O GUARANI
INTRODUÇÃO
Como observa o próprio Alencar, nas "notas do autor", o título dado ao livro – "o guarani" – "significa o indígena brasileiro". Peri, pois, protagonista da história, seria não só o representante da grande nação tupi-guarani (da tribo dos goitacás), como também o símbolo do aborígine brasileiro em geral.
O Guarani foi publicado, inicialmente, sob a forma de "folhetim", de fevereiro a abril de 1857. Segundo consta, sua publicação fez grande sucesso na época, sendo os exemplares do jornal, em que era publicado, disputados avidamente pelo público leitor. O interesse era, talvez, semelhante ao que acontece hoje com as novelas de televisão.
Além de O Guarani, Alencar publicou diversos outros romances, sendo, até hoje, um dos autores mais lidos da literatura brasileira. A crítica costuma dividir os seus romances em quatro grupos:
a) romances urbanos: A Viuvinha, Diva, Lucíola, Senhora, etc. cujo cenário é a corte do Rio de Janeiro;
b) romances históricos: As Minas de Prata e Guerra dos Mascates;
c) romances regionalistas: O Gaúcho, Sertanejo, O Tronco do Ipê;
d) romances indianistas: O Guarani, Iracema e Ubirajara.
Importante observar que Alencar, no prefácio a Sonhos d' Ouro, classifica O Guarani como "romance histórico" – certamente levado por alguns elementos históricos que o livro apresenta. Mas, como observa Oscar Mendes, na introdução da coleção "Nossos Clássicos" (vol. 95), "achamos de melhor alvitre arrolar O Guarani entre os romances indianistas, onde melhor se enquadra, pois o fundo verdadeiramente histórico da narrativa e por demais limitado e sem importância". (p. 7).
O Guarani é um livro estruturado bem ao gosto romântico, pois o enredo contém ingredientes que 1he são próprios: amor, aventuras, vilões, além do exótico e do pitoresco dos personagens e do cenário.
A rigor, o livro (como, de resto, todo "romance romântico") é muito mais uma novela que um romance. Basta lembrar que existe uma nítida preocupação pelo enredo, o que não acontece com o verdadeiro romance, cuja característica básica é a análise. Além do mais, O Guarani apresenta superficialidade de caracteres, inexistindo, nas personagens, “densidade psicológica" e traços que as caracterizam e "personificam" dentro do livro. Em geral, observa-se que os personagens seguem linhas preestabelecidas, bem ao gosto da época, com traços marcadamente simbólicos, inteiramente destituídas de "personalidade".
ENREDO E ESTRUTURA
Em síntese, em O Guarani se contam as dramáticas lutas do fidalgo português D. Antônio de Mariz contra os índios que lhe assediam a casa e terras e contra a revolta dos homens d'arma a seu serviço, estimulados pelo ex-frade italiano, Loredano. Encontra D. Antônio de Mariz leal e dedicado aliado na pessoa do índio Peri, fascinado pela beleza celestial de Cecília, filha de D. Antônio. Peri salva mais de uma vez a vida de Ceci, como a chamava, e, tornado cristão, recebe do fidalgo português a missão de salvar-lhe a filha quando, impossibilitado de resistir por mais tempo à investida numerosa dos selvagens, resolve destruir sua casa para não se render.
Paralelamente, narram-se também no livro os amores de Isabel, filha natural de D. Antônio de Mariz, e do jovem fidalgo D. Álvaro de Sá" ("Nossos Clássicos", p. 19).
Todos esses fatos são colocados, detalhadamente, nas quatro partes que compõem o livro:
Primeira Parte
A primeira parte, intitulada "Os Aventureiros", e que consta de quinze capítulos, faz uma descrição do lugar onde se achava a casa de D. Antônio de Mariz, situada às margens do rio Paquequer no interior do Estado do Rio. Está-se em 1604, época em que Portugal esta sob o domínio espanhol. Aliás, é por essa razão que o leal fidalgo português se refugia nesse recanto. Não pretendia prestar vassalagem ao rei da Espanha.
"– Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca desmentiu a fé do juramento" (p. 30)
Longe da civilização, nesse recanto semelhante a "um castelo feudal da Idade Média" (p. 31), vivia o leal fidalgo com sua mulher, D. Lauriana; seu filho, D. Diogo; suas filhas Cecília e Isabel (esta última, filha natural – tida como "sobrinha").
Com o desenrolar da narrativa, novas personagens são introduzidas: Álvaro de Sá e Loredano que entram em ação já demonstrando uma rivalidade que sempre os acompanhará. É aqui que aparece o índio Peri às voltas com a captura de uma onça.
Destaca-se ainda na primeira parte a trama de Loredano, frade renegado (= Ângelo di Luca) que pretende assassinar D. Antônio de Mariz e levar Cecília consigo, pois devotava por ela violenta paixão. Para isso, alicia dois companheiros: Rui Soeiro e Bento Simões que se deixam levar pela promessa de riqueza fácil (Loredano era possuidor do mapa das lendárias minas de Robério Dias).
Por outro lado, destaca-se também a apreensão de D. Antônio de Mariz que prevê um ataque dos índios: seu filho, D. Diogo, acidentalmente, matara uma índia e o fidalgo teme a vingança. É o que relata ao seu fiel escudeiro Aires Gomes no Capitulo VI.
Aos poucos, a narrativa vai-se concentrando em torno de Peri, o protagonista da história, e da sua protegida, Cecília. Suas façanhas preenchem capítulos e mais capítulos e sempre esta presente, quando a filha de D. Antônio de Mariz corre perigo: ao banhar-se nas águas de um rio, Peri salva-a de morte certa, quando os parentes da índia morta por D. Diogo querem vingá-la. Nesse mesmo dia, Peri descobre toda a trama diabólica e hedionda de Loredano.
Segunda Parte
"Peri" é o titulo da segunda parte. Aqui, através de um "flash back", que se alonga até o Capítulo IV, o autor volta ao ano de 1603 para explicar a origem de Loredano: era o frei Ângelo di Luca que, em confissão, obteve o roteiro das minas de prata de Robério Dias. Abandona de forma escusa a batina e arquiteta um plano para ficar com a riqueza e com a bela filha de D. Antônio em cuja casa se hospeda como aventureiro.
É também através desse "flash back" que ficamos conhecendo a origem de Peri: a família do fidalgo português passeava tranqüilamente e Cecília corria pelos campos, quando rola uma imensa pedra e está prestes a esmagar a menina. É aqui que surge Peri: numa atitude hercúlea, esbarra a pedra e salva Cecília de morte certa. A partir daqui, seu contato com a família será constante, sempre como "anjo da guarda" de Cecília por quem devotava verdadeira adoração, pois o índio a confundia com Nossa Senhora. Não obstante, a filha de D. Antônio o despreza e magoa. É aqui que surge o apelido "Ceci" (= a que magoa). Mas logo a menina percebe o lado sublime da ação do índio e a história vai-se concentrando, cada vez mais, no envolvimento dos dois.
Retomando a historia, Loredano trama contra a vida de Álvaro (era seu concorrente na disputa de Cecília), mas Peri o salva de morte certa, quando o vilão ia matá-la à traição.
Por outro lado, sentindo que Isabel amava a Álvaro, Cecília, num gesto nobre e grandioso, provoca o encontro dos dois, depois de presentear a "irmã" com o bracelete que Álvaro 1he dera.
Depois de tantas façanhas, Peri está na iminência de ser mandado embora: D. Lauriana, que não gostava do índio e achando que ele punha a vida de todos em perigo, exigiu que D. Antônio o despedisse. Aqui todo o heroísmo anônimo do índio se revela e ele continuaria prestigiado pelo fidalgo português.
A segunda parte encerra com uma sugestiva "xácara", cantada por Cecília, que narrava o amor de uma "cristã" e de um "mouro", sem dúvida, o caso dela e do índio:
"Tu és mouro; eu sou cristã" (p. 204)
Terceira Parte
Intitulada "Os Aimorés", a terceira parte se concentra na perfídia de Loredano que começa a executar o seu diabólico plano. Mas Peri, atento a todas as manobras do ex-frade, mata a Rui Soeiro e Bento Simões e a queda de Loredano está iminente.
Aqui surge o inimigo comum: os Aimorés.
Movidos pela vingança, os índios cercam a casa do fidalgo português que não tem forças suficientes para rechaçá-los. Novamente é Peri que vem salvá-los, entregando-se como prisioneiro aos aimorés, após envenenar o seu corpo. Seu plano era envenenar todos os índios, pois fatalmente eles comeriam a sua carne, e salvar Cecília com o sacrifício de sua vida.
Quarta Parte
Na quarta parte, intitulada "A Catástrofe", Álvaro entra em cena e, num gesto de bravura e coragem, salva Peri no exato momento em que ia morrer.
Por outro lado, Loredano é condenado à fogueira e Álvaro, ao sair com uma caravana em busca de víveres, é morto pelos índios. Mais uma vez, é Peri quem surge e arrebata o corpo das mãos dos antropófagos índios e o leva, já morto, à casa de D. Antônio. Isabel, que não saberia viver sem ele, ingere veneno e morre também para se encontrar com o amante na outra vida.
Diante de nova investida dos aimorés e vendo-se perdido, D. Antônio incumbe Peri de salvar sua filha, levando-a para casa de sua irmã no Rio de Janeiro. Antes, há a cerimônia de batismo e Peri se torna cristo, recebendo o nome de Antônio.
Adormecida, Peri carrega Cecília, numa canoa, pelo rio abaixo, quando a casa do fidalgo explode: era D. Antônio que explodia o paiol de pólvora destruindo os seus e também os índios.
Enquanto isso, a canoa vai descendo, lentamente, o rio Paraíba. Peri quer cumprir a sua missão: levar a filha de D. Antônio de Mariz ao seu destino. A menina, porém, quer ficar com o índio a quem já ama. Um temporal começa a desabar. Um pouco mais, e o rio transbordaria. Tal como na lenda de Tamandaré (= Noé bíblico), Peri e Cecília refugiam- se no topo de uma palmeira. Ás águas começam a subir e, num esforço hercúleo, o índio arranca a palmeira e os dois somem-se no horizonte.
O ESTILO DE ÉPOCA
Facilmente se percebe o estilo de época romântico em 0 Guarani. Várias de suas características podem ser detectadas:
1) O Romantismo foi, sem dúvida, a "apoteose do sentimento ". É um estilo que se centraliza no coração e que se destina sobretudo a sensibilizar o leitor. Assim como o clássico escrevia fundamentado na razão (= na lógica, no intelecto), o romântico o faz com o coração. Daí o amor ser uma de suas principais temáticas. É uma literatura que procura enternecer e comover.
Em O Guarani, não é difícil perceber essa situação. Não só a história de amor de Isabel e Álvaro nos emociona, como sobretudo a de Peri e Cecília. Isto sem falar da exaltação de sentimentos como lealdade, nobreza, bravura, honra que caracterizam bem as verdadeiras personagens românticas como é o caso de Cecília, Álvaro, D. Antônio e Peri.
2) Outra atitude freqüente e a procura de solidão. O personagem romântico é sempre um individualista – um solitário, que foge da sociedade. Em 0 Guarani, é interessante observar a atitude de D. Antônio que se isola num recanto, longe da sociedade. É bem verdade que essa atitude foi provocada pela lealdade que devotava ao rei de Portugal, mas não deixa de ser um aspecto romântico.
Além dessa atitude, outros exemplos podem ser colocados. É o caso da referência abaixo a Cecília que, deixando Isabel a sós, "foi agasalhar os seus dois companheiros (= a rolinha e o veado) de solidão" (p. 52). Também referindo-se a Álvaro, entre o amor de Cecília e Isabel, o autor diz que "o moço procurava a solidão para pensar em Cecília, mas sobretudo para refletir num fato que se tinha dado essa manhã e que ele não podia compreender" (p. 142).
3) Falar do culto à natureza em O Guarani é falar do óbvio,. Freqüentemente, o autor interrompe a narrativa para, numa atitude bem nacionalista, exaltar a natureza selvagem, exuberante e majestosa de nosso país.
Como se sabe, esse "culto" se deveu sobretudo a teoria do "bom selvagem” de Rousseau. Aí o autor afirma que o homem primitivo e selvagem e bom e puro por natureza – o oposto do homem civilizado, que era corrompido e cheio de mazelas. Daí a exaltação do índio, como é o caso de Peri, também eleito como símbolo nacional. Na natureza, pois, é que estava o belo, o puro. Daí a sua exaltação, o seu culto e também a sua procura. A referência abaixo de Álvaro a Peri é bem expressiva nesse sentido.
"Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?" (p. 152).
Noutra passagem, numa atitude bem nacionalista, Alencar escreve pela boca de D. Antônio de Mariz: "o contato deste solo virgem do Brasil, o ar puro destes desertos remoçou-me durante os últimos anos" (p. 169).
4) O sentimento religioso é outra presença constante no estilo romântico. Sem dúvida, era a forma de se opor à mitologia clássica e uma ligação ao passado medieval: a difusão do cristianismo, da fé, é uma missão, um compromisso que a personagem romântica sempre se propõe. Aliás, é o que diz D. Antônio ao filho, D. Diogo, quando o afasta de casa: "combatereis como fidalgo e cristão em prol da religião, conquistando ao gentio esta terra que um dia voltará ao domínio de Portugal livre" (p. 55).
Outros exemplos em O Guarani são freqüentes. Logo no início, toda a família se silencia para a "prece" do crepúsculo quando a própria natureza parecia dizer "Ave-Maria" (p. 60). O batismo de Peri, já no final do livro, chega a ser uma exigência do fidalgo português para que o índio fuja com sua filha. Além da própria identificação de Cecília com Nossa Senhora, como a via Peri.
5) A literatura romântica, em geral, busca sempre o ideal – o que deve ser, não o que é. Aqui entra boa dose de imaginação e de sonho. Neste sentido, o escritor foge do presente e se projeta no futuro, deixando-se levar pelo exagero e pela inverosimilhança.
Em O Guarani, basta ver as façanhas hercúleas e sobrenaturais do índio Peri que "havia lutado com o tigre, com os homens, com uma tribo de selvagens, com o veneno; e tinha vencido" (p. 366). No final do livro, chega a lutar com a própria natureza, quando enfrenta as águas no topo da palmeira. É o super-homem, o homem sobrenatural.
Outro exemplo é Cecília, que representa bem a mulher-anjo dos românticos, sempre loira e de olhos azuis. Cecília, no livro, é de uma beleza e candura que chega a vir aureolada de santa como escreve o autor: "a imagem graciosa de Cecília apareceu cercada de auréola" (p. 224). Aliás, é assim que Peri a vê: como Nossa Senhora. Adjetivos como inocente, pura, virgem, casta, cândida, são freqüentes na sua caracterização. Vendo-a, os olhos não cobiçavam a matéria; elevavam-se aos céus e a transformavam em mulher- anjo:
"Vendo aquela menina loura, tão graciosa e gentil, o pensamento elevava-se naturalmente ao céu, despia-se do invólucro material e lembrava-se dos anjinhos de Deus" (p. 180).
6) Outro aspecto constante no Romantismo é a associação amor e morte. O amor, para o romântico, deve ser sempre um sentimento puro, – brotado espontaneamente do coração. O amor romântico vem sempre despojado de qualquer interesse: e um amor sublime. Quando isso não acontece, – quando a lei do coração não consegue vencer as coações dos interesses sociais ou familiares, a morte surge como solução. A morte (ou o isolamento num convento) e sempre a saída para o caso de um amor impossível.
O caso de Isabel e Álvaro, em O Guarani, é um bom exemplo. É claro que não houve coações. Aqui a morte de Álvaro se deveu sobretudo à lealdade, ao compromisso empenhado a D. Antônio de Mariz que o elegeu para marido de Cecília. Seu coração, entretanto, se inclinava para Isabel, depois que a descobriu. No livro, são constantes pensamentos nesse sentido, principalmente de Isabel:
"– Tendes razão! Só a morte pode desligar de um primeiro e santo amor aos corações como os nossos!" (p. 257).
Quando Álvaro morre, Isabel também o acompanha arrastada pela paixão e pelo desejo de encontrá-lo na eternidade – seria "uma noiva do túmulo", como diria ela na p. 328:
"Isabel não tinha mais forças para resistir e realizar o seu heróico sacrifício; deixou cair a cabeça desfalecida, e seus lábios se uniram outra vez num longo beijo, em que essas duas almas irmãs, confundindo-se numa só, voaram ao céu, e foram abrigar-se no seio do Criador" (p. 331).
A cena, que lembra em muito a tragédia de Romeu e Julieta, é tipicamente romântica e representa bem a lealdade ao primeiro amor dos heróis românticos.
7) Outro aspecto freqüente no romance romântico é a oposição herói x vilão que, no fundo, representa a luta bem x mal. Isso é constante no Romantismo e, em O Guarani, sua presença é tão marcante, que chega a merecer capítulos especiais: "lealdade" (p. 29), "gênio do mal" (p. 129), "vilania" (p. 142).
Como sabemos, em O Guarani, o papel de vilão é exercido pelo ex-frade italiano Loredano, "o frade renegado", "o gênio do mal", autor de uma trama diabólica que visava à morte de D. Antônio de Mariz e ao rapto de Cecília a quem desejava ardentemente. No episódio em que quase mata Álvaro à traição, ele demonstrou bem de que era capaz. Felizmente, Peri sempre surge na hora oportuna e o vilão acaba sendo vítima de sua própria maldade.
Por outro lado, colocam-se os verdadeiros heróis românticos, donos de virtudes e qualidades que os sublimam e dignificam: lealdade, honra, nobreza, coragem, tenacidade, dignidade etc. E o caso de D. Antônio, de Álvaro, de Peri.
Evidentemente o vilão é uma presença necessária dentro da estrutura do livro: é ele que, assumindo o papel de antagonista, realça as virtudes do protagonista e deflagra a maior parte das ações.
8) O nacionalismo, numa exaltação do passado nacional, é outro aspecto romântico que teve em Alencar um dos seus grandes cultores. Como observou Machado de Assis, "nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira". Com efeito, perpassa a sua obra "um tom de indiscutível nacionalismo não só na exaltação do aborígine, senhor da terra, mas no próprio estilo da narrativa", observa Oscar Mendes (p. 8).
É preciso observar, entretanto, que esse nacionalismo – fruto do orgulho nacional (a independência foi em 1822) tem muito mais de caráter ufanista e utópico que crítico e consciente. Era preciso atestar a nossa nacionalidade e a nossa independência. E é aqui que entra o índio com sua força, com sua coragem, com sua bravura, como símbolo da terra e do orgulho nacional.
Em 0 Guarani, não só Peri representa esse ideal com sua nobreza e lealdade, com sua coragem e força; também a terra, a paisagem está aí exaltada de forma ufanista e patriótica:
"D. Antônio de Mariz, sentado junto de sua mulher, contemplava por entre uma abertura das folhas o céu azul e aveludado de nossa terra, que os filhos da Europa não se cansam de admirar" (p. 122).
Também está aí, contrastando com os cabelos louros e olhos azuis de Cecília, a mulher brasileira com sua cor de jambo e sua sensualidade que Isabel representa. No capítulo "Loura e Morena" (p. 47) está patente essa caracterização.
O sentido nacionalista da obra de Alencar sobressai na própria linguagem, no próprio estilo, perpassado de uma melodia e sintaxe próprias do Brasil, além de inúmeros vocábulos indígenas de que faz uso. Aliás, por essa razão, Alencar foi muito criticado pelos "lusitanófilos" que não viam com bons olhos esse estilo brasileiro.
LINGUAGEM
Além do tom nacionalista que marca o estilo de Alencar, outros-aspectos caracterizam a sua linguagem:
1) As corporações de sabor poético, que marcam bem a linguagem sobretudo de Peri, são freqüentes em O Guarani. Com efeito, a linguagem do índio e poética, metafórica, melódica e cheia de comparações. Chega a ser um aspecto coerente, sabido que o homem primitivo falava principalmente através de metáforas e comparações.
Em 0 Guarani, como já falamos, essas comparações são constantes e sempre associadas a elementos da natureza:
"– Peri, só, defendera sua senhora: não precisa de ninguém. É forte; tem como a andorinha as asas de suas flechas; como a cascável o veneno das setas; como o tigre a força de seu braço; como a ema a velocidade de sua carreira." (p. 202).
Belíssimo e sublime da parte do índio é essa outra em que ele pretende morrer (= "murchar") para dar a vida a sua senhora, entregando-se aos aimorés: "tu sabes que a vida é como a palmeira: murcha quando tudo reverdece" (p. 273).
Outras chegam ao exagero, como é o caso do beija-flor que confundiu a boca de Cecília com um fruto: "Destes, um veio aninhar-se no seu seio, o outro começou a voltejar em torno de sua cabeça loura, como se tomasse a sua boquinha rosada por um fruto" (p. 136)
2) 0 gosto pela descrição é outro aspecto que marca bem o estilo de Alencar. Não é fidelidade ao fato narrado (como no Realismo); trata-se antes de vôos da imaginação: são sempre quadros fantasiosos e superficiais de caráter inverossímil. É o caso por exemplo da descrição abaixo de Cecí1ia:
"Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor da gardênia dos nossos campos, orvalhada pelo sereno da noite; o hálito doce e ligeiro exalava-se formando um sorriso.
Sua tez, alva e pura como um floco de algodão, tingia-se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo de linhas suaves e delicadas". (p. 47)
Nesses casos, o imperfeito é sempre usado, posto que se trata de um tempo essencialmente pictórico.
3) Refletindo o nacionalismo da linguagem, é freqüente a próclise inicial, visto ser esse um fenômeno comum na linguagem coloquial brasileira.
"– A trouxe viva! Mas não vedes que é impossível!" (p. 90)
"– Merece uma reprimenda: lha darei e forte." (p. 91)
"se dispuseram a ouvi-lo com uma emoção de tristeza e respeito" (p. 170).
"a pena vindo de vós será para mim um consolo. Mo negareis?" (p. 187)
"– me cedereis uma parte dos nossos homens" (p. 301)
Por outro lado, a ênclise indevida, em situaqi5es não permitidas pela gramática tradicional, também é freqüente. Incoerentemente (já que a nossa tendência e para a procries), parece refletir colocação brasileira:
"... e que tinham-se animado a estabelecer neste lugar" (p. 31)
"... uma lágrima que desfiava-lhe pela face" (p. 74)
"Quando levantou-se, o seu rosto exprimia grande surpresa" (p. 104)
4) Outro aspecto que reflete gosto da linguagem da época (desleixo?), hoje considerado errado, e a flexão do verbo fazer quando indica tempo:
"... depois de amanhã fazem três semanas" (p. 52)
Como se sabe, "fazer", neste caso, é impessoal e não pode concordar com "três semanas", que funciona como objeto direto. Noutra passagem, o autor escreve "fazem já dez anos" (p. 170) – igualmente errado no português de hoje.
(Outra coisa também errada no português de hoje, e que na época do Romantismo parecia comum, é a falta de distinção entre onde e aonde. É comum encontrar-se "onde"
em lugar de "aonde" (= verbos com a prep. A) e vice-versa'
"– Onde vais? perguntou a menina inquieta" (p. 356)
5) Não obstante esses traços da sintaxe brasileira que Alencar, no seu nacionalismo, procura estilizar, a linguagem e perpassada de um tom lusitano, a começar pelo tratamen-
to cerimonioso vós e íntimo tu, inteiramente desusado entre nós. É bem verdade que pode ser questão de coerência: praticamente todas as personagens são portuguesas, como se sabe. Mas até o brasileiro Peri faz uso dessa linguagem, se bem que cometem alguns erros quanto ao emprego correto do imperativo negativo:
"– Não chora, senhora, disse o índio aflito" (p. 360)
Mas tudo é justificável num índio com um ano e pouco de civilização. Aliás... deixa pra lá!
PERSONAGENS
Em geral, não é difícil a caracterização das personagens românticas. Apresentam sempre as mesmas características, de acordo com o que prescrevia o figurino romântico.
Em 0 Guarani, avultam-se como as mais importantes:
1) PERI: é um super-homem que encarna bem as qualidades que o autor lhe confere como símbolo da terra e da pátria brasileira: e corajoso, bravo, impetuoso, leal e nobre, como reconhece o próprio D. Antônio.
"É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, e um cavalheiro português no corpo de um selvagem!" (p. 63)
Peri é, pois, um selvagem idealizado, dono de qualidades que fariam inveja aos mais nobres e leais fidalgos medievais.
Por outro lado, é o protetor de Cecília – o seu "anjo da guarda", como o chamou D. Antônio:
"A casa onde habita um amigo dedicado como este, tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos" (p. 176)
Por ela, não hesitaria em matar ou morrer como demonstrou várias vezes. Para ele, Cecília não era um simples mortal; mas uma santa que ele protegia e cultuava, – "uma religião";
"Em Peri, o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo" (p. 72)
2) CECILIA: com seus "grandes olhos azuis", "lábios vermelhos" e "longos cabelos louros" (p. 47) e o protótipo da beleza romântica.
Como já mostramos, encarna bem a mulher-anjo do Romantismo: "esse anjo louro, de olhos azuis, representava a divindade na terra" (p. 78), como escreve Alencar.
Bela, pura, inocente, virgem, essa menina e dona de qualidades morais dignas de uma heroína romântica. Quando percebe que Isabel ama a Álvaro, não hesita em sacrificar-se em favor da "irmã". É bem verdade que se revelou mesquinha e ingrata com Peri no início, desprezando-o e magoando-o. É daí que surge o apelido "Ceci", a que magoa, como lhe chamou o índio.
3) D. ANTONIO DE MARIZ: é o protótipo do fidalgo medieval, colocando acima de tudo a lealdade, a honra, a dignidade e a nobreza: "Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza e que só a ele devia preito e menagem" (p. 29)
Ao isolar-se com sua família, lembra bem o sistema feudal da Idade Média onde ele era o senhor – o patriarca absoluto e autônomo, prestando contas de seus atos apenas ao rei de Portugal. O caso com seu filho, D. Diogo, e bem um exemplo do seu patriarcalismo.
4) LOREDANO: como já se falou, é o vilão da história, representando bem o antagonista. Frade renegado, levando uma vida cheia de crimes, Loredano era o "gênio do mal" (p. 129), uma inteligência voltada ao crime" (p. 211).
Sua participação no livro é das mais importantes: se não fosse ele, muitas das ações nobres e dignas do protagonista não seriam realçadas.
5) ÁLVARO: é outro que tem traços de herói romântico: corajoso, leal e digno são adjetivos que 1he ficam bem. Embora não tivesse tido muita oportunidade de demonstrar suas qualidades, provou a sua coragem ao libertar Peri das garras dos aimorés.
No mais serve de par a Isabel em mais uma tragédia romântica.
6) ISABEL: com "seus olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador" (p. 49), representa bem a beleza e a sensualidade da mulher brasileira, como observa o autor:
"Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade" (p. 48).
"Filha natural" de D. Antônio (p. 170), Isabel é um misto de anjo e demônio, pois "vendo essa moça morena, lânguida e voluptuosa, o espírito apegava-se à terra, esquecia o anjo pela mulher; em vez do paraíso, lembrava-lhe algum retiro encantador, onde a vida fosse um breve sonho" (p. 180). Infelizmente Álvaro morreu e não pode provar desse "breve sonho" e ela, romanticamente, o acompanha, despojando-se de sua provocadora "cor de jambo".
As outras personagens que sobressaem são: D. LAURIANA, esposa de D. Antônio; seu filho, D. DIOGO, responsável pela morte da índia que provocou a vingança dos aimorés; e seu escudeiro, AIRES GOMES, que empresta um pouco de comicidade à narrativa.
Destacam-se ainda OS AIMORÉS que, como Loredano, assumem também a função de antagonista.
PROBLEMÁTICA APRESENTADA
Três aspectos básicos avultam em 0 Guarani. A seguir, vamos enumerá-los e desenvolvê-los.
1) Tomando-se como ponto de partida a principal protagonista feminina (= Cecília), o autor coloca o amor em três dimensões. É claro que, no final, acaba prevalecendo o amor sublime e puro dos românticos.
Como já mostramos no início, Cecília desperta em Loredano desejo, volúpia, amor carnal: "Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe queimava o sangue" (p. 71).
"Em Álvaro, cavalheiro dedicado e cortês, o sentimento era uma afeição nobre e pura", (p. 71). Esse sentimento era mais uma obrigação, um dever, do que propriamente uma inclinação do coração do moço. Assim determinara D. Antônio de Mariz.
Finalmente, "em Peri, o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo (p. 72). Era uma dedicação extrema, fiel, cega.
Em síntese: "Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava". (p. 72).
Com o desenvolver da narrativa, cada um tem o seu desfecho: Loredano, apesar da tentativa voluptuosa, não chega a macular o leito sacrossanto da inocente menina e tem fim trágico; Álvaro acaba descobrindo que amava verdadeiramente a Isabel e Peri vai, cada vez mais, ficando sem concorrentes, e o livro vai-se concentrando no amor dos dois.
Um passo importante e dado, nesse sentido, quando o índio se deixa batizar: É o mouro da "xácara" (p. 199) que é empurrado para os braços da donzela cristã: Logo depois levados pelas águas do rio, numa canoa, a menina vai descobrindo que havia algo mais elevado e sublime por trás da palavra "irmão" com que ela chamava o índio.
Mas a sociedade não aceitaria jamais aquele amor. E, entre a vontade da sociedade e a inclinação do seu coração, Cecília opta, evidentemente, pela vontade do coração e fica com o índio na selva:
"– Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas" (p. 363).
Depois viria o dilúvio e eles foram arrastados pelas águas no topo de uma palmeira.
Mas, tal como na lenda de Tamandaré que Peri conta a Cecília, depois do dilúvio, com a terra totalmente purificada e fertilizada pelas águas, o índio "desceria com a sua companheira, e povoaria a terra" (p. 372). Desse conúbio nasceria a raça brasileira na alegoria de Alencar.
2) 0 segundo aspecto que o livro coloca é o da formação da etnia brasileira. Sem dúvida, foi olhando desse ângulo, que o autor classificou 0 Guarani como "romance histórico". Seu objetivo era mostrar um período da história do Brasil em que este era desbravado e colonizado pelos portugueses. Aqui avulta a importância de D. Antônio de Mariz: "Homem de valor, experimentado na guerra, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo"
(p. 29). Como explica o próprio Alencar nas "notas do autor", "este personagem é histórico, assim como os fatos que se referem ao seu passado, antes da época em que começa o romance".
No capítulo "A Bandeira", o romancista de uma dimensão dessas lutas pelo desbravamento e colonização do Brasil, onde mostra "os aventureiros que se entranhavam pelos sertões do Brasil, a busca de ouro, de brilhantes e esmeraldas, ou a descoberta de rios e terras ainda desconhecidos" (p. 34).
Interessante lembrar que, embora não tenham seqüência cronológica, os romances indianistas de Alencar procuram mostrar essa colonização, desde os primórdios: em Ubirajara, tem-se o selvagem primitivo no seu habitat Iracema, o branco (= Martim) começa a aparecer; e, em 0 Guarani, como se viu, esse contato já e bastante evoluído.
O final de 0 Guarani, com Peri (= índio) e Cecília (= branco) no topo da palmeira, é bem um símbolo dessa união: do contato de ambos brotaria o povo brasileiro.
3) O aspecto, entretanto, mais nítido, em 0 Guarani, e, sem duvida, a exaltação da força, da coragem e da nobreza do indígena brasileiro, simbolizado no livro por Peri.
O índio era um elemento americano, autóctone, que atestava bem a nossa nacionalidade e a nossa recente independência: a sua bravura e a sua força simbolizavam bem a bravura e a força do povo brasileiro.
Já se mostraram as qualidades do índio: a sua bravura, as suas lutas, a sua força hercúlea, a sua lealdade, a sua nobreza, o seu heroísmo, – virtudes, afinal, dignas dos mais nobres e bravos heróis da história universal. Na sua trajetória, Peri não conheceu derrotas: era "o rei das florestas" (p. 42), "o mais valente da tribo e o mais temido do inimigo" (p. 125). Lutara com o tigre, com os homens, com duzentos selvagens da tribo dos aimorés, com o veneno – e tinha vencido.
No final do livro surge o heroísmo maior – "um sublime heroísmo". Era a vez de lutar contra as forças da natureza e era preciso vencê-las: a vida de sua senhora corria perigo. Peri tem que lutar com as águas do dilúvio e salvar Cecília. Os destinos da raça brasileira estavam em suas mãos.
"Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura" (p. 372).
"Era uma luta terrível, espantosa, louca, desvairada: luta da vida contra a matéria; luta do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade" (p. 373).
Houve um esforço hercúleo, supremo – "árvore e homem embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes despenderam-se da terra já profundamente minada pela torrente" (p. 373). Aos poucos, a palmeira foi-se desprendendo. Com mais um pouco, seria carregada pela imensidão das águas. Ao lado, aninhada nos cipós, Cecília
soçobrava. Então o índio, "tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:
– "Tu viverás!" (p. 373).