Influências homéricas na literatura clássica
Quem chegou primeiro? O aedo cego que esmolava pelas ruas da Grécia Antiga, ou a história de destruição da cidade de Tróia e a saudade que um rei grego sentia de casa? Parece estranho pensar nessa ordem sobre Homero e as narrativas épicas de Ilíada e Odisséia. Entretanto, esse questionamento ganha sentido, quando passamos a estudar a história desses livros e de seu autor e, percebemos que “Nada sabemos sobre Homero. Acontece o contrário com os seus livros” (MANGUEL, 2008, p. 08).
Essa dúvida quanto à existência do poeta começa com a não identificação do local de seu nascimento, fazendo com que, até hoje, seja disputado por sete cidades famosas: Quios, Esmirna, Cólofon, Salamina, Rodes, Argos e Atenas. Tal incerteza de autoria não apaga, porém, a grandiosidade dos textos que “ofereciam uma visão cosmopolita de deuses e heróis; eram a referência em face da qual verdades documentais e argumentos metafísicos podiam ser testados” (MANGUEL, 2008, p. 39), e, ainda hoje, “são fonte de prazer estético e de ensinamento moral” (HOMERO, 2004, p.15).
Ilíada e Odisséia com seus relatos sobre a Guerra de Tróia e sobre as tribulações sofridas por Ulisses no retorno para casa, são os clássicos universais que mais inspiraram e continuam a influenciar, há dois milênios, toda a história da literatura contemporânea, como alegoria e como registro histórico dos desafios que representaram para a antiguidade e que ainda representam para a atualidade, pois a ira de Aquiles e a saudade de Ulisses sempre farão com que nos lembremos de nós mesmos, irmanando-nos com o restante da humanidade nesses sentimentos comuns a todos os seres.
São exemplos dessa identificação literária textos célebres, como as histórias de Simbad o Marujo, em que estão presentes várias das aventuras de Ulisses; A história de Egill Maneta e Asmundr, o matador de berseks, saga islandesa, com forte influência da Odisséia; a narrativa do encontro entre Ulisses e o Ciclope, que no folclore inglês dos irmãos Grimm, tornou-se João e o pé de feijão.
Nos dois primeiros séculos da era cristã, São Jerônimo e Santo Agostinho já se preocupavam quanto à relação entre os poemas homéricos e a Bíblia: Aquiles na Ilíada e Davi no Velho Testamento, os estágios da volta de Ulisses e o êxodo complicado dos hebreus do Egito (MANGUEL, 2008).
Estabelecendo associações com as imagens criadas por Homero para o inferno, percebemos o alcance e a permanência de Ilíada e Odisséia. A descrição do caminho para o Hades, feita por Circe, na Odisséia “atenta ao rio, hão de presto acudir enxames de almas” (HOMERO, 1980, p. 144), estende-se por muitas centenas de anos futuros, podendo ser reconhecida na pintura das paredes do cemitério dos Inocentes, em Paris, no claustro da velha igreja de St. Paul, em Londres, nas xilogravuras que ilustram a Dança da Morte, de Hans Holbein.
Já a Ilíada, guarda uma das metáforas mais difundidas pelos escritores do mundo, a analogia que Glauco faz entre homens e folhas: “Como as folhas somos; que umas o vento as leva emurchecidas, outras brotam vernais e as cria a selva: tal nasce e tal acaba a gente humana” (HOMERO, 2004, P.164).
Virgílio, também usa na sua Eneida a metáfora da folha de Homero. Dante tem essa leitura presente, ao descrever a cena correspondente em sua Divina Comédia. “Milton, no Paraíso Perdido, colocou a imagem composta numa paisagem virgiliana para descrever Satã à beira do Mar de Fogo: ‘bastas como do outono as folhas juncam’ “ (MILTON citado por MANGUEL, 2008, p. 103).
Semelhantemente, agiu Verlaine, que voltou à imagem de Glauco dois séculos depois de Milton: “Se assim eu vago/vento pressago/Me transporta/ Ao-deus-dará/Semelhante à/Folha morta” (VERLAINE citado por MANGUEL, 2008, p.104). Shelley, da mesma forma, ao descrever as ruínas de Pompéia, em 1820, deu nova flexão à imagem, comparando as folhas que caem a fantasmas errantes.
Walt Whitman, Virgínia Woolf, Edgar Allan Poe, Guimarães Rosa e tantos outros autores contemporâneos seriam também exemplos de escritores que “beberam nas fontes” da Ilíada e da Odisséia, provando que Homero começa muito antes de Homero e não tem fim definido, pois toda vida será sempre uma batalha e a vida inteira, sempre uma jornada.
Referências:
MANGUEL, Alberto. Ilíada e Odisséia de Homero. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2004.
HOMERO. Odisséia. Tradução de Otto Pierre Editores. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1980.