Com os prosadores que se aventurm no conto, compartilho este texto.
O QUE É O CONTO
José Oiticica
Eis como Araripe júnior caracteriza o conto:
“O conto é sintético e monocrático; o romance, analítico e sincrônico. O conto desenvolve-se no espírito como um fato pretérito, consumado; o romance, como a atualidade dramática e representativa. No primeiro, os fatos filiam-se e percorrem uma direção linear; no segundo, apresentam-se no tempo e no espaço, reagem uns sobre os outros, constituindo trama mais ou menos complicada. A forma do conto é a narrativa; a do romance, a figurativa. Desta maneira, quem examina atentamente os livros de contos que circulam pelas livrarias verá que, na maior parte, eles não passam de começos de romances abortados, de aspectos físicos ou morais deslocados, de livros por fazer, marinhas ou paisagens, perfis, páginas dispersas, que estão muito longe de realizar o tipo completo dessa espécie de literatura. Nesse caso, acham-se quase todos os contos que foram dados à estampa durante o ano transato, no Brasil.”
Na exposição de Araripe Júnior, os caracteres específicos, digamos assim, foram firmados, porém cumpre, a bem da clareza, discriminá-los e, sobretudo, completá-los. O primeiro característico atribuído ao conto é a síntese. Isto o distingue realmente da novela e do romance. A análise prepondera nos dois últimos, análise de ambientes, análise de tipos, análise de situações. No conto, o ambiente único, ou quase único, visa à exposição de uma situação única. Num dos contos mais perfeitos de Machado de Assis, Um Homem Célebre, em Várias Histórias, tipo único é Pestana, o polquista. Os demais são comprimários da comediazinha supertrágica. A situação única resume-se nessa ânsia, em alma impotente, de criar, ímpeto de bater asas em quem possui apenas cotos. Pestana quer ser um gênio em música, mas não sabe além da polca.
Na tríplice síntese opera-se a unidade fundamental desse conto. Por isso, insiste Araripe Júnior no seu caráter monocrônico, oposto ao caráter sincrônico do romance. O conto exige um só ambiente; o romance, múltiplos. Nesses vários ambientes surgem vários tipos, várias histórias, vários enredos, vários desfechos. No romance opera-se a unidade pelo entrelace dos dramas, pelo sincronismo de sua marcha, pelos entrechoques de personagens, tipos e fatos, pelo tom geral da época, do meio, dos relatos, até de estilo.
Araripe assinala, com rara felicidade, na sequência do conto, sua feição linear. O desenvolvimento sincrônico do romance faz-se com desvios, paradas, reinícios, parênteses, assomos de personagens, sumiço de outros. Isso por ser o romance um travamento de dramas, cada qual com seu epicentro. O romance representa a vida complexa e enleada, normal por vezes, flagrantemente anormal outras. O conto não representa a vida, sendo um episódio, melhor, acidente da vida, acidente cômico ou trágico, monstruoso ou ingênuo ou místico e, excepcionalmente, sublime; mas, acidente.
Este aspecto fundamental escapou a Araripe Júnior. O acidente Pestana, em Um Homem Célebre, está isolado de todos os mais acidentes da vida. Só ele avalia na preparação anatômica do escalpelista*. O essencial é que o acidente interesse, seja engraçado, pelo trágico e determinado sucesso. A não ser assim, teríamos uma cena qualquer, mas nõ teríamos um acidente. Distingamos, literariamente, o acidente do incidente. O incidente cabe nas notas de polícia ou de reportagens alvoroçantes. Nos mixuangos, último livro do nosso maior regionalista, Valdomiro Silveira, o primeiro desses chamados contos não chega a ser conto. É mera cena. Marica e Josefino estão-se declarando, mas Josefino alude a um tal Antonio da Ponte, que arrasta a asa a Marica. Marica protesta, mas, de repente, entrevê, nas fendas dos pranchões da tulha, os ossos de Antonico a espreitar os namorados. Josefino, furioso, corre para Antonico e este foge. Falta, para ser conto, o relevo característico do acidente. Ou se releva um tipo, ou uma situação, ou um conceito moral, ou uma ação sobrenatural. Em Um Homem Célebre, salienta-se a incapacidade do medíocre, anelando por grimpar a gênio, essa impossibilidade congênita resumida por um sambista nos conhecidos versos:
Quem se quer fazer não pode,
Quem é bom já nasce feito.
Reparem nos contos da segunda fase machadiana. Todos eles têm esse relevo orgânico. Tanto mais valioso o conto, quanto mais frisante, original, exato, esse relevo. O conto perfeito valoriza esse relato com beleza gramatical, isto é, a correção; com a beleza estética, diga-se, o estilo; com a beleza filosófica ou o pensamento simbolizado no desfecho; com a beleza técnica, ou seja, a segurança no traçar e encadear as cenas, no mover e aviventar as personagens, no desenvolver os episódios, na gradação do desenlace até o clímax.
Resumindo, assinalo as seguintes características do conto:
(a) ser sintético;
(b) ser monocrônico ou linear,
(c) dar relevo a um acidente interessante da vida.
In Teoria Literária, HÊNIO ÚLTIMO DA CUNHA TAVARES
Pág. 158-159
O QUE É O CONTO
José Oiticica
Eis como Araripe júnior caracteriza o conto:
“O conto é sintético e monocrático; o romance, analítico e sincrônico. O conto desenvolve-se no espírito como um fato pretérito, consumado; o romance, como a atualidade dramática e representativa. No primeiro, os fatos filiam-se e percorrem uma direção linear; no segundo, apresentam-se no tempo e no espaço, reagem uns sobre os outros, constituindo trama mais ou menos complicada. A forma do conto é a narrativa; a do romance, a figurativa. Desta maneira, quem examina atentamente os livros de contos que circulam pelas livrarias verá que, na maior parte, eles não passam de começos de romances abortados, de aspectos físicos ou morais deslocados, de livros por fazer, marinhas ou paisagens, perfis, páginas dispersas, que estão muito longe de realizar o tipo completo dessa espécie de literatura. Nesse caso, acham-se quase todos os contos que foram dados à estampa durante o ano transato, no Brasil.”
Na exposição de Araripe Júnior, os caracteres específicos, digamos assim, foram firmados, porém cumpre, a bem da clareza, discriminá-los e, sobretudo, completá-los. O primeiro característico atribuído ao conto é a síntese. Isto o distingue realmente da novela e do romance. A análise prepondera nos dois últimos, análise de ambientes, análise de tipos, análise de situações. No conto, o ambiente único, ou quase único, visa à exposição de uma situação única. Num dos contos mais perfeitos de Machado de Assis, Um Homem Célebre, em Várias Histórias, tipo único é Pestana, o polquista. Os demais são comprimários da comediazinha supertrágica. A situação única resume-se nessa ânsia, em alma impotente, de criar, ímpeto de bater asas em quem possui apenas cotos. Pestana quer ser um gênio em música, mas não sabe além da polca.
Na tríplice síntese opera-se a unidade fundamental desse conto. Por isso, insiste Araripe Júnior no seu caráter monocrônico, oposto ao caráter sincrônico do romance. O conto exige um só ambiente; o romance, múltiplos. Nesses vários ambientes surgem vários tipos, várias histórias, vários enredos, vários desfechos. No romance opera-se a unidade pelo entrelace dos dramas, pelo sincronismo de sua marcha, pelos entrechoques de personagens, tipos e fatos, pelo tom geral da época, do meio, dos relatos, até de estilo.
Araripe assinala, com rara felicidade, na sequência do conto, sua feição linear. O desenvolvimento sincrônico do romance faz-se com desvios, paradas, reinícios, parênteses, assomos de personagens, sumiço de outros. Isso por ser o romance um travamento de dramas, cada qual com seu epicentro. O romance representa a vida complexa e enleada, normal por vezes, flagrantemente anormal outras. O conto não representa a vida, sendo um episódio, melhor, acidente da vida, acidente cômico ou trágico, monstruoso ou ingênuo ou místico e, excepcionalmente, sublime; mas, acidente.
Este aspecto fundamental escapou a Araripe Júnior. O acidente Pestana, em Um Homem Célebre, está isolado de todos os mais acidentes da vida. Só ele avalia na preparação anatômica do escalpelista*. O essencial é que o acidente interesse, seja engraçado, pelo trágico e determinado sucesso. A não ser assim, teríamos uma cena qualquer, mas nõ teríamos um acidente. Distingamos, literariamente, o acidente do incidente. O incidente cabe nas notas de polícia ou de reportagens alvoroçantes. Nos mixuangos, último livro do nosso maior regionalista, Valdomiro Silveira, o primeiro desses chamados contos não chega a ser conto. É mera cena. Marica e Josefino estão-se declarando, mas Josefino alude a um tal Antonio da Ponte, que arrasta a asa a Marica. Marica protesta, mas, de repente, entrevê, nas fendas dos pranchões da tulha, os ossos de Antonico a espreitar os namorados. Josefino, furioso, corre para Antonico e este foge. Falta, para ser conto, o relevo característico do acidente. Ou se releva um tipo, ou uma situação, ou um conceito moral, ou uma ação sobrenatural. Em Um Homem Célebre, salienta-se a incapacidade do medíocre, anelando por grimpar a gênio, essa impossibilidade congênita resumida por um sambista nos conhecidos versos:
Quem se quer fazer não pode,
Quem é bom já nasce feito.
Reparem nos contos da segunda fase machadiana. Todos eles têm esse relevo orgânico. Tanto mais valioso o conto, quanto mais frisante, original, exato, esse relevo. O conto perfeito valoriza esse relato com beleza gramatical, isto é, a correção; com a beleza estética, diga-se, o estilo; com a beleza filosófica ou o pensamento simbolizado no desfecho; com a beleza técnica, ou seja, a segurança no traçar e encadear as cenas, no mover e aviventar as personagens, no desenvolver os episódios, na gradação do desenlace até o clímax.
Resumindo, assinalo as seguintes características do conto:
(a) ser sintético;
(b) ser monocrônico ou linear,
(c) dar relevo a um acidente interessante da vida.
In Teoria Literária, HÊNIO ÚLTIMO DA CUNHA TAVARES
Pág. 158-159
* Escalpelista >
Expressão não dicionarizada que a mantenho, fiel ao autor. Deriva-se do verbo escalpelar >rasgar ou dissecar com escalpelo; analisar profundamente.