A poesia contemporânea - Transcendendo a rima

Do que é feito um bom poema? Ferreira Gullar diz, em seu poema Barulho, Todo poema é feito de ar/ apenas(...) O poema/é sem matéria palpável/tudo/o que há nele/é barulho/quando rumoreja/ao sopro da leitura. Mário de Andrade, no prefácio de Paulicéia desvairada, diz: (...) versos não se escrevem para a leitura dos olhos mudos. Versos cantam-se. Urram-se. Choram-se. Seriam os poemas feitos de ar? Seriam escritos para se cantar? Nesses trechos os poetas valorizam o aspecto sonoro dos poemas.

Além da sonoridade, existem outros aspectos importantes que trazem para o poema o trabalho artístico com as palavras, trabalho este que consiste em carregá-las de significados, ir além do seu uso comum, corriqueiro, ou seja, valorizar o sentido conotativo das palavras, exemplo disso são as figuras de palavras, como a metáfora e a metonímia, as figuras de sintaxe: elipse, pleonasmo e outros, e as figuras de pensamento: como a antítese, paradoxo, hipérbole, eufemismo, entre outras.

Há também o aspecto ideológico, a mensagem, todo poema nasce por ter uma mensagem, algo a ser dito, o tema, é verdade que essa mensagem não se dá por meio de um discurso objetivo, mas pelo discurso subjetivo e é aí que está a beleza de um poema. Tenho para mim que o poema é a tentativa de se eternizar um instante, uma verdade, um olhar; de nos fazer perceber, por meio de um determinado ponto de vista, o que não foi percebido. Um bom exemplo é Mário Quintana, um mestre em subverter o olhar cotidiano, que transformou uma informação inútil: a descoberta do açúcar de beterraba por Margraff, na tentativa do descobridor em sobreviver ao tempo, transformando-se em ideia fixa. Além dele, há outros: Adélia Prado que olha um leão e vê Deus , Manoel de Barros que consegue escutar a cor de um passarinho, entre outros tantos.

Se um poema tiver uma ótima mensagem, boas figuras de linguagem, mas não tiver musicalidade, corre o risco de não ser considerado um bom poema. Décio Pignatari, em O que é comunicação poética, afirma que a poesia está mais para a música do que para a literatura. No poema encontramos muitos atributos da música, como o ritmo e a melodia.

O ritmo de um poema se dá pela sucessão de acentos ora fortes ora fracos, longos ou breves, um ótimo exemplo de um poema com ritmo bem marcado é I Juca Pirama de Gonçalves Dias:

No meio das tabas de amenos verdores,

Cercadas de troncos - cobertos de flores,

Alteiam-se os tetos d’altiva nação;

São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,

Temíveis na guerra, que em densas coortes

Assombram das matas a imensa extensão.

A simples leitura desses versos iniciais nos traz a sensação de estarmos cantando um RAP, para aquele que tem um ouvido mais atento pode até “ouvir” a batida de uma bateria, ou pelo menos da caixa desta.

A poesia contemporânea, sobretudo aquela de versos livres, não apresenta um ritmo tão marcado, possui um ritmo próximo da oralidade, da fala cotidiana. Também não apresenta regularidade de metrificação. A métrica é a quantidade de sílabas poéticas de um verso, no exemplo de Gonçalves Dias todos os versos têm dez sílabas.

Uma coisa que sempre me incomodou, como poeta e como professor, é ouvir que determinado texto não é um poema por não apresentar rima. A rima, bem como a metrificação, foi, ao longo dos anos, muito usada nos poemas brasileiros e portugueses, mas a ausência da rima não significa que um determinado texto não é um poema.

Décio Pignatari diz ao espirante a poeta usar o ouvido:

(...) Sinta as pulsações. Leia poemas em voz alta. Poemas seus. E de outros. Grave no gravador. Ouça. Ouça. Torne a gravar. Ouça. Compare. Se precisar de mais de uma voz, chame os amigos.

Além da rima existem inúmeros recursos sonoros que um poeta pode se valer para a criação de um poema. Veja o poema Onda de Manuel Bandeira:

A onda

a onda anda

aonde anda

a onda?

a onda ainda

ainda onda

ainda anda

aonde?

aonde?

a onda a onda

Repare que a vogal (A), bem como os dígrafos vocálicos (AN, IN e ON) se repetem, com isso trazem uma onda sonora para o poema. Essa repetição de vogais é chamada de Assonância, é um recurso muito utilizado, pois agrega ao poema melodia. Perceba agora como a melodia do poema de Bandeira lembra barulho de um mar calmo. Agora, veja o exemplo de Clebber Bianchi, nas primeiras estrofes de seu belo poema Andorinha.

Uma andorinha pousou na minha janela.

Uma andorinha,

apenas uma.

Deu um pio e voou.

Da minha janela,

observo o brilho das estrelas elétricas no topo dos prédios

Aqui, não há cigarras cantando,

nem beija-flores beijando.

Nada aqui é verde.

Nada.

A não ser o musgo dos casarões coloniais não restaurados (...)

Veja como é melódico esse poema, graças a repetição das vogais (A, O e U), o mais interessante que essa melodia intensifica, no poema, a solidão do eu-poético.

Agora veja a letra da canção Tristes trópicos de Itamar Assumpção:

O trópico tropica

Emaranhado no trambique

A treta frutifica

E tritura todo o pique

A trapaça trina e troa

E extrapola cada dique

O tratado é intrincado

Destratado é truque chique

O grito atravancado

Tranca até que eu petrifique

Tristes gregos e troianos

Desbragado piquenique

Verifique que agora o que se repete são os fonemas consonantais (TR, T, R, GR, BR, P, C e QU) que fazem com que tenhamos a ideia de alguém tropeçando, ou pelo menos andando de forma irregular. Para esse recurso dá-se o nome de Aliteração. Veja o poema Canto III do mestre Tonho França:

Meus olhos guardam os segredos da morte

A vi em sua plenitude

Com seios claros em ágata e flores

dentes de sabre e línguas de fogo

nos lábios o hálito cítrico do veneno dos deuses.

A vi em sua plenitude

olhos em tons de universo, sacro e profano

galgando ao vento com cascos de corsa

braços maiores que demônios e anjos

recriando a vida

em seu útero infinito

divinamente humano

Perceba como a repetição do fonema (S) dá ao poema um tom de mistério, como se fosse uma canção ritualística e perceba, também, como a ausência desse fonema nos últimos versos clareia e valoriza a vida dentro do útero. O som do fonema (S) age como uma cortina que aos poucos revela esse útero divinamente humano.

Outro recurso sonoro bastante interessante é a Paronomásia, que consiste em aproximar palavras semelhantes no som, mas com significação diferente. Veja o poema Dessubstancialização, de Erick Magalhães:

A oca, outrora oca

hoje é oca.

Veja que o poema está centrado na diferença de significados da palavra OCA, que como substantivo, segundo o Houaiss Digital é:

1. construção de madeira, entretecida e coberta por fibras vegetais, ger. de planta circular, us. pelos indígenas do Brasil como moradia de uma ou mais famílias

ou como adjetivo OCA , o Houaiss não apresenta esse vocábulo, porém apresenta o verbo OCAR.

2. tornar oco, abrir uma cavidade; escavar, esvaziar

Um recurso sonoro usado e abusado por mim, em meus poemas, foi o eco, veja o poema Sempre em frente! :

Por que esta aí parado?

Estancado.

Vamos levante a cabeça e ande.

Ande,

Pra frente, sempre em frente

Não corra, ande devagar

O importante é andar.

Os obstáculos ficaram lá trás

Se você não os viu.

tropeçou

caiu.

Tudo bem! O importante é não titubear

Ande, sempre em frente sem fraquejar

Está despido?

De espírito?

Ferido?

Cale o gemido !

E vá sempre em frente

De cabeça erguida.

Ponha gaze e mercúrio pra esconder a ferida

da vida.

Não se apoie no outros, você é jovem e forte

Muito forte, muito

Não precisa da sorte

Abandone o buraco

Deixe-o pra um verdadeiro

Fraco

Você não é

Nunca foi

Nem será

É só ter fé

Em você e em Deus

Siga em frente, sempre em frente

Como um bravo, como um guerreiro

Vai levar golpes, mas aguente

Você é brasileiro, é resistente

Feito a base de aguardente

Para os outros ...

Infelizmente!

O Eco se difere da rima, pois não ocorre necessariamente no final dos versos, ou pelo menos na mesma casa rítmica, o eco pode ocorrer no interior de um verso. Minha intenção foi retratar um monólogo interior e a desolação do eu-poético é tão grande que suas palavras de incentivo, para ele mesmo, batem e voltam.

Do que é feito um poema? De uma série de recursos sonoros, como vimos, recursos linguísticos e estilísticos, sem mencionar os recursos visuais. A rima é apenas um dos recursos, na verdade um ótimo recurso, mas, diferente do querem alguns, não o único.

Portanto, para a produção poética requer-se a manipulação da linguagem, e é por meio de recursos linguísticos do significante (palavra) e do significado (ideia) que o poeta cria, ou recria, o seu mundo, dialogando com ele. Assim, Décio Pignatari afirma que o poema é um ser de linguagem.

 

Referências

Antunes, Arnaldo. Como é que chama o nome disso: Antologia Arnaldo Antunes. 2º Ed. – São Paulo: Publifolha, 2009

Assumpção , Itamar. Bicho de 7 cabeças - VOL. II 1994 Gravadora: Baratos Afins

Bandeira, Manuel. Antologia Poética. 12 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

Barbosa, Frederico. Na lata: poesia reunida 1978 – 2013. São Paulo: Iluminuras, 2013

Britto, Paulo Henriques. Formas do nada: São Paulo: Companhia das letras, 2012

Décio Pignatari. O que é comunicação poética. Cotia: Ateliê, 2005

Dias, Gonçalves. “I-Juca Pirama.” Poemas de Gonçalves Dias. Ed. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1980.

França, Tonho. Blues à tarde. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2007

França, Tonho. O bebedor de auroras. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2009

Gullar, F. Toda poesia. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2006

Magalhães, Eryck. Ecos e outros versos: Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010

Proença, Ruy. Visão do térreo: São Paulo: Ed. 34, 2007