Janela da Alma - A percepção do olhar através do foco

1 INTRODUÇÃO

Leonardo da Vinci já dizia no século XIV que “o olho é a janela da alma, o espelho do mundo”. Ele sabia do que falava. Depois dele, vários mostraram à sua maneira a importância do olhar. A filósofa Marilena Chauí, que escreveu o ensaio intitulado “Janela da Alma, Espelho do Mundo”, o escritor José Saramago, autor de Ensaio sobre a cegueira, e o cineasta Wim Wenders, que redigiu o livro A arte de ver, são alguns exemplos que podem ser citados.

O presente trabalho visa a analisar o documentário Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho. Lançado este ano, o filme, que tem duração de 73 minutos, mostra 19 pessoas com diferentes graus de deficiência visual: da miopia discreta à cegueira total.

Os “personagens” falam como se enxergam, como veem os outros e também como percebem o mundo. A tese central da obra é a que a visão é uma construção cultural, e não um ato da natureza. Tudo é exposto por meio de nuances. Os diretores discorrem sobre ver, não ver e ver de maneira única, intransferível.

O escritor e prêmio Nobel de Literatura José Saramago, o músico Hermeto Paschoal, o cineasta Wim Wenders, o fotógrafo cego franco-esloveno Evgen Bavcar, o neurologista Oliver Sacks, a atriz Marieta Severo, o vereador cego Arnaldo Godoy, o escritor e imortal João Ubaldo Ribeiro, os poetas Antonio Cícero e Manoel de Barros, entre outros, fazem revelações pessoais e inesperadas sobre vários aspectos relativos à visão: o funcionamento fisiológico do olho, o uso de óculos e suas implicações sobre a personalidade, o significado de ver ou não ver em um mundo saturado de imagens e também a importância das emoções como elemento transformador da realidade, se é que esta é a mesma para todos.

Segundo dados divulgados na sinopse, no total foram realizadas 50 entrevistas, das quais 19 foram selecionadas para serem usadas no filme. As entrevistas foram realizadas em duas etapas: em novembro de 1999, no Brasil e na Europa; e em abril de 2000, no Brasil e nos Estados Unidos.

Os diretores levaram 450 horas editando 36 horas de material.

O documentário ganhou várias premiações: troféu de Melhor Diretor Estreante no Festival de Gramado; Melhor Documentário no Festival do Rio 2001 e pelo Júri Oficial/Júri Popular na Mostra de Cinema de São Paulo; três prêmios no Cine Ceará, nas categorias: Melhor Filme, Melhor Fotografia e Melhor Música; e Melhor Filme no Festival de Cinema Brasileiro de Paris.

2 A DIMENSÃO VOLITIVA DO OLHAR

O cinema não se mede, não tem passado nem futuro. Cada imagem só existe interligada à que a antecedeu e que a sucede”. Vinícius de Morais – Livro de Sonetos.

O presente trabalho analisará as sequências e planos em que as imagens são utilizadas para alterar a percepção do olhar do espectador através da aproximação do foco, como acontece em determinados momentos em que a câmera chega tão próximo que não se sabe – num primeiro instante – que é a pele humana que está sendo filmada.

Roberto Da Matta aborda o tema da moldura. Segundo ele, a moldura era um dos pontos centrais da vida social. Uma pessoa vê um sujeito atirando numa mulher. Apavorada, ela suspende seu trajeto ordinário e pergunta por quê? Quem são? Como ocorreu a tragédia?

Se a polícia chega, trata-se de um acontecimento real, que a devolverá às suas rotinas, transtornada e transformada. Mas, se alguém lhe disser que o que viu é parte de um filme, ela segue seu caminho, intrigada, se tanto, com a capacidade que temos de nos enganar uns aos outros.

O real é uma moldura; a ficção, outra. O sonho, a fantasia, o delírio, a loucura, a paixão, a fraternidade são outros tantos enquadramentos pelos quais discernimos e ordenamos o que ocorre à nossa volta, que pode ser ou não real.

O fotógrafo cego Evgen Bacvar tem um trabalho interessante sobre A Luz e o Cego. Para ele “é preciso conceber as trevas não somente como uma superfície, mas sobretudo como um volume, como um espaço existencial em que podem ainda aparecer algumas estrelas redentoras brilhando por sobre o novo”.

Os autores de Janela da Alma fazem um trabalho de decupagem/montagem interessante. Muitas vezes o corte é feito brutamente, mas o espectador não perde o sentido total da obra. O corte é feito de tal maneira que consegue se disfarçar de olhar. Não há desperdício nem de imagem, tampouco de silêncio.

O filme brinca com a visão do espectador ao mostrar cenas em que, inicialmente, não dá para perceber do que se trata. Existe a clara intenção de se fazerem jogos visuais, iludindo o olhar. Quem assiste tem a impressão de que está enxergando uma outra realidade.

Acompanhando a torrente de discursos, as imagens são focadas, desfocadas e refocadas, alterando a percepção do espectador. A proximidade do foco faz, por exemplo, que uma pele humana pareça ser uma terra árida. Outdoors que iluminam a cidade se transformam em um mundo de cores desfocadas.

O filme mostra um mundo saturado de imagens que visam a atrair o olhar para o consumo (os outdoors de propagandas) e o contrasta com paisagens desoladas, onde não há nada para ver.

No livro O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, Ismail Xavier trata sobre este assunto dizendo que “as próprias naturezas das ações representadas correspondem a uma situação mais complexa do que a desenvolvida numa única ação. A quebra de continuidade da percepção é justificada.

A sequência de imagens, embora apresente descontinuidades flagrantes na passagem de um plano ao outro, pode ser feita como abertura para um mundo fluente que está do lado de lá da tela porque uma convenção bastante eficiente tende a dissolver a descontinuidade visual numa continuidade em outro nível: o da narração”.

Em Janela da alma, a combinação da passagem com as imagens é feita de tal maneira que os fatos apresentados evoluem por si mesmos, fazendo com isso que o espectador consiga entender o universo contínuo em movimento.

Ismael Xavier já abordava tal assunto na sua obra ao dizer que a plateia aceita esta sucessão não natural imediata de imagens porque esta sucessão caminha ao encontro de uma convenção da representação dramática perfeitamente assimilada.

Tal convergência redime o salto, que permanece aceitável e natural porque a descontinuidade temporal é diluída numa continuidade lógica, de sucessão de cenas ou fatos. A visualização explícita dos acontecimentos só é possível graças ao recurso da montagem.

Nas palavras do autor: “Determinadas relações lógicas, presas ao desenvolvimento dos fatos, e uma continuidade de interesse no nível psicológico conferem coesão ao conjunto, estabelecendo a unidade desejada”.

Ao filmar a pele humana em três momentos – uma filmagem é realizada pelos diretores/autores João Jardim e Walter Carvalho, e as outras duas pela cineasta Agnès Varda – é demonstrado que o ato de ver está carregado de subjetividade, de tal maneira que o que se vê é inevitavelmente “contaminado” pela nossa cultura, nossos desejos e afetos.

Agnès, ao filmar o marido em seus últimos dias de vida, consegue expressar através de seu filme como o amor interfere na maneira de olhar para o outro.

Na primeira cena em que aparece a pele humana o espectador tem a impressão de que se trata de uma paisagem árida. Os pêlos negros e encaracolados remetem à impressão, na telona, de que se trata de galhos muitos finos, retorcidos pela seca, uma vegetação agreste.

A câmera fica tão próxima, o “olhar” do espectador se aproxima tanto (ainda mais se tratando de uma tela cinematográfica, a imagem é imensa), que fica difícil distinguir qual é o objeto de análise. Como durante todo o filme há cenas de paisagens, desertos, árvores retorcidas etc., o espectador facilmente se deixa envolver e analisa que tal imagem faz parte dessas outras cenas agrestes, compondo um cenário.

O fotógrafo cego Evgen Bavcar parafraseia o texto de São João ao dizer que no princípio era o Verbo, o qual se torna imagem, a carne do visível, o visível em carne e osso, o substrato cognitivo do olhar.

“O artista (no caso, os diretores) é sobretudo o mediador entre as trevas do verbo, do fundo de sua cegueira, e a evidência concreta da imagem, tal como realizada na arte através de um ou de outro suporte material”.

Uma comprovação da prática dessa dimensão volitiva do olhar é quando Agnès relata como filmou o marido, o também cineasta Jacques Demy, pouco antes de ele morrer de câncer. Por duas vezes, as imagens que aparecem na tela – parte do rosto, os braços e as mãos de Demy – são filmadas de tão perto, que confundem o olhar do espectador. A pele se transforma em paisagens, os pêlos parecem uma relva agreste, e as rugas viram sulcos na terra árida.

As manchas senis dão a impressão, num primeiro momento, de que pode ser a tela de um quadro impressionista, pintado em tons pastel, as nuances de marrons provocam esta impressão ao espectador.

O impressionismo foi um movimento artístico que começou no século XIX, na França. Um grupo fazia encontros semanais, entre 1868 e 1870, no Café Guerbois. Monet, Sisley, Renoir, Bazille e outros pintores, cansados de terem seus trabalhos recusados pelo Salão Oficial, criaram uma cooperativa de artistas e promoveram em 1874 uma exposição no ateliê do fotógrafo Nadar. Essa exposição marcou oficialmente o início do movimento. Um crítico escreveu sobre a exposição:

“Selvagens obstinados, por preguiça ou incapacidade, não querem terminar seus quadros. Contentam-se com uns borrões, que representam suas impressões. Farsantes! Impressionistas!”

O termo passou a ser sinônimo de artista medíocre. Em 1876 o grupo adota oficialmente o nome Impressionistas e em 1879 passam a se chamar Artistas Independentes. Até 1886 o grupo realizou oito exposições. Nos quadros impressionistas, a intenção é captar o instante assim como o artista o sente. As sombras estão impregnadas de reflexos coloridos.

Há uma valorização da cor e da luz. Com o impressionismo inicia-se a luta contra a figura, liberando a cor e a pincelada e tudo o mais que, com a rápida sucessão, leva a pintura à abstração. Há a valorização de se pintar ao ar livre. A tela de Monet Impression, Soleil Levant, de 1874, que o jornalista desdenhou, e que acabou dando o nome ao movimento.

Ainda presos à natureza e aos sentimentos por ela despertados, os impressionistas procuraram captar em suas telas o fugidio, o efêmero e o fugaz da vida ao ar livre. Expressam o movimento das águas, os reflexos da luz, a dissolução das imagens, a fumaça de um trem que chega à estação, o nevoeiro sobre o rio, a indefinição no contorno das figuras que se movimentam no palco, no baile, na relva ou no hipódromo. Trata-se de pintar o que não se repete, o instante.

Contra a retórica social dos realistas, contra a hierarquia temática, os impressionistas buscaram o plein-air, substituíram o assunto pelo motivo.

Artistas mais destacados: Boudin, Manet, Degas, Bazille, Renoir, Monet, Pissarro, Sisley, Marie Laurencin e Berthe Morizot. No Brasil: Navarro da Costa, Georgina Albuquerque, Marques Jr., Henrique Cavalleiro, Guttmann Bicho, Garcia Bento e Rafael Frederico.

2.1 A imagem e o olhar

Ao filmar de tão perto, a diretora confessa que o objetivo primordial foi apoderar-se da imagem do esposo, como se não quisesse deixar a morte levá-lo. E ela o consegue porque há ume espécie de integração entre observado e o observador.

Para Bavcar, a imagem não é apenas alguma coisa da ordem do visual, mas pressupõe, igualmente, a imagem da obscuridade ou das trevas.

“A obscuridade permanece um estado latente, a saber, a luz em potência de devir e de ser”.

Ele mesmo, no documentário, diz que fotografou a sobrinha dançando num campo. Esta foi a imagem que saiu após ser revelada. Porém o fotógrafo cego confessa que na verdade não quis tirar foto da menina, e sim do pequenino sino que estava em seu pescoço. Ele fotografou o som.

Na verdade todos os entrevistados contribuem com depoimentos para o enriquecimento da obra.

O cineasta Wim Wenders declara no filme que a maioria das pessoas consegue ver também com os ouvidos, e ouvir e ver com outros órgãos do corpo humano. Tal ação não se restringe apenas aos olhos, mas também podem ser utilizados o cérebro, o estômago e a alma, e os diretores utilizam com sabedoria este gancho para a realização da obra.

Ele fala também que sente falta da “moldura” que os óculos proporcionam. É interessante que um míope-cineasta tenha essa expectativa, já que o enquadramento sempre remete a um olhar, sendo três os principais olhares do cinema: o olhar da câmera (diretor), o olhar da personagem dentro da narrativa e o olhar do espectador.

Os autores intercalam imagens inusitadas, de árvores queimando ou de vazio do deserto, fazendo a ligação entre os depoimentos, que alternam densidade, humor e poesia. Ao longo do documentário são elaboradas imagens desfocadas, à semelhança de olhos míopes que buscam captar a sua própria realidade.

É o caminho trilhado no plano da expressão para a “desnaturalização” da imagem. Esse procedimento parte do desmonte do discurso que sustenta o “real”, caminhando para a pura abstração na sequência das luzes noturnas das grandes cidades desfocadas e poéticas, num esforço de singularização.

Os diretores utilizam imagens coloridas com sequências em preto e branco – como a do fotógrafo cego Evgen Bavcar tirando fotos (em preto e branco) de uma modelo nas ruas de Paris. É o cinema se disfarçando em olhar do outro, mesmo que este seja um deficiente visual. Se entendermos que a imagem é um objeto – logo pode ser emoldurada –, esta moldura designa uma outra dimensão, a da representação.

É fácil assimilar que os autores, ao escolherem este tema para ser abordado no documentário, provavelmente utilizaram a metáfora do quadro que diz que a janela cinematográfica tem relação com o ilusionismo e a identificação.

Em entrevista concedida para Isto É Gente, Walter Carvalho diz que “a bela foto vem da observação da realidade. Ela pode estar desfocada – até deveria estar desfocada, porque a realidade em foco é muito cruel”.

Sidênia Freire, mestranda em Ciência da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP, elaborou uma crítica interessante sobre a obra de João Jardim e Walter Carvalho. Para ela, os autores selecionaram os depoimentos de forma a refletir sobre uso das imagens como mediações entre o subjetivo e o “real”. O olhar humano é metáfora da intervenção, podendo-se escolher a forma de olhar para o real ou, quando não se tem essa escolha, a própria limitação irá criar outras estratégias de construção do real.

3 CONCLUSÃO

Ao escolher este tema, os autores/diretores demonstraram sensibilidade para a realidade não só brasileira, mas universal. Em qualquer parte do mundo vamos encontrar pessoas com problemas visuais, desde uma leve miopia até a cegueira. O objetivo da obra é passar ao espectador a sensação de como este ser humano sente ao ver (ou não ver) o que está em seu redor.

À primeira vista a obra poderia ser considerada como “simplória”. Um grupo de pessoas anônimas junto com intelectuais, artistas, médicos etc. falando de seu problema de ver o mundo ou, em alguns casos, não vê-lo.

Durante todo o tempo, os autores/diretores brincam com a obscuridade das trevas ou então com o desfoque das imagens. E isso é instigador. A aproximação do foco, a imensidão da tela cinematográfica, tudo isso contribui para que cada cena tenha um impacto sobre aquele que à assiste.

Além disso, a aproximação da câmera, as luzes das cidades desfocadas, os depoimentos que tratam sobre como enxergar o mundo, como a armadura dos óculos pode inibir ou servir de proteção contra a realidade levam o espectador para uma realidade virtual. Situações que ele, como cidadão que enxerga o mundo de maneira “normal” (se bem que, como diria Caetano Veloso, de perto ninguém é normal), passa a enxergar o “outro” – e seu jeito de ver – de maneira diferente.

Há cenas que fazem o espectador pensar e que não são resolvidas, como a em que aparece o fotógrafo cego (durante toda a fita é dito que ele não enxerga absolutamente nada) de óculos de grau comuns, não aqueles feitos para pessoas com subvisão.

Tudo isso se traduz num filme com pouco mais de 70 minutos de duração. O documentário consegue sair da mesmice e ir além, muito além. O resultado é um filme que enriquece a visão de quem enxerga e nos faz pensar a visão que se tem da visão. A luminosidade do foco na tela, mesmo este sendo desfocado, é contagiante.

BIBLIOGRAFIA

BAVCAR, Evgen. In Artepensamento. Org. Adauto Novaes, Cia. das Letras, 1994.

CONTI, Mário Sergio. Folha de S.Paulo. 28 jun. 2002.

COUTO, José Geraldo. Folha de S.Paulo. 24 out. 2001.

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ISTO É GENTE. 15 jul. 2002.

O QUE É O IMPRESSIONISMO: www.geocities.com/Paris.

XAVIER, Ismael. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2.ed.. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.

* Este trabalho foi feito para o curso de Jornalismo Cultural/Estácio de Sá em 2003.

Carla Giffoni
Enviado por Carla Giffoni em 31/07/2014
Código do texto: T4904142
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