "de domingo" e "ainda viva"; essa restrição (ainda) parece atingir de forma abrangente os outros temas. A galinha, salva por um certo tempo, acaba morrendo.
Fica então a pergunta:
Prevalecerão, ou ainda, deverão prevalecer, da maneira como foram apontados os problemas abordados?
Interessa-nos aqui, colocar a recorrência de certos motivos na parte final do conto:
"...o corpo avançando atrás da cabeça (....) a pequena cabeça(....) já mecanizado."
"Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos."
Talvez aí esteja a chave do que a autora sugere como solução.
Nilza A. Hoehne Rigo
Bibliografia
A PERSONAGEM DE FICÇÃO. A Candido e outros. Ed. Perspectiva
3ª edição. São Paulo. 1972.
AS ESTRUTURAS NARRATIVAS. Tzvetan Todorov. Ed. Perspectiva
2ª edição. São Paulo. 1970.
ANATOMIA DA CRÍTICA. Northrop Frye. Editora Cultrix. São Paulo.
1973.
TEORIA DA LITERATURA. René Wellek e Austin Warren. Publica-
ções Europa América, 2 edição. Lisboa. 1971.
VÁRIOS ESCRITOS. Antonio Candido. Livraria Duas Cidades. São
paulo. 1970.
Uma Galinha
ERA uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém. Ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou -- o tempo da cozinheira dar um grito -- e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporádicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado em telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser.É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma das asas através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e asim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de ser um ovo. Só a menina estava perto e assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:
--Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou a cabeça de uma galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
--Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
--Eu também!jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a de sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga -- e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito contente, Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho -- era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo doas séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos.
Laços de Família. Contos.
Liv. José Olympio
Ed. Sabiá, 1973
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Análise E Interpretação Do Conto
A uma situação inicial - do primeiro e segundo parágrafos - segue-se uma quebra do equilíbrio causada pela fuga da galinha, restabelecido novamente e num mesmo grau quando esta é presa.
No sétimo parágrafo, de forma mais atenuada há novamente rompimento do equilíbrio vigente, dado o seguinte motivo dinâmico: "De pura emoção a galinha pôs um ovo."
Ao restabelecer-se, este equilíbrio atinge um ponto superior em relação ao plano inicial: "A galinha tornou-se a rainha da casa" - se considerarmos a posição da personagem protagonista; já as outras personagens atingem o equilíbrio num plano inferior ao inicial, pois a galinha não mais iria servir para a refeição do domingo.
A tensão, pois, percorre o texto até o final. Aí, no desfecho, o equilíbrio volta à normalidade para os elementos da família, quando a galinha é morta; em relação à protagonista há, nesse ponto, nova quebra de equilíbrio, permanecendo o conflito.
Esquematizando
Galinha:situação inicial - (fuga) quebra; (prisão) restabelecimento;(ovo) quebra; (RAINHA DA CASA) restabelecimento um nível acima; (morte/refeição) quebra um nível para baixo.
Família:situação inicial - (fuga) quebra; (prisão) restabelecimento; (ovo) quebra; (expressão afetiva) restabelecimento um nível abaixo; (morte/refeição) quebra;(DESENLACE) restabelecimento um nível acima.
O conto apresenta-se em dois aspectos distintos, porém combinados: o da família e o da galinha.
Há pois dois conflitos:
--inconsciência da família em referência à galinha - matá-la para o domingo - não consideração do valor da sua existência, isto é, galinha enquanto ser. Essa inconsciência, em função de uma ação externa - a fuga inconsciente - é forçada a ceder.
--galinha na procura inconsciente da sobrevivência: ação movida por motivos internos e precipitada por fatores externos.
De um ângulo ficcional fixo o narrador tem, de cima, conhecimento de todos os fatos conforme vemos nos motivos: "O rapaz porém era um caçador adormecido." ; "Não vitoriosa como seria um galo em fuga." ;"Nem ela própria contava consigo, (...) crista" e outros.
Utiliza-se do discurso indireto livre e narra os fatos na terceira pessoa. A comunicação com o leitor se faz através de pensamentos, ações e palavras:
"Nunca se adivinharia nela um anseio."
"Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a."
"Estúpida, tímida e livre."
Há distância entre leitor e narrador, diremos mesmo uma grande distância, no que percebemos um procedimento na direção de levar primeiro à análise, raciocínio e reflexão sobre os fatos. Isso pode permitir que ele, desligado de um envolvimento emocional e isento de uma identificação com a situação, possa alcançar um entendimento melhor sobre alguns aspectos temáticos. Retomaremos adiante este aspecto e completaremos sua fundamentação no contexto da análise.
Dividimos o conto em três partes, a saber:
--situação inicial: "Era uma...........anseio."
--fuga e perseguição: "Foi pois.........indecisos."
--postura e suas conseqüências: "Foi então.........anos."
Nas duas primeiras partes, à uma unidade de ação corresponde uma unidade de tempo, portanto ao tempo cronológico corresponde o tempo psicológico; na terceira parte, à uma unidade de tempo da história, corresponde uma unidade menor do discurso.
Chegamos então à conclusão de que há, na maior parte do conto, um paralelismo entre o tempo do narrador e o das coisas narradas.
O conto começa com um sumário - primeiro e segundo parágrafos - iniciando, parcialmente, a caracterização da galinha.
Temos no terceiro parágrafo uma parte cênica sobre a fuga e a perseguição da galinha.
Ao longo do conto vão-se alternando cena e sumário, havendo quase um equilíbrio entre ambos. Prevalece, entretanto, o sumário, fato esse reforçador da idéia de distanciamento entre narrador e leitor externo.
Temos sumário nos trechos em que a galinha é figura central, caracterizada pela autora; por outro lado, a cena é utilizada nas situações de relacionamento das outras personagens com a protagonista.
Não existe diálogo propriamente dito, isto é, as "falas " das personagens ficam em suspenso; não há respostas ou troca real de idéias, conforme vemos no parágrafo oito, dez e onze.
A cozinha, o quintal e o quarteirão, ambientes do conto, estão ajustados à situação narrada. Existe porém um desvinculamento da personagem em relação ao meio - não há dependência necessária entre ambos.
A ação desenvolve-se num ambiente relativamente restrito e num espaço determinado.
A galinha é uma personagem esférica que evolui ao longo da narrativa. O dono da casa também é uma personagem esférica. As outras personagens são planas de acordo com sua própria condição de estáticas.
A maior caracterização incide sobre a galinha, aparecendo em seguida o dono da casa como uma personagem bem caracterizada.
Vejamos a caracterização da galinha:
de domingo - ainda viva (oposição)
curto vôo - vôo desajeitado (paralelismo)
hesitante - trêmula (paralelismo)
alegre - triste (oposição)
muda - concentrada (paralelismo)
nada - uma galinha (oposição)
exausta - velha (paralelismo)
suave - arisca (oposição)
apatia - sobressalto (oposição)
rápida - vibrátil (paralelismo)
inconsciente - vazia (paralelismo)
Notamos uma alternância de antíteses e paralelismos. Esse procedimento nos remete ao problema da insuficiência dos vocábulos em seu poder significativo. Talvez, o dizer de várias formas, através de sucessivas nomeações possa traduzir a intenção da autora de mostrar a incapacidade da linguagem para exprimir exatamente o que se sente e também para definir os objetos.
Reafirmando o conteúdo semântico, a mãe aparece como figura apagada e não dinâmica, pouco caracterizada. Notamos porém , através dos motivos recorrentes - "mãe cansada" -> mãe; "velha mãe habituada" -> galinha - um paralelismo entre a mãe e a galinha.
Assim, é através da galinha que se insere no conto a problemática da mulher dentro da comunidade.
Constatamos no conto a presença de duas personagens atuantes:
-a galinha - protagonista
-o rapaz - antagonista
As outras personagens, embora exerçam uma função definida no contexto narrativo, permanecem num segundo plano.
O tempo pretérito imperfeito "era" dá-nos uma idéia de indeterminação no tempo. Essa idéia subsiste ao longo da narrativa, principalmente nos momentos em que aparece o sumário.
Isso vem mais uma vez corroborar nossa afirmação do distanciamento do leitor externo. Já nas cenas, o emprego do pretérito perfeito permite uma certa aproximação deste e é o fator necessário para atraí-lo.
O início antecipa o fim pois o termo "ainda viva" insere uma conotação de instável para a situação.
Inesperadamente a galinha de domingo foge e, de maneira instintiva, mas insegura, procura escapar. Presa, de pura afobação, ela põe um ovo. Diante desse fato e por instância da filha deixam de matá-la. Ela passa a ocupar um lugar privilegiado dentro de casa, sem, no entanto, disso ter consciência. Finalmente, um dia, matam-na e comem-na e passam-se os anos.
Para escolha da galinha "apalparam sua intimidade com indiferença."
"Na fuga", ela não era "vitoriosa como o galo", nem "contava consigo como um galo crê na sua crista", quando foi perseguida pelo rapaz.
No nono parágrafo temos a oposição "não era nada" - "era uma galinha."
Ela está desempenhando instintivamente sua função, sem consciência do ato - perpetuação da espécie de maneira inconsciente. Nesse momento o que prevalece é a afetividade - "seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas (...) um ovo."
Através desses motivos recorrentes no conto desnudamos a plurissignificação e o simbólico no conto, sugerindo entre outros, os seguintes temas;
-- no plano moral: a mulher, escolhida com indiferença para satisfazer as necessidades do homem;
--no plano social: supremacia do homem sobre a mulher, vigente há muito tempo em alguma sociedades;
--no plano psicológico: predomínio da emoção sobre a razão;
--no plano antropológico: para a galinha a perpetuação da espécie; para a família a conservação da espécie.
Passamos a citar, pela ordem, alguns dos motivos recorrentes, bem como outros procedimentos que justificam os aspectos temáticos por nós levantados.
Temos pois, para os diversos planos:
"Mesmo quando a escolheram apalpando sua intimidade com indiferença."
"O rapaz, porém, era um caçador adormecido."
"E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado."
"Não vitoriosa como seria um galo em fuga."
"Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista."
"Em seguida, carregada em triunfo (...) e pousada no chão da cozinha com certa violência."
Neste aspecto temático concluimos que, através do ponto de vista escolhido (o foco narrativo) a autora, ao mesmo tempo em que mostra o predomínio apontado, procede na construção do texto de forma a levar o leitor a uma análise desvinculada de envolvimento emocional.
Vemos ainda, nesta parte, como a autora habilmente nos coloca esta alternância de valores da mulher e da maternidade, esta , com uma espécie de status que granjeia privilégios: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" (as aspas são da autora).
Finalmente, voltando aos motivos - "de domingo" e "ainda viva"; essa restrição (ainda) parece atingir de forma abrangente os outros temas. A galinha, salva por um certo tempo, acaba morrendo.
Fica então a pergunta:
Prevalecerão, ou ainda, deverão prevalecer, da maneira como foram apontados os problemas abordados?
Interessa-nos aqui, colocar a recorrência de certos motivos na parte final do conto:
"...o corpo avançando atrás da cabeça (....) a pequena cabeça(....) já mecanizado."
"Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos."
Talvez aí esteja a chave do que a autora sugere como solução.
Nilza A. Hoehne Rigo
Bibliografia
A PERSONAGEM DE FICÇÃO. A Candido e outros. Ed. Perspectiva
3ª edição. São Paulo. 1972.
AS ESTRUTURAS NARRATIVAS. Tzvetan Todorov. Ed. Perspectiva
2ª edição. São Paulo. 1970.
ANATOMIA DA CRÍTICA. Northrop Frye. Editora Cultrix. São Paulo.
1973.
TEORIA DA LITERATURA. René Wellek e Austin Warren. Publica-
ções Europa América, 2 edição. Lisboa. 1971.
VÁRIOS ESCRITOS. Antonio Candido. Livraria Duas Cidades. São
paulo. 1970.