Letramento e Escrita
Em nosso cotidiano, é possível constatar que a escrita e as atividades de ler e escrever entram em nossa vida, sem que nos demos conta disso. Essa presença da escrita afeta a forma como os indivíduos e os grupos se constituem e se relacionam.
Dependendo da época, do quadro teórico assumido e dos objetivos traçados, o termo ou conceito de letramento ganha conotações diferentes e às vezes antagônicas. O letramento pode ser sistematizado de duas maneiras: autônomo e ideológico.
No modelo autônomo, a principal característica do letramento é a de focalizar a dimensão técnica e individual. A escrita, seria um produto completo em si mesmo cuja interpretação não estaria submetida a injunções de suas condições de produção. Uma das consequências desse modelo seria que a interpretação de um texto escrito seria determinada unicamente pelo funcionamento interno e lógico do mesmo.
Nessa concepção existe uma correlação direta entre desenvolvimento cognitivo e letramento. Assim, este é considerado como a causa do desenvolvimento de habilidades cognitivas do indivíduo e de grupos que passam a incorporar um sistema de escrita em suas atividades.
Para definir indivíduos e grupos letrados de não-letrados, o modelo autônomo utiliza a alfabetização como critério. Desta maneira, é possível afirmar que, existe um vínculo estreito entre alfabetização e letramento, pois a condição de letrado está diretamente relacionada à condição de alfabetizado.
Enfim, ser letrado seria possuir o estado ou a condição daquele que não apenas sabe ler e escrever, ou não apenas conhece a tecnologia da escrita, mas também utiliza competentemente essa tecnologia em suas atividades sociais.
No modelo ideológico, focaliza-se a dimensão social da escrita e, consequentemente, das atividades de ler e escrever. É defendido que os significados e os usos do letramento estariam fortemente ligados a contextos culturais específicos e que as práticas de letramento estão sempre e necessariamente vinculadas às relações de poder e às ideologias que permeiam a vida em sociedade.
Nesta concepção a escrita é vista como um processo. A escrita e os materiais escritos são vistos a partir de seu processo de produção, levando em consideração fatos tais como quem escreve, para quem escreve, com quais finalidades, em que condições, a partir de quais gêneros discursivos etc.
Uma consequência dessa forma de entender a escrita é a consideração de que a interpretação de um texto escrito seria dependente das condições sócio-históricas em que ele é produzido. Outra consequência importante é a crítica à oposição radical entre fala e escrita. No modelo ideológico, considera-se que só é possível estabelecer essa oposição se considerarmos textos que poderíamos denominar prototípicos de cada uma das chamadas modalidades da língua.
As características opositivas que separam a fala e a escrita em dois blocos foram estabelecidas tendo por parâmetro um ideal de texto escrito e um ideal de texto falado. Neste sentido, essas dicotomias seriam “apressadas e generalizadoras”; elas ignorariam a variedade de gêneros discursivos existentes e o uso que se faz deles.
Na visão dicotômica que emerge do modelo autônomo de letramento, as análises das relações entre fala e escrita estão voltadas apenas para o “código” e “permanecem na imanência do fato linguístico”.
Assim, o letramento pode ser entendido como relacionado à inserção dos indivíduos e dos grupos em práticas sócio-históricas que, direta ou indiretamente, pressupõem a existência de uma escrita. A alfabetização é um conceito bem mais antigo que o letramento, como um processo de ensino da leitura e da escrita para as etapas iniciais de escolarização das crianças.
A leitura, antes restrita a grupos minoritários e não necessariamente responsabilidades da escola, tornaram-se fundamentos da escola obrigatória, leiga e gratuita e objeto de ensino e aprendizagem escolarizados.
Assim, passa-se a considerar que a criança não é apenas uma espectadora do processo de alfabetização, aquela que receberia as indicações sobre como proceder para realizar as atividades de leitura e escrita. Ela também tem um papel a desempenhar, ou ainda uma oposição a ocupar na tarefa de inserir-se no funcionamento simbólico da escrita.