O formalismo russo
Autor: Ilídio Pedro
Segundo Houaiss (2007), em Literatura, formalismo significa tendência em que as análises literárias incidem predominantemente sobre aspectos estético-compositivos em detrimento dos aspectos semântico-temáticos, entre outros, como consta do excerto abaixo.
[O termo formalismo refere-se à] «tendência segundo a qual as formas artísticas se bastam em si mesmas, em detrimento do conteúdo [ou seja] estreita observância de preceitos formais, especialmente os tradicionais, que não dá espaço à inovação».
Neste conspecto, tal como afirma Roman Jakobson apud Todorov (1999: 12), a designação “formalismo” é um termo pejorativo, criado pelos opositores desta teoria como «uma etiqueta vaga e desconcertante [lançada] para estigmatizar toda a análise da função poética da linguagem, [criando] a miragem de um dogma uniforme e consumado».
O formalismo russo - uma corrente de crítica literária que se desenvolveu na Rússia a partir de 1915, sendo interrompida bruscamente em 1930, por decisão política - esteve «na origem da linguística estrutural, pelo menos da corrente representada pelo círculo linguístico de Praga» (Todorov, op.cit.).
A doutrina do formalismo se constituía em torno das seguintes ideias: Automatismo da percepção e o papel renovador da arte - de acordo com Todorov (1999:18), os formalistas russos defendiam que «o hábito impede-nos de ver, de sentir os objectos, [sendo, por isso,] preciso deformá-los para que o nosso olhar se fixe neles, [pois esta é] a finalidade das convenções artísticas».
Os formalistas também defendiam o princípio de se colocar a obra no centro das preocupações, recusando, desta forma, a abordagem psicológica, filosófica ou sociológica que, até então regia a crítica literária russa. De acordo com Todorov (1999:18-19), é precisamente nesta linha de pensamento que os formalistas divergem dos seus «predecessores, [pois, ao contrário do que defendem os seus predecessores, para os formalistas,] não se pode explicar a obra a partir da biografia do escritor nem a partir de uma análise da vida social contemporânea».
O formalismo russo surgiu a partir do Círculo Linguístico de Moscovo, um movimento fundado por alguns estudantes da Universidade de Moscovo, no inverno de 1914-1915, com o propósito de promover estudos de poética e de linguística, afastando-se da linguística tradicional e aproveitando a renovação da poesia russa que os poetas da época haviam iniciado. A partir de 1917, este Círculo recebeu a colaboração da Sociedade de Estudos da Linguagem Poética (OPOIAZ). A primeira publicação do grupo, A Ressurreição da Palavra (1914), de Viktor Skhlovski, foi seguida da colectânea Poética, que havia de divulgar os primeiros trabalhos do grupo.
Em 1920, quando Roman Jakobson foi se refugiar na em Praga, capital da então Checoslováquia, surgiu o Circulo Linguístico de Praga, que era uma réplica do Círculo Linguístico de Moscovo. Este Círculo estudou particularmente o Estruturalismo e a Fonologia.
A partir dos textos apresentados por Todorov (1999), podemos, sumariamente, afirmar que os formalistas russos operaram uma renovação da metalinguagem crítica, fornecendo novos termos de análise do texto literário que constituem ainda hoje objecto de reflexão e discussão. Pois muitos dos temas teóricos escolhidos para investigação nunca antes haviam sido discutidos: as funções da linguagem, em particular a relação entre a função emotiva e a função poética (Roman Jakobson), a entoação como princípio constitutivo do verso (B. Eikhenbaum), a influência do metro, da norma métrica, do ritmo quer na poesia quer na prosa (B. Tomachevski), a estrutura do conto fantástico (V. Propp), a metodologia dos estudos literários (J. Tynianov), entre outros.
Os formalistas russos procuraram estabelecer uma definição referencial de Literatura, postulando que o objecto de estudo da ciência literária não é a literatura mas sim a literariedade, isto é, o que faz de uma determinada obra uma obra literária. O que foi objecto de muitas refutações. Por exemplo, Johan Searle (1975:320) considera que não há características ou conjunto de características que todas as obras literárias têm em comum que se configura como condição necessário e suficiente para a obra ser literária. Tal como passamos a citar ipsis litteris abaixo.
«there is no trait or set of traits which all Works of literature have in common and which could constitute necessary and sufficient condition for being a work of literature»
Para Todorov (1973:15-16) apud Aguiar e Silva (2006), «não é legítima a definição “estrutural” de literatura (…) se tornou igualmente óbvio que não existe nenhum denominador comum para todas as produções “literárias”, a não ser o uso da linguagem».
Enquanto Skhloviski propôs o modelo de análise da narrativa, Vladmir Propp propôs a gramática da narrativa, num estudo intitulado Morfologia do conto fantástico. Assim, este autor postulou a existência de 31 funções de que se servem as narrativas. Compreendendo-se por função «o procedimento de uma personagem, definido de ponto de vista de sua importância para o desenrolar da acção».
Graimas resumiu as 31 funções de Proppp em 6 actantes, criando assim o Modelo actancial, ascto que foi possível devido a influência da Linguística estrutural de Lucien Tesnière.
Segundo Aguiar e Silva (2006:691-693), o Modelo actancial de Graimas apresenta «inquestionável interesse teórico e alguma eficácia operatória para a construção de uma semiótica do texto narrativo, mas apresenta também debilidades, limitações e contradições de vária ordem».
[Podendo conduzir a] «um reducionismo muito forte da complexidade psicológica, sociológica, ética e religioso das personagens dos textos narrativos literários (…). Por isso, a sua prática tem se transformado em geral numa trivializante heuristicamente infecunda operação de esvaziamento semântico dos textos analisados».
Para além das objecções que se inscrevem nos aspectos acima referidos, a crítica formalista teve vários opositores, entre eles o Nouvelle critique, um movimento prolífero que surgiu na França.
Não obstante todos os descontentamentos e objecções aos princípios estabelecidos pelos Formalistas russos, é importante sublinhar foi este movimento que abriu caminho para o estudo do texto no seu nível textual. Assim, as análises literárias passaram a incidir sobre os elementos estilísticos do discurso, as suas macro e microestruturas, as técnicas de composição dos textos literários. Mais ainda, podemos, em última estância, assumir que a Teoria de Literatura, strito sensu, surgiu com o formalismo russo.
Bibliografia
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. 8ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2006.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. SL, Editora Objectiva ltda, 2007.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto marravilho. Tradução de Jasna Paravich Sarhan. 2 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006.
SEARLE, John R. The logical status of ficcional discourse, in new literary history, VI, 19975.
TODOROV, Tzvetan. Teoria da Literatura I: Textos dos Formalistas Russos. Lisboa, 1999 .