Literatura Comparada - Intertextualidade entre Caymi x Pessoa
Tenho estado tão sem tempo para publicar aqui, porém tenho notado que os meus trabalhos acadêmicos tem tido boa leitura...gostaria de publicá-los todos - está me faltando tempo para organizar...por acaso tropecei em alguns, vou tentar publicar os outros oportunamente.
Um abraço! e boa leitura!
A PRESENÇA DA INTERTEXTUALIDADE ENTRE AS POESIAS DE FERNANDO PESSOA E AS MÚSICAS DE DORIVAL CAYMI TENDO COMO TEMA EM COMUM: “O MAR”.
Introdução
A cultura portuguesa é um fator sempre presente dentro do contexto da arte brasileira de uma forma geral. Portugueses e brasileiros compartilham incontáveis semelhanças entre si, sendo a mais notável e significativa o próprio idioma. A influência portuguesa desdobra-se através da literatura, dos costumes, da religião, enfim, das tradições herdadas do momento histórico de nossa colonização.
O objetivo deste estudo comparativista é demonstrar que há muitas evidências de intertextualidade entre as obras do poeta português Fernando Pessoa e do cantor e compositor brasileiro Dorival Caymi, destacando-se semelhanças e diferenças entre os textos dos dois autores. Para tanto, foi escolhido um tema específico – o mar – ponto em comum em ambas as produções literárias.
A tentativa de compreender melhor a literatura portuguesa, nos leva a reconhecer que, em parte devido à sua localização geográfica, e em parte devido ao fato de que na Idade Média Portugal se consolida como um império em franca expansão marítimo-comercial, o povo português desenvolve ao longo de incontáveis gerações uma forte ligação emocional com o mar; e essa característica, inerente ao poeta português de um modo geral, inevitavelmente transparece em suas obras, ora como um sentimento de orgulho e patriotismo exacerbado - como encontramos em Camões, na obra prima “Os Lusíadas” - ora como um sentimento de perda, vazio e melancolia, que envolvia tanto os que se lançavam ao mar quanto aos que ficavam em terra, aguardando a volta de seus entes amados. E é nessa segunda proposta que compreendemos a convergência dos textos escolhidos, tanto do poeta português Fernando Pessoa, como do compositor brasileiro Dorival Caymi. Observemos então, alguns textos dos dois autores:
FERNANDO PESSOA
MAR PORTUGUES
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
DORIVAL CAYMI
O MAR
O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito
O mar... pescador quando sai
Nunca sabe se volta, nem sabe se fica
Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos
Nas ondas do mar
O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito (...)
Nesse texto de Dorival Caymi, destacam-se as mesmas temáticas de melancolia, perda e saudade que observamos no poema de Fernando Pessoa. O amor pelo mar, um amor tão profundo que já se mistura e faz parte do próprio ser, que doa suas lágrimas para salgarem o objeto que é a causa da sua dor, quando ao mesmo tempo não abre mão de sua posse; ou seja, mesmo conhecendo a tristeza ainda assim não deixa de admirar sua beleza.
O poema de Pessoa termina com uma conclusão: o mar é perigoso, mas é lindo! Foi nele que Deus espelhou o céu... A canção de Caymi começa com uma afirmação idêntica – o mar é bonito! – para depois nos trazer a mesma idéia de perigo, quando diz: “pescador quando sai, nunca sabe se volta”. Da mesma forma, assim como Pessoa exclama: “ (...)quantas mães choraram/ Quantos filhos em vão rezaram/ Quantas noivas ficaram por casar (...) assim também Caymi lamenta: (...) Quanta gente perdeu seus maridos, seus filhos/ Nas ondas do mar (...) e logo em seguida conclui, como o poeta português – Ó mar quando quebra na praia/ é bonito. Essa visão de beleza que permanece apesar da dor da perda, na canção de Dorival Caymi, transparece como uma resposta à pergunta feita nos versos de Fernando Pessoa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena/ Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor”.
Nos próximos textos comparados evidenciamos as semelhanças entre a forma como os dois poetas vinculam a sua relação com o mar com a necessidade do homem em se apegar a uma divindade que o proteja dos perigos do mar e de certa forma lhe garanta determinado consolo em meio às intempéries tanto do mar quanto da própria vida. O sentimento religioso aqui se distingue tendo no poeta português a visão católica de um único Deus o qual impõe-se como uma característica central em seus versos. Essa herança histórica também influencia a obra do poeta baiano, porém em seu caso com um pouco mais de liberdade devido à grande influencia da cultura afro; a diferença se faz notar quando o poeta deixa transparecer sua originalidade ao registrar as raízes brasileiras da sua crença pessoal nas divindades africanas, fato que fica bem claro em sua música “Caminhos do Mar” e “Canção da Partida” comparados com os poemas “O Infante” e “Prece”, de Fernando Pessoa.
FERNANDO PESSOA
O INFANTE
Deus quer e, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou -te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode ergue-la ainda.
Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia-
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
DORIVAL CAYMI
CANÇÃO DA PARTIDA
Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
CAMINHOS DO MAR
(...) Quem ouve desde menino
Aprende a acreditar
Que o vento sopra o destino
Pelos caminhos do mar
O pescador que conhece
as historias do lugar
morre de medo e vontade
de encontrar
Yemanja Odoiá Odoiá
Rainha do mar
Yemanja Odoiá Odoiá
Nessas letras de Dorival Caymi, também é possível notar a referência que se faz à vontade de Deus em que o homem conquiste o mar, colhendo deste os frutos dos seus sonhos, dos seus trabalhos. Caymi retoma Pessoa em “O Infante”, nos versos iniciais: “Deus quer e o homem sonha/ Deus quis que a terra fosse toda uma (...)”, quando canta: “Se Deus quiser quando eu voltar do mar/ Um peixe bom eu vou trazer.
Em “Caminhos do Mar, Caymi vai além da visão generalizada de Deus, e faz referência direta à divindade crida como “Rainha do mar/ Yemanjá Odoiá Odoiá (...) acrescentando assim a idéia do sincretismo religioso e da liberdade de expressão e culto, retomando a idéia de Fernando Pessoa no poema “Prece”, transformando-o em uma saudação à deusa das águas e dirigindo a esta o seu temor e fé.
Conclusão
Nestes breves comentários, a partir das interseções observadas, percebemos que a obra do compositor brasileiro Dorival Caymi se encaixa dentro da visão crítica de intertextualidade descrita por Julia Kristeva quando afirma: “ Todo texto é absorção e transformação de outro texto (...) e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla.”
BIBLIOGRAFIA:
Carvalhal, Tania Franco. Literatura Comparada, Apostila da Estácio
Junior, Ivanildo Bispo dos Santos. Revista de estudos linguísticos e literários(ISSN1984-0705), Patos de Minas, Nov.2009. (artigo publicado na internet) http://www.unipam.edu.br/cratilo/images/stories/file/artigos/2009_2/Poesia_e_memoria_cultural_uma_analise.pdf
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dorival_Caymmi
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_pessoa