Poesia prosaica? Prosa poética?
A questão de distinção entre poesia e prosa – ou entre verso e prosa – vem sendo debatida desde muito tempo por críticos e historiadores, porque não se chega a um resultado universal, válido e igualmente aceito por todos. Isso se deve justamente à subjetividade da arte, na qual cada estudioso tem uma visão própria dessa expressão estética, o que deixa uma incógnita em aberto.
Muitos acreditavam que a diferença entre prosa e poesia era um fato sem solução, pois em si tratando de Camões e Balzac, por exemplo, não se nomeava aquele de poeta e este de prosador, e sim os dois de escritores. Por mais que essa definição seja tão visível, mesmo para o conhecimento popular, o que importa é o valor literário que a obra possui em si mesma, a sua verdade, o seu fator que incita a curiosidade do leitor e do crítico.
Pode até ser bem prática essa argumentação. Contudo, esse pensamento não coincide plenamente com a realidade. A contemplação da obra de arte, e posteriormente o julgamento que se faz dela, pressupõe sua classificação; o que interessa é somente a emoção estética. Se esta está contida na obra, nada mais importa.
Mas o que é emoção estética? Como diferenciar o que é estético/bonito numa obra do que não é e, por isso, alienante em provocar alguma sensação? A emoção estética é a relação na qual o contemplador da arte se põe na situação passiva de quem apenas recebe sentimentos que a obra desperta e fica fora do contexto da mesma. Tomemos, como exemplo, um conhecido soneto de Augusto dos Anjos:
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa vil mão que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija.
Os dois tercetos dos Versos íntimos de Augusto ilustram bem a noção de belo ou estético de uma obra. Automaticamente, a leitura principiante de um leitor irá considerar tais versos “não-poéticos”, justamente pelo escândalo que o vocabulário provoca no ponto de vista de quem o lê. Além disso, duas ações atormentam o leitor: o apedrejamento da vil mão que afaga e o escarro na boca que beija, sobretudo esta última, que por certo deva provocar a imagem do grotesco na mente o leitor. Dessa forma, tais versos despertam a emoção antiestética, por fugir do tom subjetivo, romântico, sentimental, aludido pelo título “versos íntimos”, e se aproximar da esfera do repugnante.
Por outro lado, a sensação de “nojo” que a construção imagética do soneto evoca insere o leitor num estado de inércia, no qual a leitura poética fica bloqueada pela ideia de nojo que foi elaborada pelo leitor a partir, principalmente, da imagem do escarro. Com isso, deixa-se de lado toda a potencialidade que o texto literário pode incitar, inclusive a noção de belo/feio. Na verdade, o que pretende o poeta com o uso de palavras “não-poéticas” é, justamente, questionar a obrigatoriedade da poesia em reportar exclusivamente ao esteticamente agradável, isto é, a desvinculação da palavra poética do seu compromisso com o belo. Além disso, pode-se observar no poema a discursividade expressiva, o tom quase prosaico da linguagem.
Debruçando-se mais ainda sobre a obra, percebe-se que o vocabulário (“lama”, “escarro”, “chaga”), aliado ao Determinismo (“O Homem que [...] mora entre feras, sente inevitável/Necessidade de também ser fera”) retoma poeticamente o Naturalismo, enquanto a ironia de “Toma um fósforo. Acende teu cigarro!” parece instaurar uma interlocução com o leitor, cujo niilismo – negação de todos os valores – invoca a presença do realismo machadiano, além de introduzir o prosaico na poesia brasileira – pela primeira vez – anunciando o Modernismo.
Como visto, a primeira impressão acerca de uma obra pode impedir o leitor da conhecê-la por inteiro e desvende todos os mistérios – estéticos – que, porventura, possua. Esse estado de inércia do contemplador, provocado pelo juízo de valor, possibilita apreciar a obra de arte, mas sem conhecê-la; o conteúdo emocional apenas se concretiza quando o contemplador/leitor – no caso da literatura – se torna ciente da situação da obra, toma conhecimento desta. Sem conhecê-la, a emoção se esvai, porque foi superficial, momentânea. A inteligência grava na mente essa emoção despertada.
Só vamos conhecer verdadeiramente uma obra de arte quando a classificarmos. Então, a poesia obedece a leis próprias, assim como a prosa.