O Formalismo Russo

1. Conceitualização

O Formalismo foi um termo que designou, no sentido pejorativo em que os seus adversários o consideravam, a corrente de crítica literária que se manifestou na Rússia de 1915 a 1930. Esta doutrina está na origem da linguística estrutural. As ideias formalistas estão ainda hoje presentes no pensamento científico. Todorov (1999)

2. Panorama histórico do seu surgimento

O Formalismo Russo surge no panorama literário do início do século XX. Regista-se neste período uma forte presença de uma história literária académica, de raízes positivistas; tal história literária estava dominada pela erudição e pouco voltada aos valores estéticos. A crítica impressionista, desenvolvida em jornais e revistas, era pouco rigorosa e séria. Nas universidades, o ensino de linguística fazia-se igualmente dentro dos padrões positivistas, sob o signo do historicismo e da erudição. Em outras palavras, é visível neste contexto “pré-formalismo” a priorização da produção de crítica literária do biografismo, do filosofismo e da historicidade.

Dentro do contexto apresentado é que surgiram as primeiras manifestações formalistas, cujos protagonistas mostravam-se descontentes com os modelos académicos em vigência. Tal descontentamento foi o factor motivador para que se procurassem novas orientações, dentre as quais vale comentar sobre duas: O Círculo Linguístico de Moscou, fundado em 1914 por um grupo de jovens alunos da Universidade de Moscovo, que se propunham a desenvolver estudos de linguística e poética, e do qual fizeram parte Buslaev, Vinokur e Roman Jakobson; Opojaz, fundado em 1916 por um grupo de linguistas e de estudiosos da literatura em São Petersburgo, que consistia em uma sociedade para o estudo de linguagem poética, na qual se distinguiam os teorizadores literários Victor Chklovski e Boris Ejchenbaum. Ambos os grupos possuíam íntima relação com as vanguardas europeias, sobretudo com o futurismo. Todorov (1999:11,12).

3. Pressupostos Teóricos do Formalismo Russo

Em primeiro lugar, o Formalismo russo pretende conferir à crítica literária um carácter bem definido, atribuindo-lhe um objecto de estudo bem especificado e um método próprio, a fim de cessar com a confusão entre os diversos domínios do conhecimento. Os formalistas reagem contra a crítica impressionista, subjectivista e tendenciosa; reagem também contra a crítica académica de cunho erudito, ignorante dos problemas teóricos implicados pelo fenómeno literário.

Rejeitando qualquer dogmatismo reducionista que originaria uma classificação rígida e estática, os formalistas russos conceberam o género literário como uma entidade evolutiva, cujas transformações adquirem sentido no quadro geral do sistema literário e na correlação deste sistema com as mudanças operadas no sistema social, e por isso advogaram uma classificação historicamente descritiva dos géneros. Aguiar e Silva (1976).

A ciência da literatura, segundo eles, deve estudar a literariedade, isto é, o que confere a uma obra sua qualidade literária, aquilo que constitui o conjunto de traços distintivos do objecto literário. Tal princípio fundamental conduziu os formalistas a definirem os caracteres específicos do facto literário: não procuravam esta especificação no estado de alma, na pessoa do poeta, mas sim no poema; também não buscaram essa especificação na natureza da experiência humana ou da vivência contidas no poema, nem nas categorias e nos axiomas de qualquer estética especulativa.

Para estabelecerem os caracteres próprios do objecto literário, os formalistas decidiram comparar a série literária com outra série de factos que tivesse uma função diferente, mesmo estando estreitamente ligada com aquela. O caminho seguido foi a comparação entre a linguagem poética e a linguagem quotidiana.

4. O método formalista

Em termos metodológicos, o método dos formalistas é basicamente descritivo e morfológico, ou seja, visa o conhecimento da obra como organização artística, mediante uma descrição exaustiva dos seus elementos componentes e respectivas funções. Inicialmente, interessaram-se pelos problemas fono-estilísticos do verso, ocupando-se com o estudo do ritmo, a relação do ritmo com a sintaxe, análise de esquemas métricos, eufonia, etc. Depois, superaram esse nível de análise, voltando-se a estudos semânticos da linguagem literária, sobre metáforas e imagens, fraseologia, técnicas usadas pelos escritores. O romance, a novela e o conto atraíram principalmente os formalistas, pioneiros no estudo sistemático dos aspectos técnicos dessas formas literárias. Dentre os problemas do género narrativo estudados a fundo pelos formalistas, pode-se citar a diferenciação entre romance e novela, as diferentes formas de construção do romance e a importância do factor tempo na estrutura romanesca.

Com a herança teórica e metodológica do formalismo russo se relaciona ainda a caracterização dos géneros literários proposta por Jakobson, baseada na função da linguagem que exerce o papel de subdominante em cada género (o papel de função dominante, de acordo com a concepção jakobsoniana da literariedade, é exercido pela função poética). Aguiar e Silva (1976).

5. A noção de forma

Outro conceito importante trabalhado pelos formalistas foi o conceito de forma. A dicotomia fundo-forma punha a forma como algo exterior, espécie de recipiente em que se vaza depois um conteúdo; tal conceito, estático e espacial, foi unanimemente refutado pelo formalismo, que propôs um conceito dinâmico, no qual a unidade da obra é uma totalidade dinâmica, “cujos elementos não estão ligados por um sinal de igualdade e de adição, mas por um sinal dinâmico de correlação e integração”. A noção de forma identifica-se com a própria obra artística conceituada na sua unidade e na sua integralidade, deixando de precisar de qualquer termo correlato e complementar.

6. A perspectiva diacrónica da crítica literária formalista

O formalismo nunca defendeu, excepto em alguns extremismos da fase inicial, que a obra literária devesse ser estudada como um objecto isolado, fora de uma perspectiva histórica. Aliás, ocupam a posição central nas teorias formalistas os pressupostos de que: a obra não pode ser arrancada de um contexto histórico literário; a perspectiva diacrónica é indispensável para a precisa análise do fenómeno literário. Sendo assim, a própria dinâmica do surgimento de novas formas literárias é radicalmente histórica, onde se pode observar que a forma antiga, gasta dá lugar à forma nova, por aquela tender ao automatismo, ou seja, já não desempenhando a função estética. Todorov (1999).

7. Nomes do Formalismo Russo

Dentre os vários formalistas russos, faz-se necessário mencionar alguns nomes que se destacaram pelo seu contributo.

Viktor Chklovski reagiu contra a doutrina na qual a linguagem poética consistiria em um pensamento por imagens, afirmando que na linguagem poética é de grande importância o aspecto articulatório, já que no verso há muitos sons sem qualquer ligação com uma imagem e que possuem uma função verbal autónoma. A actividade humana tende para a rotina e para o automatismo do hábito, o que se reflecte na linguagem quotidiana.

Roman Jakobson, outro renomado formalista, procurou estabelecer a essência da literariedade a partir da análise do instrumento utilizado pelo escritor, a fim de distinguir a linguagem poética da linguagem informativa e da emotiva: “O traço distintivo da poesia reside no fato de que, nela, uma palavra é percebida como uma palavra e não meramente como um mandatário dos objectos denotados, nem como a explosão de uma emoção; reside no fato de que, nela, as palavras e o seu arranjo, o seu significado, a sua forma externa e interna, adquirem peso e valor por si próprios”.

Boris Ejchenbaum (ou Eikhenbaum) afirma que na linguagem poética, a palavra se situa em uma nova atmosfera semântica, e que o aspecto mais relevante da semântica poética reside na “formação de significações marginais que violam as associações verbais habituais”, denominada de ambiguidade significativa. O estudo do romance, como grande narrativa, conheceu um importante contributo de Boris, que propõe uma teoria da prosa e traça uma retrospectiva histórica sobre a evolução do romance em relação ao relato oral, concorrendo, significativamente, para a diferenciação entre o romance e a novela.

Vladimir Propp, com a célebre Morfologia do Conto (1928), formulou uma teoria das funções narrativas nos contos populares, que se revelou fecunda nos estudos da narrativa num escopo geral.

Entre os demais formalistas russos que publicaram trabalhos de valores tão significativos quanto os que foram comentados anteriormente, vale mencionar: Tomasevskij, que analisou a questão do valor autónomo das estruturas verbais na obra literária; Tynianov, que desenvolveu análises sobre a relação posicional dos vocábulos na linguagem literária e redefiniu conceitos como sistema e função ligados à evolução literária; Vinogradov, que trabalhou com a questão das tarefas da estilística; e, por fim, Mukarovsky, que também trabalhou com a relação entre a história e a evolução das estruturas artísticas.

8. Críticas ao Formalismo Russo

Quase toda a doutrina, princípios e fundamentos formalistas foram objecto de crítica. Dentre elas, a que mais críticas e refutações recebeu foi a tese da literariedade (literaturnost). Defendiam que os usos especiais de linguagem que fazem o literário encontram-se não só nos textos literários mas também fora deles. Assim, se a literatura pode ser definida nestes termos, pode-se argumentar que o discurso oral quotidiano contém uma maior dose de metaforização, ou seja, um nível acentuado de uso figurativo da linguagem, não denotativo, do que muitos textos declarados “literários”.

Outra crítica ao Formalismo prende-se à sua visão dogmática de análise literária, ou seja, à interpretação literária sob uma única óptica ou perspectiva, deixando os demais elementos inerentes à obra, ainda que não centrais.

9. Declínio

Por volta de 1924, ganhou força a oposição dos intelectuais e dos dirigentes marxistas às doutrinas do Opojaz, iniciando-se um polémico período de ataques violentos. Na obra Literatura e revolução (1924), Trotsky criticou duramente os pressupostos teóricos e o método formalistas; tal obra abriu caminho para outras críticas mais severas. Conforme o Partido Comunista impunha sua disciplina na vida cultural russa, as doutrinas formalistas foram silenciadas. Por volta de 1930, o formalismo russo extinguiu-se.

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BIBLIOGRAFIA

i. AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. São Paulo, Martins Fontes, 1976.

ii. AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. 3ªed., Coimbra, Livraria Almedina, 1979.

iii. TODOROV, Tzvetan. Teoria da Literatura I: Textos dos Formalistas Russos. Lisboa, 1999.

iv. CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. 2010.

v. TOLEDO, Dionísio de Oliveira. Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre, Editora Globo, 1971.

vi. http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6459/formalismo-russo/

Valério Maúnde
Enviado por Valério Maúnde em 06/02/2017
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