A morte em Madame Bovary: A personagem feminina e o discurso da morte encenada como efeito da escritura

“Todo o bem e todo mal residem na sensação;

Ora a morte é a privação da sensação”.

Epicuro, carta a Meneceu (D.L.X.124.)

Aciomar Fernandes de Oliveira*

Há uma instigante recorrência ao tema da morte na literatura. A morte é uma questão que atravessa o ser e o afeta em todas as atividades da vida. Ela perpassa desde os relatos rupestres indígenas, até às manifestações da cultura helenística.

Na poesia homérica, singularmente na ilíada, vemos a morte encenada como um meio para alcançar a imortalidade, não exatamente a morte, mas a forma para alcançá-la. Os feitos heróicos nas batalhas eram motivados por entender-se que havia um prêmio, como serem recebidos no céu por setenta virgens, etc. Até mesmo para alguns poucos bárbaros havia uma certa fascinação na morte.

A fim de postular a questão da enunciação da morte feminina na literatura na qual se insere Madame Bovary, é preciso considerar, conforme Lacan, que o sujeito é um efeito do discurso. Geralmente na literatura a morte se dá por morte biológica ou através da loucura; em Madame Bovary se dá pela loucura não admitida que a leva ao suicídio.

Essa morte vai sendo estabelecida mesmo na superfície da escrita ou da escritura. Assim sendo, aquele sujeito da enunciação que funciona aqui como um efeito e um lugar da escrita produz no texto, a morte. Esse sujeito da escritura literária está inscrito e escrito no texto em que encena. Assim a linguagem institui esse sujeito em referência ao ideológico e às regras da sociedade.

As estratégias discursivas se delineiam a partir desse lugar, sendo o sujeito efeito desse discurso. O sujeito da escrita não é o autor personificado, nem personagem ou narrador, pois está nessa perspectiva, aquém da escritura. Por conseguinte, o sujeito é falado pelo discurso. A personagem Emma Bovary é um efeito de escritura, que embora numa sociedade patriarcal de representações viris está sob a tensão do oposto da moral dessa sociedade. Essas caracterizações atípicas estão postas na escritura de Flaubert. O romance encena as contradições de uma personagem que não se resolve e por não se resolver suicida-se; isto está disseminado na escritura até pela multiplicidade de discursos ou vozes.

Cabe ressaltar que o imaginário do homem constrói imagem da morte quer seja para tentar entendê-la, quer seja para tentar exorcizá-la de seus pensamentos. A personagem Emma Bovary tinha uma afluência imaginativa muito constante para a busca de novas sensações. Assim sendo a ficção dentro da ficção dada pelos delírios imaginativos de Emma eram o privilégio das sensações levadas ao extremo, a cada minuto.

Muitas vezes depois de Charles sair, Emma tirava do armário, entre a roupa onde deixara, a charuteira de seda verde. Olhava-a, abria-a e chegava mesmo a aspirar-lhe o perfume do forro, misto de verbena e de fumo. A quem pertenceria?... Ao visconde. Era talvez presente da amante.

(Flaubert,1997:61)

Quisera que aquele nome de Bovary, que era seu, fosse ilustre; quisera vê-lo nas vitrinas das livrarias, repetido nos jornais, conhecido em toda a França. Charles, porém não tinha ambições!

(Flaubert, 1997:65)

A busca dessas experiências no plano do desejo e do imaginário escondiam características de uma personagem repleta de anseios e insatisfação com sua própria condição; uma frustração mórbida. A não realização de seu ser e o sentimento de incompletude não deixando marcas da morte na escritura, ou seja essas características vão aos poucos traçando o thanatus de Emma.

Uma morte anunciada por um excesso de individualização no sentido proposto por Émile Dukheim em o suicídio (1987), bem como uma inadaptação à sociedade. A vida que antes primava pela sensação conduz a personagem à insensibilidade. De acordo com Durkheim, existem várias formas individuais de suicídio. Podendo concluirmos que este estabelece uma relação de preferência da morte em lugar da vida. No entanto, não é uma tarefa fácil investigar os motivos e as influências que levam o indivíduo á este fim. Mesmo considerando um conjunto de fatores que pode partir de mitos de influências climáticas à pré disposição individual, observamos que muita coisa pode ser deixada à parte e partirmos para uma análise de dados sociológicos. Durkheim demonstra que mesmo a questão religiosa pode ter sua influência, ou seja as religiões protestantes e que deixam a iniciativa a cargo do indivíduo possuem um grau de integração menor e as mais coesas e fechadas como a igreja católica são mais integradoras. Ora a maior integração e coesão evita o individualismo, assim os católicos estariam ,segundo Durkheim , menos pré dispostos ao suicídio. Portanto, ao nos voltarmos para o romance vemos que Emma está inscrita no seio de uma família sob forte influência católica o que funciona como fator inibidor à sua freqüente alienação , elemento que, associado ao individualismo da personagem, contribui para a fatalidade na narrativa.

As coisas são idênticas, tanto para o suicídio quanto para a alienação mental. Para o vulgo, esta consistia num estado único, que é sempre o mesmo, unicamente susceptível de se diversificar exteriormente conforme as circunstâncias. Pelo contrário, para o alienista, o termo designa uma pluralidade de tipos nosológicos. Da mesma forma considera-se vulgarmente qualquer suicida como um melancólico para quem a existência é um fardo. Na verdade os atos pelos quais um homem renuncia a viver classificam-se segundo diferentes tipos cujo significado moral e social, não é de forma alguma o mesmo.

(Durkheim,1987:276)

Emma Bovary é sob vários aspectos uma personagem complexa, por sofrer metamorfoses e enquadrar-se em diversos tipos de suicídio, ao longo da narrativa. Alternando momentos de profunda percepção da figura do marido, outra hora alijando-se completamente dele. Às vezes Emma exprimia uma indiferença e repugnância por tudo à sua volta. Mas a sua reflexão tinha sempre algo de egoísta, pois se afasta de tudo e volta si para si mesma de maneira que este retorno é mais completo. Somente por isso ela consegue um afastamento oblíquo de Charles. Mesmo o seu amor não tem por finalidade uma entrega, uma união fecunda com alguém que não seja ela, é antes para meditar no seu amor. Assim a relação que Emma estabelece com os seus dois amantes Leon e Rodolphe é apenas uma vivência de aventuradas traçadas no seu perfil imaginativo e alienista, com uma ação centrífuga.

...Não obstante, não ser sensível...já não ocultava o seu desprezo por tudo e por todos; e expressava às vezes opiniões singulares, censurando o que outros aprovavam e aprovando coisas perversas e imorais, o que fazia com que o marido abrisse os olhos espantado.

(Flaubert,1997:.69)

Outro aspecto relevante é que Emma passa por uma insolvência financeira, que conduz à uma perspectiva de suicídio anômico, circunstância em que se dá para a personagem uma ausência de normas sociais, cabe ressaltar que essa situação foi criada pela própria personagem, ao subverter as regras morais de sua sociedade. Essa anomia principia por uma melancolia, dada em face do cansaço da busca pela satisfação dos seus desejos, numa busca interminável em que os desejos se excitam continuamente em vez de se acalmarem.

Que expansão, na quinta-feira seguinte, no hotel, no quarto com Leon! Ela riu, chorou, cantou, dançou, mandou buscar sorvetes, quis fumar charutos, pareceu-lhe extravagante, mas adorável, soberba.

Ele não sabia que a reação de todo o seu ser a impelia ,mais a precipitar-se nos gozos da vida. Ela tornava-se irritável, gulosa, voluptuosa; passeava com ele pelas ruas de cabeça levantada, sem medo, dizia ela, de se comprometer.

(Flaubert,1997)

A narrativa de Flaubert evolui para a delimitação do “ideal” de Emma. Passando pelas contemplações do natural às novas sensações sugeridas no encontro com Leon. Começa-se a vislumbrar a expectativa de um adultério, encenado diante do marido, mas sem que ele percebesse qualquer coisa.

_ E, depois, não lhe parece- continuou a Sra. Bovary- que o espírito vagueia mais livremente por aquela extensão sem limites, cuja contemplação nos eleva a alma, e nos dá idéias do infinito, do ideal?

(Flaubert, 1997:84)

O suicídio está marcado na escritura ou projetado como possibilidade através do comentário do escrevente. A sugestão do efeito dramático, ou até trágico como verdadeira arte, compartilhado por Emma. “_ Com efeito_ observou o escrevente, as obras que não nos abalam o coração afastam-se, segundo me parece, da verdadeira finalidade da arte.” (Flaubert,1997:86)

Tomemos o suicídio como a construção de um novo lugar para Emma, permitindo-lhe a experiência do novo, pois ela compreendia o novo posto á partir de um novo lugar que pudesse traduzir sensações mais amplas e melhores. Antes disso, a razão de sua intensa repulsa pela figura de Charles e sua admiração por León se encontra nesse aspecto.

Emma, que ia ao seu braço, apoiava-se um pouco ao seu ombro, olhando para o disco do sol, que irradiava ao longe no nevoeiro a sua palidez deslumbrante; mas voltou a cabeça e viu charles. Ele tinha o boné puxado até as sobrancelhas e os seus dois grossos lábios trêmulos acrescentavam ao seu rosto alguma coisa de estúpido; até as suas costas eram irritantes de ver e Emma sentia visível, na sua casaca toda a insipidez da sua figura.

(Flaubert,1997:102)

A vida parece às vezes um farsa, não só para Emma, que finge fidelidade ao marido, mas também para outras personagens como Rodolphe. A insatisfação da vida conjugal de Emma estabelece uma mediação com outros elementos da narrativa. A relação com o outro para estes personagens constitui-se em dissimulação, uma máscara. A decepção com o mundo das sensações os conduz à contemplação da morte.

_ Ah! Sim , aparentemente, porque ponho no rosto, para apresentar-me aos outros, uma máscara de escárnio; e, contudo, quantas vezes, à vista de um cemitério ao luar, eu pergunto a mim mesmo se não seria melhor ir reunir-me aos que lá dormem...

(Flaubert,1997:135)

O diálogo com Rodolphe coloca Emma diante de um reflexo de suas inquietações. O discurso encenado neste trecho exacerba a percepção das sensações e desejos e paradoxalmente os aproxima da loucura, que funciona aqui como um prólogo da morte. Cabe ressaltar que não se trata de loucura em sua forma estrita, mas a abstração dos valores, o distanciamento. O estágio onde a razão não mais existe, ou se existe é ignorada; numa busca incessante por uma felicidade que não se realiza.

_ Como assim?

_ A senhora não sabe que há almas constantemente atormentadas? Precisam alternadamente de sonho e de ação, das paixões mais puras e dos gozos mais intensos, balançando-se assim a toda espécie de fantasias, de loucuras.

Ela o mirou, como quem mira um viajante que andou por terras extraordinárias:

_Nós, pobres mulheres, não temos nem essa distração!

_Mas por acaso consegue agente achar a felicidade?

_ Sim, há lá um dia em que topamos com ela.

(Flaubert,1997:.139)

A fatalidade é um tema recorrente, assim sendo vários momentos trágicos na narrativa são associados ao destino, que não podia ser impedido. O destino é por conseguinte uma força maior que a vontade. “..._Não sei que força me arrastou para aqui. Não se pode lutar contra o céu...”(Flaubert,1997:151)

_ Assim, nós: Por que nos conhecemos? Por que o acaso o quis? Foi porque, através da distância, sem dúvida, como dois rios que correm a unir-se, nossas inclinações particulares nos impeliram um para o outro. E Rodolphe tomou-lhe a mão, que ela não retirou.

(Flaubert,1997:143)

O Sonho de Rodolphe está também na dimensão do irrealizável e está posto metaforicamente na imagem do espelho como realidade invertida. O que Rodolphe vislumbra não é uma realidade possível às personagens. A metáfora de espelho permite a descoberta do outro, a subversão da personagem Emma, assumindo para si mesma o amante. Mas vendo-se no espelho fica admirada com o próprio aspecto:

Pensava no que ela havia dito, na forma de seus lábios; seu rosto como um espelho mágico, produzia reflexos nas placas das barretinas; as dobras de seu vestido desciam pelas paredes, e dias de amor desfilavam, infindos aos sonhos do futuro.

(Flaubert,1997:147)

Este trecho nos permite perceber a duplicidade da personagem inscrita por Flaubert através da visualização do rosto como um espelho, como uma realidade invertida. Na verdade, todas as sensações da aventura de Emma estabelecem um contraponto com a sua vida conjugal. Estabelece-se um paradoxo em decorrência da polaridade: objeto / sujeito / imanência / transcendência, ou conforma Simone de Beavouir, dando conta da oposição comum a condição feminina, o destino da mulher e a vocação do ser. Em alguns aspectos a personagem se apresenta como um ser à margem, com um comportamento inaceitável pelos padrões morais da sociedade de seu tempo, com isso o que se escreve é a vida à margem, e margem escorregadia, conforme se lê a seguir:

Mas, quando a prancha das vacas estava erguida, era preciso caminhar ao longo do muro que beirava a ribeira. A margem era escorregadia, e para não cair, ela se agarrava aos buquês de gaivoeiros secos. Seguia depois pelos campos lavrados, nos quais atolava tropeçava e embaraçava as botas.

(Flaubert,1997:158)

A margem escorregadia é pois o lugar da instabilidade, do atoleiro e do tropeço numa confusão de sentimentos dos quais Emma perde o domínio; tornando-se inversamente submissa aos seus desejos. É principalmente à partir da terceira parte do romance que o envolvimento da personagem se acentua, não obstante uma desagregação do seu eixo familiar, como essencial e primeiro nicho social. À medida em que se dá a idealização da aventura, nunca pensada por Emma como adultério, o narrador onisciente vai nos inserindo nos aspectos mais ocultos da personagem. Flaubert por sua vez deixa na escritura marcas do isolamento de Emma. Se ela se aproxima do amante, por um lado, opostamente, afasta-se do marido e de todos do seu convívio. Ou ainda evocando a perspectiva de Bachelard em “A Poética do Espaço”, vemos o recolhimento, a clausura no recôndido do quarto, uma espécie de refúgio particular do secreto, do recalcado. “O bulício da cidade mal chegava até eles, e o quarto parecia pequeno feito a propósito para tornar maior a solidão (Flaubert, 1997:222).

Sra. Bovary x Emma: Uma outra mulher

Consideremos pois, os diversos aspectos da complexidade do ser feminino inscritos na personagem; verifica-se um ser fragmentário, descentrado tal como a narrativa. E se fragmentado, aplica-se à dimensão da incompletude feminina e à impossiblidade de sua representação, por uma verdade do ser. Ora, o que vemos é um ser dividido entre a vivência do cotidiano convencional e a libertação do ser pelo prazer. Emma é o ser dilacerado pela impossibilidade da realização. O amor de Charles não a satisfaz, por outro lado, ela não pode se entregar a suas paixões. São aventuras fadadas ao fracasso sem possibilidade de continuidade. “E apresentou-lhes a impossibilidade daquele amor. Deviam conservar-se como antes, no simples termos de uma amizade fraternal”(Flaubert, 1997:226). Todos os elementos relacionados até aqui estabelecem um quadro de freqüente individualização que segundo Durkheim, é uma das características marcantes do suicida; uma individualização extrema, desde um olhar a partir do qual se dá a inserção do ser na sociedade, ou por antagonismo o repúdio e afastamento. Essa individualização está não apenas em Emma, mas também em Rodolphe e Leon, o que interfere em seu destino fatal.

À noite, já bastante tarde, é que Leon esteve a sós com Emma, no beco, por detrás do jardim; no beco, como o outro! Estava chovendo e eles conversaram debaixo de um guarda-chuva, à luz dos relâmpagos. A sua separação se tornara intolerável.

_ Antes morrer! _ Dizia Emma.

(Flaubert, 1997:246)

Ademais o distanciamento da sociedade, já encerra a personagem numa espécie de túmulo social. Há um anonimato inscrito em algumas personagens da narrativa; ocultando-se o sujeito que somente se percebe pelas sucessões de imagens.

E, no cais entre fados e barricas, nas ruas, parados às portas, os burgueses abriam muito os olhos, ante aquela coisa tão extraordinária na província: uma carruagem, com as cortinas descidas, e que reaparecia continuamente mais fechada que um túmulo e balouçando como se fosse um navio.

(Flaubert, 1997:233)

Outra cena inscrita na narrativa que é de grande relevância é a cena do encontro no beco, no lugar de realizações que não podem se dar a plena luz, lugar do oculto. Impossível não associar transgressão à idéia cristã da culpa e do pecado. Na simbologia bíblica hebraico-cristã, Babilônia era uma terra de insolvência e de rebelião contra o deus hebreu-cristão. Assim, Emma entra no cenário do encontro amoroso transcrito imageticamente como Babilônia, como analogia ao cenário do pecado e do adultério. Ressaltamos que, conforme o registro bíblico “o salário do pecado é a morte” (Rm.6:23).

O seu amor crescia perante o espaço e enchia-se de tumulto aos rumores vagos que iam subindo. Emma espargia-o pelos passeios, pelas ruas; e a velha cidade normanda ostentava-se aos seus olhos como uma capital imensa, como uma Babilônia onde ela penetrava.

(Flaubert, 1997:250)

Um pobre diabo vagabundo – o agoureiro : Uma imagem da morte

A figura que se descreve contrastada à beleza do ambiente funciona como uma alegoria do mal-presságio que acompanha a personagem. Voltando aos elementos sociológicos do suicídio, a loucura é um dos possíveis estágios que o antecedem. A loucura está representada na narrativa pelos excessivos gastos de Emma e as suas dívidas das quais perde o controle, sendo muitas vezes advertida pela sogra. A infelicidade é uma marca na vida de Emma, uma vida consumida com aventuras que não lhe proporcionaram qualquer benefício, senão um gozo momentâneo.

Andava na encosta um pobre diabo vagabundo apoiado ao seu bordão, por entre as diligências. Cobria-lhe o corpo um montão de farrapos; um velho chapéu de castor todo deformado lhe tapava o rosto, mas, quando o tirava mostrava, no lugar das pálpebras duas órbitas ensangüentadas. A carne desfiava-se-lhe em bocados vermelhos, e corria-lhe das feridas um líquido que lhe enchia a cara de úlceras até o nariz, cujas ventas se moviam convulsivamente.

(Flaubert, 1997:253)

A personagem se vê ameaçada, a morte a ronda; se por um lado, vive as emoções de sua paixão por Rodolphe, é obliquamente cortada pela insegurança, os temores de ser descoberta. Assim ela passa do lugar tradicional da segurança que lhe consente o casamento ao perigo constante do encontro com a morte, tomada nesse ínterim em sua forma cabal e natural, ou ainda que tratada como fim de sua experiência de adultério. A descrição lúgubre dos encontros furtivos de Emma e Rodolphe, encenam a obscuridade desse amor, as sombras que se levantam para cobri-los funcionam como prenúncio do desfecho desse romance.

Aqui e ali maciços de sombra alargavam-se na obscuridade, e , às vezes, estremeciam num só movimento, erguendo-se e dobrando-se como vagas enormes e negras que se adiantassem para cobri-los.

(Flaubert, 1997:163)

A condição miserável do homem diante da morte é muitas vezes tratada como algo que o aproxima de um animal qualquer, expondo o sofrimento e a dor. A condição da mulher sobre a qual pesa mais cruelmente as convenções sociais, impedindo que viva plenamente seus sentimentos, também é um dos elementos importantes abordados no romance. Nada mais próprio para trazer à tona as imagens e memórias da vida de Emma do que as representações da ópera de Edgar Lagardy. Ela vê sua vida pela lógica da peça teatral que apresenta também o tema da fatalidade. Quando Charles busca por Emma na casa de Leon, ele próprio dá conta da sua insanidade. “Eu estou realmente doido”, dizia consigo mesmo. “naturalmente a prenderam para jantar em casa de Lormeaux” (p.262).

No estágio último da loucura, Emma perde-se em reminiscências e divagações; chega a perder a consciência de si. Uma outra metáfora da morte é dada pelo narrador onisciente que fala da alma que abandona a personagem.

A loucura invadiu-a, teve medo e afinal conseguiu retomar posse de si de maneira confusa porque não se lembrava da causa de seu horrível estado, da questão do dinheiro. Não sofria senão no seu amor, e conhecia que a alma a abandonava por essa recordação, como os feridos ao agonizar, sentem que a existência se lhes vai pela chaga que sangra.

(Flaubert, 1997:296)

Já prenunciando a fatalidade pela transcendência angustiante da face da personagem, o narrador a descreve num de seus últimos momentos, sobre a ótica do rapaz da farmácia, como uma aparição. Lembrando a cena em Hamlet de Shakespeare, em que a aparição do finado pai do jovem Hamlet, parecia inquirir algo, suscitar uma vingança. Assim, finalmente, a atitude de Emma pode ser interpretada por analogia como uma vingança contra si mesmo e contra todos.

Embora ela sinta que ama Leon, sabe que isso não a realiza; o desejo aumentava cada vez mais, mas não a completava. Lançada no profundo isolamento, sua loucura é focalizada em forma extrema quando sugere um crime à Leon, visando conseguir dinheiro para pagar suas dívidas; o que causa estranhamento no próprio Leon. A subversão moral e a ausência de mobilidade se concretizam na narrativa de maneira que a personagem, sem saída para sua crise financeira, passa a prostituir-se. O desfecho trágico da personagem se dá por uma insuficiência da realização de seus sentimentos.

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*Formado em letras pela UFMG

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. Poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1993.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio: estudo sociológico. 6ª ed. Trad. Editorial Presença Ltda.. Lisboa, 1996.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Araújo Nabuco. São Paulo: Martins editora, 1997.

GOTLIB, Nádia Battella (org.) A mulher na literatura. Vol.3. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1990.

Oliveira Fernandes
Enviado por Oliveira Fernandes em 21/05/2007
Reeditado em 21/05/2007
Código do texto: T494999