UM POUCO DA LITERATURA HOMOAFETIVA NOS SÉCULOS XX E XXI

O autor desse post adverte: se você não nutre interesse pelo tema, dê dois passos para trás. Mas se você tem alguma curiosidade, se prepara e vem comigo pra essa aventura de amor e erotismo na literatura homoafetiva nos séculos XX e XXI. No entanto, vale ressaltar que alguma dose de erotismo relacionado ao gênero foi inserida nesse post e, portanto, se assim como eu você também é baluarte dos bons costumes e da moral (só que não), sugiro que abandone esse post e pule pro próximo que nada tem a ver com erotismo e sexualidade. Mas se quiser continuar lendo, é só assumir o risco e segurar na minha mão.

O tabu sobre homossexualidade no Brasil é antigo e isso talvez explique a inexpressividade tamanha nas décadas anteriores sobre o tema homossexualidade. Era tão grande que os principais livros publicados acabaram se tornando clássicos da temática. Baseado nisso, procurei escrever sobre o máximo de livros que abordam essa temática que pude lembrar, sempre tentando manter um panorama durante as décadas. Por isso, os próximos parágrafos podem lembrar uma enciclopédia, mas também podem ser vistos como dicas interessantes sobre esse tipo de literatura.

Pra começar, um dos primeiros romances em língua portuguesa a falar tão abertamente da homossexualidade masculina chamava-se Um homem gasto (1885) do carioca Ferreira Leal. O livro, que na época circulava apenas pelas livrarias mais populares do Rio de Janeiro, contava a história de um homem de classe média que ia contra os seus desejos homossexuais e casava-se com uma mulher.

Dez anos depois veio ao público Bom-Crioulo (1895) do Adolfo Caminha, considerado por muitos uma das primeiras obras homoafetivas brasileiras. O livro foi recebido com silêncio pela crítica literária e pelo público, tanto pela ousadia em retratar a homossexualidade em um ambiente militar, como por relatar cenas de sexo interracial. Naquela época as pessoas jamais imaginariam o valor que um cafuçu iria adquirir na sociedade moderna (oi?) e quem sabe isso explique a recepção nada calorosa ao livro de Caminha.

“Há dias metera-se-lhe na cabeça uma extravagância: conquistar Aleixo, o bonitinho, tomá-lo para si, tê-lo como amantezinho do seu coração avelhentado e gasto, amigar-se com ele secretamente, dando-lhe tudo quanto fosse preciso: roupa, calçados, almoço e jantar nos dias de folga – dando-lhe tudo enfim.” (Bom-Crioulo, Adolfo Caminha)

No início do século XX foram raras as publicações que em seus conteúdos descreviam relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O que se tem conhecimento é de um conto publicado em 1914 por um autor desconhecido que assinava como Capadócio Maluco. O conto foi publicado na revista Rio Nu, uma espécie de ancestral da playboy, e intitulava-se O menino do Gouveia. O nome por si só já era uma referência ao universo homossexual, visto que Gouveia era uma gíria que nomeava homens mais velhos que gostavam de outros homens mais novos.

"Eu tomo dentro por vocação; nasci para isso como outros nascem para músicos, militares, poetas ou até políticos. Parece que quando me estavam fazendo, minha mãe, no momento da estocada final, peidou-se, de modo que teve todos os gostos no cu e eu herdei também o fato de sentir todos os meus prazeres na bunda. Quando cheguei aos meus treze para catorze anos, em que todos os rapazes têm uma curiosidade enorme em ver uma mulher nua, ou pelo menos um pedaço de coxa, um seio ou outra parte do corpo feminino, eu andava a espreitar a ocasião em que algum criado, ou mesmo meu tio, ia mijar, para deliciar-me com o espetáculo de um caralho de um homem." (O menino do Gouveia, Anônimo)

O fragmento em questão é suficiente para se ter uma clara ideia do caráter transgressor da narrativa, não apenas pelo tema, mas também pela construção lexical e pela percepção que o personagem tem em si como sujeito. O conto, pouco conhecido pela crítica, teve publicação única, sendo preservado pelo acervo de obras raras da Biblioteca Nacional do Brasil. Hoje mesmo é difícil encontrá-lo completo. Na internet (que sempre nos surpreende), é possível encontrar alguns trechos e dar algumas boas gargalhadas com o conto.

Em 1933, o sociólogo Gilberto Freyre era acusado como pornográfico depois de publicar Casa-Grande e Senzala. Na época, o cronista João do Rio publicava dois contos homoeróticos (Impotência e Ódio). No mesmo ritmo, Mário Faustino despontava com sua poesia homoerótica e Cassandra Rios era intimada a comparecer perante juízes e delegados por descrever cenas amorosas entre lésbicas.

"Naquele tempo, as mulheres aproveitavam o carnaval para usar suas calças compridas, camisas, gravatas, caracterizando-se de homem para melhor serem identificadas pelas outras mulheres, as "passivas". O carnaval nos clubes marcava momentos grandiosos na vida das lésbicas, que se fantasiavam de Zorro, de caubói, usavam máscaras, cortavam os cabelos rente na nuca, riscavam bigodes com lápis de sobrancelhas e até costeletas. Era a liberdade. O diabo soltava-as pelas ruas e elas invadiam os salões. A orquestra atacava os sambas e marchas, as serpentinas riscavam o ar, confetes atapetavam o chão, e as lésbicas confinavam-se no toalete. E para lá iam, atraídas, as que tinham tendências para eclodir durante os três maravilhosos dias festivos." (Eu sou uma lésbica, Cassandra Rios)

Em 1981, Caio Fernando Abreu publicava o livro de contos Morangos Mofados, que trazia a história de amizade entre dois homens que não sabiam ao certo se eram apenas grandes amigos ou se estavam apaixonados um pelo outro. Hilda Hilst, uma das escritoras brasileiras mais intensas de todos os tempos e por quem eu nutro todas as paixões, lançou em 1993 a sua história de temática homoafetiva Rútilo Nada. Um pouco antes disso, em 1991, a autora já havia publicado Cartas de Um Sedutor, que já contava com cenas homoeróticas na sua narrativa.

"Perdoa-me, Cordélia, mas a não ser tu, minha irmã e tão bela, não tive um nítido e premente desejo por mulher alguma. Mas sempre gosto de ser chupado. Então às vezes seduzo algumas de beiçolinha revirada. Mas o falo na rosa, nas mulheres, só ‘in extremis’. Há em todas as mulheres um langor, um largar-se que me desestimula. Gosto de corpos duros, esguios, de nádegas iguais àqueles gomos ainda verdes, grudados tenazmente à sua envoltura. Gosto de cu de homem, cus viris, uns pêlos negros ou aloirados à volta, um contrair-se, um fechar-se cheio de opinião. E as mulheres com seus gemidos e suas falações e grandes cus vermelhuscos não me atraem. Bunda de mulher deve dar bons bifes no caso de desastre na neve." (Cartas de Um Sedutor, Hilda Hilst)

O terceiro travesseiro, talvez o romance na temática homoafetiva mais conhecido na comunidade gay, foi um romance publicado em 1998 e marcou a estréia do escritor paulista Nelson Luiz de Carvalho. O livro sobre dois jovens que descobrem juntos suas sexualidades e compartilham diversas fantasias amorosas já passou da sua décima edição e já foi até adaptado para o teatro. Um pouco depois de O terceiro travesseiro, Nelson publicou Apartamento 41, que (com uma leitura que considero dispensável) tenta relatar a redescoberta sexual de um homem casado.

Em 1999, o escritor espírito-santense Luís Capucho publicou o erótico-pornô Cinema Orly, um livro sobre orgias masculinas no interior de uma sala de exibição de filmes pornográficos localizada em um subsolo da Cinelância carioca. Capucho que é conhecido também pelos seus trabalhos como compositor de mais de cem letras de MPB, dentre elas Maluca, interpretada por Cássia Eller.

"Há muito não vou ao Orly assistir a um filme pornô e pagar um boquete". (Cinema Orly, Capucho)

A literatura produzida na temática homossexual com frequência gira em torno do erotismo e da descoberta da sexualidade. Embora exista muita gente incomodada com fato de o grande personagem dessas narrativas ser o sexo, não se pode negar que se há oferta, existe a procura. Exemplo disso é o sucesso estrondoso de Cinquenta Tons, que sem uma história envolvente conquistou milhares de donas de casa com suas cenas de sexo fantasiosas onde uma jovem submissa tem onze orgasmos seguidos em curtos intervalos de tempo .

I Know It When I See It, Aura Ronsenberg

O erotismo é um translúcido laço que liga pessoas conhecidas ou não em diferentes ocasiões (já dizem os mais sábios que não existe melhor maneira de interagir do que falando sobre sacanagem). Ler histórias eróticas é tão bom quanto escrever, e falar de erotismo é tão interessante quanto praticar (mentira). Ainda que você não goste de nada que beire o erótico (ou o pornô escrachado), é sempre válido lembrar que literatura nunca é demais, mesmo que às vezes a literatura não seja do seu campo de atuação. Para finalizar o post, deixo um trecho de uma carta do Álvares de Azevedo (sim, o poeta romântico que todos aprendem sobre no ensino médio) a um amante.

"Luís, há aí não sei quê no meu coração que me diz que talvez tudo esteja findo entre nós [...] há em algumas de minhas cartas a ti uma história inteira de dois anos, uma lenda, dolorosa sim mas verdadeira, como uma autópsia de sofrimento. Luís, é uma sina minha que eu amasse muito e que ninguém me amasse. Assim como eu te amo, ama-me".

ELDER FERREIRA
Enviado por Patrick Sousa em 07/03/2016
Código do texto: T5565952
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