Que tipo de relações históricas existem entre a literatura e sociedade brasileiras? Um olhar através do ensaio “Literatura de dois gumes” (1), de Antonio Candido.
Partindo-se do questionamento proposto, é necessário um levantamento inicial a fim de demarcarmos os primórdios do que se pode chamar nesta relação entre a literatura e a sociedade brasileira, de fruto da relação: a formação da cultura brasileira. É inequívoca a questão referente à cultura do opressor, da pressão desde o primeiro instante da colonização por parte dos europeus, na qual, por meio das várias possibilidades de abordagens, fizeram-se presentes nas principais, senão em todas as variáveis possíveis referentes a formação dos povos indígenas que povoavam estas terras em outrora. A língua: rasgo da colonização mais contundente e presente em nossa realidade até os dias atuais. A cultura européia, com seus valores e regras que passaram a coexistir, ainda que de forma soberana com o que se podia entender como “cultura local”, culminando no que se teve notícia como “ a expressão da cultura colonizadora” tida como o início da produção literária brasileira . Trago também à baila a questão da liberdade aos “locais”, em nível ameno, diga-se de passagem, que a título de exótico e pitoresco, foram os combustíveis para que a faísca da autenticidade se fizesse realidade, tardiamente.
Mas essa literatura, que creio, “brasiliosa”, não tinha muito de genuína, de autentica, de típica, e seguiu como derivada do modelo imposto pelos padrões europeus até o século XVIII, quando este processo de recepção e ajuste referentes à cultura, língua, religião e política, desenvolve-se e chegamos ao que podemos chamar de ajuste da cultura e da literatura local. Teremos aí então as primeiras manifestações literárias próprias brasileiras, com as produções dos poetas árcades.
Nos poemas já se evidenciam o que viria a ser a consciência nacional, que trazia influencia da Ilustração com tendências didáticas e mais forte ainda a crítica social, as didáticas tinham como tema o açúcar e a mineração, nas obras de Prudêncio Amaral e Basílio da Gama, mas na seara política destacam-se Francisco de Melo Franco, sobre a situação do ensino em Portugal, Silva Alvarenga e seu inconformismo, tratando sobre as formas do saber, mas tivemos como brilhante, a forma de tratamento dada à corrupção administrativa e os abusos de poder descritos em Cartas chilenas de Tomás Antonio Gonzaga.
Outro ponto importante a ser mencionado é a idealização do índio, principalmente para se ilustrar a mescla dos terrenos social e literário, que torna-se nítida, quando se cria uma atmosfera nativista local, por meio da tendência genealógica, adequando-se esta aos paradigmas e normas europeus a fim de propiciar uma compatibilização e o sincretismo no aspecto cultural, mas sem esquecer e considerar a mestiçagem no ponto de vista racial.
Desdobrando-se o mencionado acima, podemos chegar a algumas conclusões, das quais; o fim para o qual o estilo clássico estava se prestando, é dizer, o de descrever um mundo novo e desconhecido aos olhos e leituras das pessoas tidas como intelectuais da época, se tornava valioso. Pois a forma de como isso veio se adaptando, repleto de recursos que deram ar inteligível ao inóspito, ao novo e quase inatingível lugar conquistado é que foi dando a forma a literatura nacional, com ares ocidentais e suas tradições, mas narrando o particular, o típico da colônia, chegando-se aí à união do geral com o particular, do universal com o local, do padrão europeu com o cotidiano brasileiro. Basta como exemplo as narrações em forma de soneto de Gregório de Matos, que traziam à tona os preconceitos locais e os exóticos nomes dos indígenas.
No entanto, há que se deixar bem claro o posicionamento de que por mais duro, por mais drástico que haja sido o processo de colonização, não nos é possível projetar uma possibilidade alternativa de literatura nacional intocada, por assim dizer, pelo menos comparável ao nível a que temos na atualidade (considerando as produções a partir dos árcades). Cito como exemplo, uma tribo indígena recentemente identificada no norte mato-grossense, intocada, sem sinais de influencia “branca”, sem produção intelectual alguma. Tal exemplo se projetado às dimensões históricas nacionais, nos remeterá ao que teríamos de produção intelectual, política e social intocada nos tempos atuais.
Portanto, sem olvidar a questão do negro, muitas das vezes, mascarada propositalmente em troca das comparações que expressavam a relação localismo-cosmopolitismo, que alimentavam as imaginações da classe dominante européia em relação à vida levada na colônia (a estética da natureza por exemplo). Refiro-me àquele, por mero pesar, pois neste período, a consciência dos “dirigentes” tanto local como das metrópoles, tinham como habitual a questão da escravidão. Em que pese, o processo de formação da nação, nesta fase, ainda está por iniciar-se, e não faltarão literatos envolvidos, tanto na causa negra como na indianista, tendo uma ou outra causa mais em evidencia ao longo dos tempos, esse empenho da literatura é um dos pilares mais fortes no projeto de construção da nação brasileira.
(1) Antonio Candido. Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000, p. 163-180.