PROSA MODERNISTA: JOÃO MIRAMAR E BRÁS CUBAS

Quem pesquisa, acha. CABRAL, navegador estudioso, também pesquisou... e deu no que deu. Nepotismos desde os primeiríssimos tempos... Propinas?! Não duvido... Espero que esta minha ‘viagem literária’ seja útil a muitas pessoas, resumo de trabalho trabalhoso trabalhosíssimo com “idade” superior a três décadas.

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1---Muitas diluídas as fronteiras as fronteiras entre os gêneros literários, herdados de ARISTÓTELES os clássicos ensinamentos. A paródia passou a ser constante na poesia e na prosa de OSWALD DE ANDRADE, entre outros - obras da década de 20, Semana da Arte Moderna:

Modernismo, fato sociológico, é consciência nas várias épocas, auto descoberta, exaltações, perspicácia. / Modernidade, ao contrário, é reflexão em espaço mais profundo de crítica e autocrítica sobre a vivência de determinado grupo social, ultrapassando limites da moda e ‘novidade - contradições, crises, dramas e catástrofes. / Modernismo e Modernidade, aspectos do mundo moderno: euforia do novo, repúdio ao passado, ideia de começo (manifestos das vanguardas europeia e Brasiléia - em Marinetti, euforia francamente modernista, nos nacionais expressões de Modernismo e Modernidade). Toda obra de arte testemunha seu tempo e a linguagem na literatura há o mesmo depoimento, agora verbal. “Modernos”, a seu tempo, também o foram GREGÓRIO DE MATOS (período barroco) e SOUSÂNDRADE (romântico), a prosa em ALENCAR e MACHADO DE ASSIS.

Precursor nos anos 10, ADELINO MAGALHÃES ainda a sensibilidade do Simbolismo, porém técnicas modernistas e obra originalíssima, bastante esquecido.

O movimento de vanguarda em geral do pós-guerra 14-18 se expressou principalmente na poesia: desestruturação do verso, abolição da rima e da métrica rígida, valorização da assonância e do verso livre, analogias de sons, palavras em liberdade, ironia, paródia, estilo telegráfico......... / Na linguagem da ficção, fora do discurso do romance tradicional - pulverização do enredo, tempo e espaço desestruturados, por vezes ‘non sense’ e absurdo, monólogo interior e fluxo da consciência - desprezo pela lógica e pela verossimilhança (no ‘nouveau roman’ francês, não a tradicional ‘escritura de uma aventura’ e sim a ‘aventura de uma escritura’: narrador no nível do discurso, maneira de narrar, enunciação, e não na estória, situações como matéria para o enunciado). / O romance era tradicional desde a origem no século XIX, ‘agora’ perda da aura, paródia na prosa modernista, grandes expressões em nosso Modernismo e nossa Modernidade - “Memórias sentimentais de João Miramar”, 1923, de OSWALD DE ANDRADE, e “Macunaima”, 1928, de MÁRIO DE ANDRADE; incluir contos-crônicas de ALCÂNTARA MACHADO. / “Memórias...” e “Macunaíma”, confluência das tendências e descobertas expressivo-estéticas da contemporaniedade dos autores. Nestas duas obras, todas as características do discurso poético; também deseroicização do herói, ludismo com sons, palavras, situações, paródia, humor. Como objeto de crítica, a sociedade brasileira burguesa e capitalista,, a industrial, o desgaste das relações humanas, trabalho sem disciplina, falsa cultura, dinheiro supervalorizado... / “Miramar” - forma imediata, metonímica, contígua com o real empírico - logicidade de tempo e de espaço; cidadão burguês paulistano que viaja e casa com prima rica, tem amante, pretensões literárias, malogradas investidas comerciais e industriais, vai à falência, termina viúvo e com um filho. Herói? / “Macunaima”, nível metafórico e simbólico, narrativas de mitos-lendas-fábulas; universo de tempo e espaço míticos; índio, preto retinto, vive na selva,preguiçoso, inteligente, mentiroso, libidinoso, viaja para São Paulo, mente fica perturbada, volta à selva, morre e vira constelação. Herói ou anti-herói?

2---“MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DR JOÃO MRAMAR”, de OSWALD DE ANDRADE (1890/1954) - Livro de pseudo-memórias (portanto, João como pseudo-autor, narrador e protagonista), ponto de vista de primeira pessoa, gênero romanesco, narrativa ficcional. / Tendências e descobertas expressivo-estéticas da época + nova linguagem brasileira, criadora e criativa de um tempo novo. Texto como pesquisa de linguagem - novos procedimentos técnico-linguísticos: nível do vocábulo, da frase e do discurso.

RECURSOS ESTILÍSTICOS - Metonímia (elipse, fragmentação), metáforas, neologismos, estrangeirismos, sobretudo paródia. Sátira: humor, ironia, visão crítica da contemporânea realidade sócio-histórica.

ESTRUTURAÇÃO DO TEXTO - Título associado a uma obra de momento histórico e função inovadora, “Memórias póstumas /defunto-autor ou autor-defunto?/ de Brás Cubas”, 1881, de MACHADO DE ASSIS. --- Transtextualidade? O prefácio de “Miramar” é assinado (?) por MACHADO PENUMBRA, alusão a M. A. e à época em que a literatura antes do Modernismo, foi apelidada de Penumbrismo. Os protagonistas de ambas as obras filiam-se a uma linhagem que tem um ancestral brasileiro, Leonardo (“Memórias de um sargento de milícias”). Capítulos sintéticos de “Brás, em “Miramar“ às vezes reduzidos a uma só linha. / Capítulos, segmentos ou fragmentos - 163, correspondentes a episódios vividos/narrados. / Último segmento não apresenta conclusão no sentido de desfecho ou desenlace de uma estória e sim uma ‘entrevista entrevista. / Em “Brás”, um prefácio assinado pelo pseudo-autor e dedicatória. Último capítulo é “autofágico” (neologismo da articulista), anula-se de herói, nega tudo sobre si próprio, enquanto personagem: não ministro, não celebridade, não califa, não casou, não filhos etc. / Em “Miramar”, pseudo-autor se anula como sujeito da enunciação, enquanto escritor. / Em ambos, ironia romântica, anti-ilusionismo da obra de arte, desmistificação, lembrando ao leitor que é uma construção de linguagem, de repente interrompida pelo sujeito da enunciação - não esperar conclusão lógica de causalidade, episódios - capítulos, segmentos - vinculados até o final, o último capítulo sendo o “destino” das personagens (literatura tradicional do século XIX). / Em ambos, não causalidade - MACHADO, narrativa flui de associação de idéias; OSWALD, predomínio da montagem, cuja unificação de sentido dos episódios é dada pela presença do protagonista e a ‘voz’ do narrador - visão crítica do narrador através da reprodução de bilhetes, cartas e oratória. / No conceito de carnavalização (MIKAIL BAKHTINE, teórico russo da cultura européia) a literatura carnavaliza-se mostrando o mundo às avessas, o caos, a liberação de códigos e modelos vigentes /no carnaval, desordem permitida. inclusive rei entronizado-desentronizado em poucos dias.../ - “Miramar” exibe contradições, equívocos, erros, falsas aparências, desmitifica e desmistifica a elite da época, sob humor e sátira, mundo carnavalesco. O prefácio corresponderia à entronização dele como “autor”, sendo o último capítulo a auto desentronização: reinado curto acabou. / Estruturação de natureza anti-convencional, alguma cronologia (não em “Serafim Ponte Grande”, obra posterior mais radical), embora cada episódio seja um segmento autônomo e poderiam até ser remontados em outra sequência que não a do livro.

MACROSSEQUÊNCIA - Reunião de alguns segmentos constituindo uma unidade maior dentro da sintagmática do texto - a) Segmentos 1 a 20 - infância e lar (situação familiar), escola (educação que recebe, colegas e professores) - relações criança/adulto (para NORTHROP FRYE, crítico literário canadense, “ciclo da inocência do herói”). // b) De 21 a 27 - juventude e rua, “herói” seus pares, iniciação no “ciclo da experiência” (para PEIRCE, pedagogista americano, “modificação de consciência”) - vida noturna secreta, inclusive maçonaria e quiromancia, primeiras aventuras de amor, desejo de viajar. // c) De 28 a 55 - juventude e mundo - a ida: descrições-narrações de pessoas, cenas, situações, vida a bordo, cidades, países, percurso de volta. // d) De 56 a 64 - juventude e volta ao lar - outro giro do “ciclo da experiência”, integração à terra e à sociedade, retomada do contato familiar, namoro-noivado-casamento do “herói” que entra na maturidade. // e) De 65 a 69 - maturidade e casamento - primeiro plano da narrativa do casal, rotina conjugal, elações de amizade, adultérios etc. // f) De 70 a 162 - maturidade e vida em sociedade - panorâmica da vida social e familiar nos diferentes planos da vida em sociedade: amores, atividades “culturais” e de lazer, paternidade, viuvez. // g) Segmento 163 - ‘quase’ o temático ‘the end’...

TRAMA DA LINGUAGEM - Construção da estória, da matéria narrada e da fábula; não propriamente um enredo (“Brás”, antecipador das características do romance do século XX), personagens menos definidas pelas ações e mais pelos discursos. Trama é mais de linguagem (atos e fatos de linguagem) e menos das peripécias (atos e fatos pessoais) - o discurso de cada um fornece tipo, caráter e função no contexto da vida familiar e social; o protagonista /narrador é protagonista/ se desdobra em sujeito da enunciação (narrativa) e sujeito do enunciado (base da narrativa). // Nos primeiros segmentos até o 15, narrador exclusivo detentor da palavra, personagens referidas pelo narrador através de discurso indireto, mãe-pai-ama-professores-amigos etc., transparecendo valores, padrões de comportamento, educação recebida, obediência à convenção, atuação repressora ou corruptora e código ideológico a assegurar e transmitir. No 16, o narrador, sujeito da enunciação, cede momentaneamente o palavra a outra pessoa, discurso sério nesta, porém paródico e satírico perpassado por João Miramar - o prefaciador volta no segmento 69 com inflamado discurso, oratória pomposa e imagens grandiloqüentes-clicherizadas, a falsa cultura do o “falar difícil”. Monotonia do lar no fragmento 70 denunciado pelo discurso do narrador e pela seleção-combinação das peças musicais, pretensa “cultura” da herdeira rica.

LINGUAGEM DA TRAMA - Espaço de tensões, aparente ‘non sense’, ilogicidade como visão de um mundo ilógico. // No segmento 1, um italianismo indicia o estado em que se encontra o sujeito da enunciação ao evocar o passado, “ação” presentificada sem a voz dele - disposição gráfica parece um poema, fugindo ao convencional num texto narrativo; 15 linhas e 10 parágrafos, discurso descritivo (descrição como elemento de ‘suspense’ que suspende a ação) do parágrafo 1 ao 6 (sem verbos de 1 a 5 - forma nominal no 6 - evocaçãovisual-afetiva-sonora e narrativa no 7), verso no imperfeito é ação repetida, habitual. “Jardim desencanto”, sintagma inicial, segundo substantivo em função adjetiva (MARINETTI sugeria), adjetivo designativo de estado anímico, fusão de concreto e abstrato. A seguir, associação de elementos, infância evocada religiosa, e descrição impressionista-visual-sensorial no parágrafo 9; no 10, surrealismo da visão de manequim & mulheres, no despertar da sexualidade do menino. // Recordação em monólogo interior reconstitui todos os espaços físicos exteriores (jardim, rua, circo) e, mesmo em síntese (proposta dos manifestos de anguarda), o estado interior do narrador-personagem., tempo e espaço presentificados. // No segmento 2, expectativa da descrição de um ‘locus amoenus’, lugar paradisíaco, mas a relação entre título e texto é metafórica e irônica, descrição de ambiente anti-Éden, focalizado espaço urbano - metonímia na superposição de imagens bíblicas, os animais, com insetos da cidade barulhenta, ludismo na elaboração da camada sonora; criação de vocábulos e metáfora em “campo aviatório”, coloquialismo em “berros”, visão dessacralizada na descrição do ambiente - “São Bento” intraduzível como colégio ou time de futebol, santo que protegia de... baratas, perigos e coisas desagradáveis. // No segmento 3, mesma relação metafórica do título com o texto, gare do infinito = morte; parataxe, justaposição, repetição infantil da conjunção “e”; depois metonímia, superposição de imagens na “casa velha que fazia doces” (mulher velha?); idem na frase “sala do quintal onde tinha ma figueira na janela” (vista da janela?) - memória afetiva, re-cord-ação, percepção predominantemente sensorial, linguagem estruturando o tempo psicológico // No fragmento 12, imagens auditivas, barulhos lembrando título de um poema de RIMBAUD, “Une saison en enfer”, Uma temporada no inferno, 1873. // Ludismo sonoro do discurso do narrador em estrangeirismos (segmentos 57 e 59), onomatopéias (61), jogos de palavras (63-64), partes da narrativa em gênero dramático (129) - capítulos 60-61-62, narração presentifica e ludicamente desfaz/faz a linguagem formal, idem no 75, sem uma palavra do narrador, e um toque de humor negro no 156, necrológio (de jornal?) cheio de lugares comuns, clichês pretensamente literários.

NÚCLEOS TEMÁTICOS - Alguns motivos e núcleos estruturam semanticamente o texto, tema central no título do livro, muitos destes motivos em autobiografias, reais ou ficcionais, a saber: 1-Família e educação - religiosidade, falso conceitos de cultura, ineficácia das escolas, hipocrisia, relação opressora, falso poder do dinheiro, escola de ricos é melhor formadora de pessoas “cultas e educadas” etc. // 2-Viagem - conhecer viajeiramente o mundo, forma de auto-conhecimento - contato com outros países e pessoas de diferentes origens e condições sócio-culturais; protagonista pouco aprendeu, porque ações-reações de burguês após viagem, apenas possuindo visão lúcida, distanciada, irônica e relação a tudo e todos, nada problematizado por ele: anti-herói que não se dispõe a consertar o mundo e o goza-usufrui. // 3-Relações sociais - Mesma ótica de crítica irônica sobre rotina conjugal-familiar, aventuras amorosas, negócios, atividades culturais e pseudo culturais e atividades profissionais. Sempre humor, ironia, paródia, ludismo, jogos sonoros, síntese fragmentária e elíptica, metonímica, imprevistos, neologismos, estrangeirismos... Narrativa contra-ideológica - projeto estético e projeto social, mais diferenças que identidades; obra experimental e de vanguarda na literatura brasileira. É Pau-Brasil, Antropofagia. Modernismo e Modernidade.

LEIAM meus trabalhos “Ainda Oswald...” - “Coração maior que o mundo” I e II - “Pagu... por acaso” - “São Paulo, cidade miscelânica” I e II.

FONTE:

“Introdução ao estudo da narrativa literária no Brasil” - I e II - artigos de Samira Nahid Mesquita - Rio, revista DIÁLOGO, Fundação Cesgranrio, ano V, n. 42 e 44, 1983.

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