Canaã do Oeste: Uma leitura de Mato Grosso do Sul

(AS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SERÃO POSTADAS POSTERIORMENTE)

Este livro me apareceu por obra do acaso. Eu, ávido procurador de textos (literários ou não) que glosem sobre as coisas de Mato Grosso do Sul, há muito procurava ao menos uma obra que mostrasse de forma clara e bem fundamentada um histórico sobre o povoamento destas terras desde o período da chegada dos europeus. E achei. Este livro estava literalmente jogado em um dos cantos da biblioteca da escola onde lecionava em 2013: embora empoeirado e datando do ano de 1989 se apresenta bem conservado, dada a qualidade do material no qual foi impresso (o que deve ter saído caro aos cofres públicos).

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“Será que nunca faremos senão confirmar

A incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos?

Será, será que será, que será que será?

Será que esta minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?”

(Podres Poderes – Caetano Veloso)

1. Introdução:

Ler “Canaã do Oeste”, de Melo e Silva (ex-juiz de direito da comarca de Bela Vista no ano de 1946, ainda no extinto Território de Ponta Porã) traz ao leitor que sabe avaliar criticamente o que lê, um conhecimento histórico bastante vasto, principalmente no que tange, como eu procurava, ao povoamento das terras do “sul de mato grosso”, no entanto, se mostra um texto carregado de preconceitos e considerações perigosas.

O verdadeiro motivo que me levou a escrever estas linhas a cerca deste livro é que o mesmo se encontra em uma chamada “Série Historiográfica”, impressa pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, e após ter percebido considerações que deveriam ser revistos no corpo deste, é quase inaceitável que um órgão público, que se propõe a lançar uma “Série Historiográfica”, imprima um texto tão carregado de preconceito e preponderância.

Gostaria de ressaltar, também, que reconheço que a escritura da história de nosso estado há pouco tempo começa a tomar corpo, e que, qualquer um que procure as raízes de certa região, de seu povo e seus costumes, esbarre em textos que tenham quase o mesmo tom de Canaã do Oeste, consideradas as “limitações” socioeducativas impostas ao processo “civilizatório”, principalmente no que se refere à América do Sul (como “El gaucho Martín Fierro”, “O cortiço”, “O bom crioulo”, entre outros…).

No entanto, dado o momento histórico que atravessamos de 40 anos para cá, com todas as lutas sociais e uma revisitação e transformação de certos valores, acredito que este tipo de obra, que guarda seu valor enquanto documento histórico e tem méritos por alguns momentos com “graus” de literariedade, deva ser vista com olhos críticos, e que aqueles que se ocupam de fazer prefácios ou lancem notas sobre o texto não se preocupem tanto em elogiar autores (até porque trata-se da obra, não de quem a escreveu) e o texto por meras convenções sociais e tenham maior responsabilidade antes de imprimir seus nomes em textos tão arriscados de “tomar para si”.

2. Recepção crítica:

Por alegria, Yara Penteado, do Instituto Histórico e Geográfico de MS, soube falar destas contradições existentes no texto de José de Melo e Silva em seu prefácio da edição à qual me refiro no início deste texto. Penteado é precisa quando usa sua capacidade crítica para afirmar que:

A vocação do historiador transparece a cada página. No entanto, o cronista muitas vezes fala mais alto, deixando transparecer nos relatos as impressões pessoais, como se fossem de um viajante observador e atento a tudo que vê, ouve e sente.

Esse impressionismo permeia toda a obra, intercalando fatos estudados, com comentários pessoais, estes e aqueles, à luz de influências positivas, que marcaram a historiografia do período.

Ainda foi o positivismo que o impeliu a um nacionalismo por vezes exacerbado, bem aos moldes das décadas de 20 a 40, cujas preocupações integracionistas o fizeram escorregar para uma visão, se não preconceituisa de todo, pelo menos etnocêntrica, mormente quando se refere às populações indígenas.

(…)

De igual etnocentrismo são as observações sobre as primeiras levas de gaúchos, cujos costumes condena, por revelarem as rudezas das lides do campo, no tropel das carreiras de cavalos e na bizarria das vestes. Culminando, a partilha do chimarrão, beberagem coletiva e amarga, denunciadora de hábitos muito mais pertinentes aos gentios.

(Canaã do Oeste, pg. 7)

Verifica-se, então, que já em 1989, era claro o etnocentrismo latente nas palavras deste nordestino, o qual, com boa vontade e as melhores intenções, fez o que podia, considerando as “limitações teórico-científicas” de seu tempo e formação, para registrar seu conhecimento e sua preocupação com relação à história regional.

Se o texto detalha com precisão momentos cruciais da colonização de MS, ele também revela trechos que beiram a comicidade, de tão preconceituosos que são (melhor rir do que chorar). Não se sabe qual é a verdadeira intenção do autor quando dirige críticas tão rasteiras a certos grupos étnicos, tão somente desconfio da forte influência tradicionalista e de bases arcaicas do pensamento que formaram Melo e Silva, mas citarei alguns trechos como forma de validar meus argumentos, que já encontram respaldo no prefácio de Penteado.

Logo no início do texto já fica claro a influência de ideais de “predestinação”, o que o próprio título da obra já denota, no termo Canaã (termo bíblico que indica a “Terra Prometida”). É sabido de todos que os “predestinados” são deterministas e que ignoram uma série de fatores: biológicos, climáticos e étnicos em “nome de Deus” ou de cumprir sua “sina”, por acreditar demasiado que são mesmo “escolhidos” para algo. Caso isso fosse verdade, então seriam “escolhidos” todos os homens das tribos primitivas que vagavam pelo planeta sempre em busca de um lugar melhor, e vale lembrar que, naqueles tempos o termo Canaã não era nem imaginado, quiçá o ideal de ser “predestinado”, o que revela que talvez as migrações possam ser obra divina, mas, o que pode-se afirmar com convicção, nascem de uma necessidade humana. O trecho é o seguinte:

“A silhueta de Três Lagoas, atalaia do Sul, dístico gravado nos portões do oeste, como testemunho de uma raça de predestinados, está ali, único sinal de vida daquela terra.”

(Canaã do Oeste, pg. 16)

Ou ainda:

(…) Destarte,, bastaria o conjunto de elementos que enfeitam os seus contornos para que tivesse o Sul de Mato Grosso o seu destino traçado, como território de primeira ordem na união nacional.”

(Canaã do Oeste, pg. 18)

3. Crônicas de informação:

Melo e Silva, que também escreveu “Fronteiras Guaranis”, faz uma descrição detalhada e minuciosa dos variados biomas que se encontram em nosso estado, e, apesar de quase a todo momento reclamar da “calmaria sufocante , calor intenso, destruidor de energias”, referindo-se ao clima da região, demonstra grande conhecimento sobre todo o território que hoje conhece-se por Mato Grosso do Sul.

Depois disso, Melo e Silva passa a descrever o povo que se encontra na região desde os primórdios da exploração, e é neste momento que os maiores absurdos são encontrados, absurdos estes que até hoje ressoam por todo o estado, nas bocas daqueles que portam alguma carga de preconceito, fato que indigna e que precisa ser combatido a partir do ensino nas escolas. Melo e Silva, ao tratar da relação dos jesuítas espanhóis para com os índios supervaloriza a cultura europeia frente à do “não-civilizado”, como ele mesmo chama os indígenas:

“Certamente não se acomodaria com essa concessão, sem algumas restrições, pelo menos no que toca à educação do selvícola. Porque, embora reconhecendo o heroísmo do padre e a sua firmeza ortodoxa, ele entende que o jesuíta exerceu uma influência deletéria na vida e na cultura do selvagem, degradando a raça com o sistema de educação e civilização que adotou.

Importa isso na afirmativa de que o padre deformou o índio, pelo simples fato de ter destruído as más tendências, próprias do seu feitio.

Entretanto, nenhuma deformação se operou. O jesuíta procurou destruir no índio o que se opunha aos princípios da melhor civilização da época.”

(Canaã do Oeste, pg. 42)

Desta maneira, o cronista-jornalista-escritor, denota sua intolerância frente aos costumes alheios, neste caso, dos índigenas, e valoriza a desconstrução da cultura autóctone em nome da “civilidade e da ordem”. Na realidade, “para começo de conversa”, este conflito se inicia pela linguagem e se estende aos costumes, e, toda vez que não há um entendimento discursivo, o resultado é um conflito. Os bandeirantes também são citados na obra, nela, Melo e Silva os culpa de terem destruído tudo, não terem poupado nada da cultura jesuíta nem indígena. Esta destruição total, a meu ver, é culpada pelo primeiro ciclo, por assim dizer, de esvaziamento populacional que assolou o sul de Mato Grosso. Depois dos conflitos entre as duas coroas em disputa pela região, nos quais os indígenas eram recrutados à força, postos uns contra os outros, que também dizimaram muitos índios e soldados dos dois lados, o segundo ciclo seria, então, a Guerra do Paraguai.

Melo e Silva, antes de partir para uma análise problemática da Guerra do Paraguai, considera:

“A fronteira sul matogrossense ia entrar num período de paz ilusória. A repulsa do invasor, em 1801 e 1802, a chegada da Família Real ao Brasil, e o enfraquecimento de Castela, com a luta das Colônias, pela emancipação, arrefeceram por algum tempo o ânimo dos nossos inimigos. Era, entretanto, apenas uma trégua, durante a qual se operaria uma certa evolução, embora morosa, no sentido da formação do meio, desprotegido e isolado.”

(Canaã do Oeste, pg. 47)

Quando o autor glosa, então, sobre o povoamento da região a partir de 1802, traz à tona a figura do “pastor nômade”, que seria o predestinado a quem se refere no início do texto, figura rude, brava e corajosa, que se aventurava por terras desconhecidas até então e tentava fixar-se em nossas terras ainda “sem dono”. Melo e Silva afirma: “Não foram os bandeirantes que iniciaram o povoamento do Sul de Mato Grosso. (…) O povoamento do sul matogrossense, pelo pastor nômade, é um dos reflexos do bandeirismo que tomou a direção nordeste, e que foi ali a alma da indústria…”.

Desta maneira, os nordestinos, segundo o autor, foram os primeiros habitantes fixos da região, ignorando a tradição indígena na região. “Descendo” eles da Bahia para Minas Gerais, Goiás e São Paulo, foram achar seu “catre” em nossas terras:

“Desse caldeamento de baianos, pernambucanos, cearenses, mineiros e paulistas, de troncos nórdicos ou açorianos, sairiam os nossos pastores e vaqueiros do Oeste. (…) Raramente eram os donos do solo, condição indispensável para a fixação, e daí uma das razões do seu nomadismo. Olham para a frente e a expansão continua.”

(Canaã do Oeste, pg. 55)

E aqui percebe-se o tom idealista, republicano e determinista da visão de Melo e Silva:

“E é assim, sob o impulso de um êxodo quase inconsciente, através de terras mineiras, paulistas e goianas, que, no fim da terceira década do século dezenove, penetram no sul de Mato Grosso os nosssos primeiros pastores.

Tangidos pelos desígnios do seu destino, pelas razões supremas de movimentos que mal percebem, ali entram, uns pela porta angulosa que vincula o Estado de Mato Grosso ao de Minas Gerais, outros pelas vastas planícies dos sertões goianos, atravessando os campos do Taquari.

(Canaã do Oeste, pg. 56)

3. Incipientes currais eleitorais:

É certo que alguns povoados e incipientes cidades já se formavam nas terras do Sul de Mato Grosso, algumas famílias são citadas por Melo e Silva como “pioneiras” em determinadas regiões do estado como a região do Rio Pardo, as margens do Paraná, os Campos da Vacaria, a região de Paranaíba, entre outros. É citado, também, um abandono destes terras por parte do governo brasileiro, o que teria aberto as nossas fronteiras para a ajuda paraguaia, o que de fato ocorreu, mas não, a meu ver, por falta de “cuidado” do governo brasileiro, mas sim por uma natural confluência de culturas e proximidade de fronteiras entre os povos paraguaios e brasileiros, que já compartilhavam costumes.

Explica-se, então, a reeleição quase vitalícia de certos nomes da política em cada cidade e no próprio governo do estado, uma vez que as famílias “pioneiras” tomavam conta dos poderes políticos, desenhando-se, como em outros estados do Brasil e cidades sul-americanas, uma espécie de hegemonia de sobrenomes. Hoje, certa maneira, vive-se um momento de renovação, mas as profundas marcas dessa hegemonia continuam presentes no cenário político sul-matogrossense, tão corrompido pelas alianças.

4. A predestinação e Mato Grosso do Sul como Terra Prometida:

Ao estudarmos a história do povoamento das terras americanas, por exemplo, vamos nos deparar com ideários muito próximos aos que formaram nosso estado e que estão escrachados no texto de Melo e Silva. Vivemos em um estado com forte produção agrícola, indústria incipiente mas a distribuição de renda segue a lógica capitalista, é claro, sendo assim, portanto, a desigualdade sempre foi e continua sendo, muito grande. Com os EUA não foi diferente, as férteis terras alcançadas pelos “puritanos” deram resultado ao suor derramado sobre ela, no entanto, a formação intelectual destes, que se viam, e eram mesmo, os únicos com algum “conhecimento” na “Nova Inglaterra”, imprimiu a eles que, para que fossem salvos pela cruz, deveriam desenvolver a “Canaã” aonde se encontravam:

Há muito tempo os acadêmicos enfatizam essa ligação entre o puritanismo e o capitalismo: ambos têm como base a ambição, o trabalho árduo e a luta intensa pelo sucesso. Embora individualmente os puritanos não pudessem saber, em termos estritamente teológicos, se estavam “salvos” e entre os eleitos que iriam para o céu, eles viam em geral o sucesso terreno como um sinal de terem sido os escolhidos. Buscavam riqueza e status não só para eles próprios, mas como uma sempre bem-vinda garantia de saúde espiritual e promessas de vida eterna.

(VANSPANCKEREN, pg. 7)

Não defende-se aqui que Melo e Silva fosse puritano, mas precisamos assumir que sua posição para o tempo poderia ser, mas não é nada transgressora. Calcado em valores tradicionais, xenofóbicos e integracionistas (ele defendia, por exemplo, o Território de Ponta Porã e a manutenção da ditadura militar) de extrema direita, ele acaba por desprezar grupos étnicos não “merecedores” do ciclo civilizatório nestas terras de “vento vadio e haragano”, como poeticamente define Hélio Serejo.

5. Contrapontos liteŕarios e sociológicos:

A mentalidade transgressora e reconstruidora de tradições das novas gerações faz com que a academia e os literatos, como num ciclo orgânico, passem a preferir textos de autores com muito menores cargas de preconceito, como Hélio Serejo ou até mesmo o poeta contemporâneo Douglas Diegues. Acreditamos ter pontuado de forma loquaz a relevância de Canaã do Oeste, porém, nunca a qualidade literária e registramos o peso de certas colocações do autor para a formação do “pensamento” sistemático, desespiritualizado e rude de certos rincões do nosso Estado.

Ainda morrem índios por conflitos de terra, ainda morrem jovens iludidos pela velocidade de grandes camionetas, o álcool em excesso e o “celebritismo”, ainda morrem crianças sem atendimento médico, morrem idosos sem medicamentos, morrem pacientes mesmo dentro de hospitais no quais deveriam ser tratados. A mão pesada da exploração capitalista continuará contribuindo para este genocídio velado em nossas terras.

Em terras sul-matogrossenses, existe ainda, por parte daqueles que escrevem e vasculham e escancaram a face da cultura local, uma demanda que precisa ser explorada, afim de que possamos esclarecer o público leitor e tentar, certa forma, dar consciência crítica real, verdadeira, de classe e de valores éticos aos que precisam urgentemente participar de uma renovação para nosso Estado.

Sopro Mato
Enviado por Sopro Mato em 26/02/2014
Código do texto: T4706924
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