Análise do texto "Ignoto Deo", de José Régio
Ignoto Deo
Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu Sopro tão além de quanto vemos.
Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.
Chamar-Te amante ou pai..., grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,
Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!
José Régio
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• A Análise
Embora participe cronologicamente da Segunda Geração do Modernismo português, o poema “Ignoto Deo” de José Régio encontra-se com forma fixa de soneto (dois quartetos e dois tercetos, respectivamente), os versos são metrificados em dez sílabas poéticas e as rimas externas apresentam-se alternadas (ABAB’ ABAB’) e emparelhadas (CC’ EE’). Além disso, possui um tema místico, pois o “eu-lírico” revela, em tom confidencial, uma negação em “conhecer” a figura de Deus, como ratifica o próprio título “Ignoto Deo” (Ignoro/desconheço Deus).
Do ponto de vista semântico, o “eu-lírico”, desde a primeira estrofe, renuncia conhecer um pouco mais a Deus e questiona o seu nome (se realmente o nome dele é o que todos chamam: Deus), as formas físicas do rosto e até mesmo o tamanho da força através do sopro. Depois, na segunda estrofe, esse mesmo “eu” que fala desistir de amá-lo (“[...]Desisti de Te amar[...]” – vale ressaltar que as referências, no poema, feitas à Deus estão escritas com letras maiúsculas); e, por mais que o amor divino seja tão forte a ponto de atrair as pessoas, o “eu-poético” tentará ser resistente à tamanha força.
Além disso, o “eu-lírico” desiste de chamar essa figura divina de amante/ amado ou pai, diferentemente da maioria das pessoas que possuem fé nos atos divinos de Deus a ponto de aclamá-lo de pai amado e de dá-lo forma física (“[...] Chamar-Te amante ou pai..., grotesco engano / Que por demais tresanda a gosto humano! [...]”).
Então, o “eu-poético” desistiu de tudo que se relaciona a figura divina (“[...] Desisti de Te achar no quer que seja, / De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja... [...]”), mas ele possui uma única certeza: que Deus jamais desistirá desse “eu” que fala - “[...] – Tu é que não desistirás de mim!” (por mais que, para o “eu-lírico”, seja tarde).
Do ponto de vista estilístico, esse poema possui alguns recursos como o uso de palavras - chaves (tipicamente usado no Simbolismo) para retomar a Deus; além disso, usa um tom confessional para declarar à figura divina essa desistência/renuncio. Há, ainda, um forte apelo à anáfora (para enfatizar a idéia de desistência do “eu-lírico” – “[...] Desisti de saber qual é o Teu nome, / [...] Desisti de Te amar, por mais que a fome / Do Teu amor nos seja o mais que temos [...] / Desisti de Te achar no quer que seja[...]”); e existe o encadeamento e a personificação (“[...]Desisti de Te amar, por mais que a fome / Do Teu amor nos seja o mais que temos,[...]”), uma vez que o amor divino é o que muitas vezes alimenta o ser humano.
Quando se fala em sonoridade, apesar de haver rimas externas, existe, ainda, um apelo à musicalidade interna, pois além da repetição constante do fonema [t] (aliteração – “teu”, “tens”, “tome”, “temos”, etc.), há uma assonância no fonema [i] ( “desisti” , “de” , “te”, “amante”, dentre outros) e há coliteração entre [t / d] no poema como um todo (“[...]Desisti de saber qual é o Teu nome,/ Se tens ou não tens nome que Te demos,[...]”).
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• Conclusão
Trata-se, portanto, de um poema com um forte apelo simbolista ( não só pela musicalidade - expressa externa e internamente, como também pelo uso de palavras-chaves) e barroco, pois há implicitamente uma ligação entre dois seres distintos (o homem e Deus). Nesse ponto é que o “eu-lírico” aproxima-se do próprio José Régio por apresentar um conflito questionador entre o homem e a figura de Deus tão marcadamente presente em boa parte de sua poética.
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• Referência
BERARDINELLI, Cleon. Antologia de José Régio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.