A Réplica de Capitu na Academia Brasileira de Letras
CAPÍTULO I
Palácio Austregésilo de Athayde – Rio de Janeiro – 27 de junho de 2008 – Salão Nobre do Petit Trianon - Academia Brasileira de Letras.
NÉLIDA PIÑON- Quinta ocupante da Cadeira 30 proferia o discurso de abertura da exposição Machado Vive!
“Tantos anos passados de sua morte, Machado de Assis ainda desperta contínuas interrogações. Perante os enigmas que suscita, sentimo-nos à deriva, engolfados pelos seres como Brás Cubas, Ayres, Rubião, Simão Bacamarte, Conceição, que, concebidos pelo apuro da sua arte, tornaram-se réplicas da nossa mortalidade.
Uma arte que, moldada pelo fulgor da ilusão, altera os rumos da urdidura novelesca ao bel-prazer do autor. Como quando Machado de Assis, no romance Dom Casmurro, arbitra em favor de um desfecho que não ofendesse seus interesses estéticos, ainda que o gosto da época se inclinasse para soluções trágicas. Zela, simplesmente, para o livro ser a história de uma imaginação exacerbada. A história da modernidade dos sentimentos. A história das emoções em vigília, à margem do perturbador espiral de uma civilização que se constrói paulatinamente.
O romance, de repertório autoral, é conduzido por Bento. Cabe-lhe a decisão de determinar a dose de prestígio que cada personagem merece na trama. Mas ao cobrir estas criaturas de um véu que tem o peso de um julgamento moral, Bentinho ativa a imaginação como estratégia e, desta forma, acoberta sua dolorida solidão.
A adesão de Machado ao real, compromete as ações morais de suas criaturas. Bentinho, assim, ao sacrificar os seus ideais de narrador, está livre para atormentar Capitu. O que terá levado o marido de Carolina a se perguntar, após capitular em prol do narrador, se havia o risco de Capitu vir a ser considerada o modelo da mulher brasileira que, submetida à afronta do inseguro marido, tem a honra maculada? Mesmo quando Capitu, em capcioso mutismo, conduz Bento ao desespero que o leve a conhecer a si mesmo. Ou quando pretenda governar-lhe a memória, expor, ao mundo da ficção, a alma desordenada do marido ?
E terá sido como ora conjeturamos? Ou Machado, cioso defensor da verdade narrativa, ao anotar os transtornos da realidade conjugal, não lhe restou senão ampliar o índice da ambiguidade presente no livro e dar seqüência à desenvoltura da fabulação?
Não nos enganemos, no entanto, com as poderosas narrativas de Machado de Assis. Em qualquer delas, romances, contos, crônicas, o mais comedido ingrediente tem a sutil propriedade de espargir em torno pistas tão falsas quanto as das nossas vidas, mulheres e homens agora reunidos nesta sala do Petit Trianon.
............................ Aqui estamos, Machado de Assis, cem anos após a sua partida, a cumprir o vaticínio do Poeta, a reclamar sua memória, a pedir-lhe que se sente ao nosso lado, faça-nos companhia. E diga-nos, em voz audível, para o Brasil todo ouvi-lo:
PRESENTE”
Naquele momento todos acadêmicos se levantaram para aplaudir, contudo uma voz ao fundo bradou:
- Presente estou eu a reclamar a minha memória!
O presidente surpreso, perguntou:
- Quem é a senhora que pela ordem não lhe foi dada a palavra?
Responde a mulher em voz mais elevada:
- Maria Capitolina Santiago, vulga Capitu, personagem do homenageado mulato, epilético, pobre, gago, bisneto de escravos, filho de Joaquim, um pintor de paredes mulato, e de Maria Leopoldina, uma lavadeira. Um dos fundadores dessa Academia, que por ironia do destino no comercial dos 150 anos Caixa Economica Federal o “grande escritor racistas” aparece como branco!
Um silêncio pairou no ar. Outro acadêmico brada:
- Como assim? E o que quer a senhora?
Replica Capitu:
- Sim. Um preto de alma branca! Simplesmente, desejo me defender!
Defender-se do quê? A senhora continua dissimulada com seus olhos de ressaca e foi assim que entrou para a história. Respondeu o acadêmico.
Não senhor. Eu sou apenas vítma de meu criador!
Naquele instante todos protestaram: Que infâmia! Vítima de Machado de Assis?
Sim, prosseguiu Capitu: Vejam que ele foi tão mais dissimulado do que eu. A prova está nos adjetivos conectados a mim. Olhos que o diabo lhe deu...cigana...oblíqua...dissimulada....
Não, não, a senhora está enganada! Essas são palavras do personagem José Dias e D. Glória e, Bentinho o Casmurro, ficou com essa imagem na cabeça. Retrucou outro acadêmico!
Silêncio! Falou o presidente. Se a senhora quer apresentar a versão de sua história, marcaremos para a próxima semana para ouví-la.
Também no silêncio, Capitu passou olhos sobre a plateia e refletiu por alguns minutos: Olham-me como se fosse uma maçã. A perdição! Uma bastarda como Helena!
Em ato contínuo, repetiu o presidente: Na próxima quarta- feira às 8 horas nos ouviremos o que tem a dizer sobre o seu enigma.
Risos e mais risos na plateia.
Capitu olha para todos e sai sussurando:
Nada é prova de traição alguma.
Nada me leva à fogueira.
Dissimulada coisa nenhuma!
Das inocentes, é a primeira.
Um zum zum zum tornou-se em debate no Salão Nobre do Petit Trianon.
Em tom irônico um acadêmico pronuncia um fragmento do livro, onde Bentinho enfatiza o quanto o Sr. José Dias deprecia o Sr. Pádua, pai de Capitu:
“A gente Pádua não é de todo má. (...) Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados.”
A referência indiscreta do acadêmico fazia alusão à origem pobre de Capitu à época de uma sociedade aristrocrata. Entretando, a “referência” tinha aparência de um prejulgamento disfarçado de mea culpa.
Poucos riram, outros sairam e o salão ficou vazio as moscas.
Em breve no Clube dos Autores!