A PRODUÇÃO POÉTICA DE PAULA NEI

O nome de Francisco de Paula Nei (Vila de Aracati, CE, 2/2/1858 – Rio de Janeiro, RJ, 13/10/1897) é mencionado nos meios literários, atualmente, máxime e somente como partícipe da vida boêmia que marcou o Rio de Janeiro da belle époque, e na qual figuraram nomes que acabaram se imortalizando, como é o caso de Aluízio Azevedo e Olavo Bilac, e outros que a Crítica de hoje situa em posição menos elevada – são exemplos Coelho Neto, Guimarães Passos, Luís Murat, e muitos outros.

Figura de enorme popularidade no Rio de Janeiro de sua época, Paula Nei nunca pretendeu se dedicar seriamente à literatura, e muito menos viver dela – passou sua mocidade vivendo do que lhe rendia sua atividade na imprensa diária, bem como dos freqüentes favores que lhe faziam seus colegas e conhecidos. Sua vida apenas conheceu relativa estabilidade após seu casamento, quando o status de pai de família, o emprego público e a saúde cada vez mais fragilizada impediam-lhe de viver no mesmo desregramento de antes.

Não obstante fugir da carreira literária, que considerava avessa ao seu gênio turbulento e ansioso por movimento, Paula Nei, em sua curta existência (faleceu aos 37 anos de idade), acabou deixando à posteridade, além das linhas que anonimamente escreveu nos jornais, também algumas modestas produções poéticas, que, juntamente com alguns discursos de sua lavra (Paula Nei foi brilhante orador, ficando famosa sua capacidade de improvisação, sendo que nos restou algumas transcrições de seus discursos nos jornais da época), compõem seu reduzido acervo literário.

É mais pelo seu valor histórico e bibliográfico que tomamos a iniciativa de reunir, em um só corpo, o que já foi possível reunir-se das poesias escritas por Paula Nei, e que constam das duas biografias que tiveram por objeto a vida do ilustre boêmio: "A Vida Boêmia de Paula Nei", da lavra do minuncioso biógrafo Raimundo de Menezes, que também dedicou-se ao estudo da vida de outros escritores contemporâneos à Nei, como Aluízio Azevedo, Guimarães Passos e Emílio de Menezes; e "No Tempo de Paula Nei", esmerado livro de autoria de Ciro Vieira da Cunha, que com sua obra conquistou o Prêmio Carlos de Laet de 1949, promovido pela Academia Brasileira de Letras, e que também é autor de um curioso opúsculo intitulado "100 Piadas de Paula Ney", que reúne o formidável anedotário do boêmio cearense.

As poesias de Paula Ney, desconsiderados os versos satíricos que ele arquitetava espontaneamente em meio as suas palestras, e que raramente eram registradas em papel, não passam de meia dúzia, e não primam pelo estilo. Nem dele seria razoável esperar o contrário, pois nos parece que seus versos foram esboçados, in totum, de improviso, à mesa das confeitarias em que ele tomava assento para escrever suas reportagens e descobrir novas matérias para elas. Percebe-se a influência do parnasianismo predominante no momento: o uso do soneto como molde de manifestação poética, algumas figuras de linhagem, e elementos outros que não merecem ser mencionados nesta pequena resenha.

Não obstante, sua linguagem destoa do formalismo e do rigor da Escola de Bilac – a singeleza das figuras que Paula Nei invoca, e a simplicidade dos termos e das construções de que se utiliza reportam uma influência maior do Romantismo – em seus versos prevalece a emotividade e os exageros românticos, em detrimento da emoção contida e contemplativa dos parnasianos.

Quanto à qualidade dos poemas, em seu conteúdo, não se pode tirar nenhum juízo que olvide o fato de que, se Paula Nei foi poeta em algumas ocasiões, foi-o de improviso, sem maiores pretensões e veleidades. Isso talvez escuse as deficiências que hora ou outra se encontram pelos seus parcos versos, como o emprego de figuras poéticas já exaustivamente conhecidas, o uso excessivo de vocativos, etc. Não obstante, inegável que seus versos emanam certa beleza, muito dela devida à simplicidade e espontaneidade que neles transparecem. Exemplo maior disso é o soneto "A Fortaleza", que ganhou considerável notoriedade em sua época, a ponto de que a capital cearense fosse, como ainda é, batizada de "loira desposada do sol", feliz inspiração de Paula Nei em uma faceta pouco conhecida de sua vida – a de Poeta.

Por fim, convém notar, antes que se julgue que os poemas a seguir pertencem tão-somente à poeira do Passado, que, curiosamente, até mesmo na internet é possível encontrar os versos de Paula Nei, embora algumas transcrições pequem pelo descuido, sendo que de uma pequena análise que fizemos na web, verificamos diversas imprecisões quanto à grafia das palavras, quanto à acentuação, ocorrendo até mesmo omissões e inversões de termos, desconfigurando alguns versos.

Essas deficiências não obscurecem a importância, porém, que há no ato de se dar publicidade aos versos de uma figura que anda esquecida dos estudos literário que têm enfoque nos autores do final do século XIX. E é essa publicidade que, se os versos do boêmio cearense não possuíram no papel, possuem agora, na rede mundial de computadores, acessível para milhões de brasileiros que presentemente podem conhecer, ainda que em pequena dose, um pouco dessa figura literária tão cativante, como é a de Paula Nei.

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A ABOLIÇÃO

A justiça de um povo generoso,

Pesando sobre a negra escravidão,

Esmagou-a de um modo glorioso,

Sufocando-a com a lei da Abolição.

Esse passado tétrico, horroroso,

Da mais nefanda e torpe instituição,

Rolou no chão, no abismo pavoroso,

Assombrado com a luz da Redenção.

Não mais dos homens os fatais horrores,

Não mais o vil zumbir das vergastadas,

Salpicando de sangue o chão e as flores.

Não mais escravos pelas esplanadas!

São todos livres! Não há mais senhores!

Foi-se a noite: só temos alvoradas!

Segundo Raimundo de Menezes, o presente soneto foi escrito nos dias que se sucederam à Abolição, em meio às comemorações que tomavam as ruas centrais do Rio de Janeiro. Diz o biógrafo que Paula Nei escreveu-o de improviso, "entre dois cálices de vermouth, em meio ao ruidar da multidão na rua".

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SEM TÍTULO

Mestre Meira mira o Moura

E o mestre Moura mira o Meira

Na marinha e na salmoura,

Mestre Meira mira o Moura,

Enquanto grita a lavoura,

Saltando doida e brejeira,

Mestre Meira mira o Moura

E o mestre Moura mira o Meira!

Jogo de palavras composto por Paula Nei, sobre desentendimentos havidos entre dois Ministros do Império: João Florentino Meira de Vasconcelos e João Pereira Moura, este ocupando a pasta da Marinha. Segundo R. de M., Nei, na ocasião trabalhando como repórter parlamentar, compôs esses versos e distribui-os aos parlamentares, na Câmara dos Deputados.

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SEM TÍTULO

Aquele piano, que ontem soluçava,

Triste e dolente, a doce cavatina

Dos teus olhos, oh! lânguida bonina,

Parecia uma órfã que chorava...

Parecia uma nuvem que espalhava

A branda luz da estrela matutina;

Parecia uma pomba que arrulhava

Na orla verde-negra da campina.

E eu chorava também... Tinha em meu peito

A dor da ausência, o perenal martírio

Dum grande amor passado e já desfeito!

Então, pedia às brisas que corriam,

Puras e leves, como o odor do lírio,

Para falar-te; e as brisas me fugiam...

Raimundo de Menezes, n'"A Vida Boêmia de Paula Nei", intitula o soneto "O Piano", afirmando que ele foi dedicado a D. Júlia Lima de Freitas Coutinho, com a qual o boêmio se casou já trintagenário. Da união matrimonial nasceram três filhos, sendo que o primogênito faleceu ainda recém-nascido, após intervenção cirúrgica. Já Ciro Vieira da Cunha possui outra versão para o poema. Segundo o biógrafo, o poema nasceu da parceria de Paula Nei e Lins de Albuquerque, poeta parnasiano morto precocemente e que pertencia à roda boêmia de Nei. O soneto acima, sem título, teria sido, segundo Vieira da Cunha, publicado n'"O Mequetrefe", sob as inicias P. N. e L. A., após ter sido redigido em uma das mesas da Confeitaria Paschoal, no Rio. O biógrafo explica que foi o olvido que baixou sobre a figura de Lins e Albuquerque que fez com que atribuíssem sua autoria apenas ao nome de Paula Nei. Efetivamente, a versão de Ciro Vieira da Cunha parece-nos mais fidedigna, e por isso optamos por não intitular o soneto do modo como fez Raimundo de Menezes.

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A TRANÇA

Esta santa relíquia imaculada,

De teu saudoso amor, esta lembrança,

Da vida que fugiu, arrebatada,

Ligeira, como um sonho de criança,

Nos sonos de uma noite de bonança...

- Eu guardo, junto a mim, oh! noiva amada,

Enquanto minha vista não se cansa

De vê-la e adorá-la, extasiada!

Com o fio desta trança, tão escura,

Tão negra, sim - que até minha amargura

Lhe invejaria a cor - e tão macia...

Quais pétalas de rosa, eu teço, à noite,

Da viração sentindo o brando açoite,

- O epitáfio de minha campa fria!...

Único poema de Paula Nei de que se tem notícia que foi publicado na imprensa, à época da composição. Foi este soneto foi estampado no periódico "A Semana", de 16 de Janeiro de 1886.

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ADORAÇÃO

Tu és minha, afinal! Enfim, te vejo

Sobre os meus braços, lânguida, prostrada,

Enquanto em tua face, descorada,

Os lábios colo e sorvo-te num beijo.

Vibra em minh'alma o lúbrico desejo,

De assim gozar-te a sós, abandonada,

De sentir o que sentes, minha amada,

De escutar-te do peito o doce arpejo!

Quando, entretanto, eu sinto que teu seio

Palpita delirante em doido anseio,

Como a luz que do sol à terra emana,

Eu digo dentro em mim: se eu te manchara,

Se eu te manchara, Flor, ai! não te amara,

Oh! branca espuma da beleza humana!

Sobre este soneto escreveu Nei da Silva: "neste encantador quatorzeto vê-se bem delineada toda a idéia: a posse, o desejo, a piedade, e, por fim, a revolta íntima de um ato pouco digno de um coração que coloca o ideal, sempre intangível e puro, longe, muito longe, das terrenas misérias do mundo. Nele o espírito pode mais do que a matéria vil, e, assim, a doce e a inefável visão dos seus sonhares, ficou-lhe sendo sempre: 'a branca espuma da beleza humana'" – O entusiasmo quiçá exagerado do escritor se escusa pelo fato de seu parentesco com Paula Nei...

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DE VIAGEM

Voa minh'alma, voa pelos ares,

Como o trapo de nuvem flutuante,

Vai perdida, sozinha e soluçante,

Distende as asas tuas sobre os mares!

Leva contigo os lânguidos cismares,

Que um dia acalentaste, delirante,

Como acalenta o vento roçagante,

A copa verde-negra dos palmares.

Atira tudo isso aos pés de Deus,

Lá onde brilha a luz e estão os céus

E virgens mil c'roadas de verbena.

Isto que já brilhou como uma estrela,

_ Adeus! dirás, só pertenceu a ela,

Corpo de um anjo, coração de hiena!

Este poema – conta-nos R. de M. – foi escrito a bordo do navio que levou Nei, em sua mocidade, do Rio de Janeiro para Salvador, onde passou tumultuosa e alegre temporada. O motivo da viagem, a filha de um comerciante da Corte, pela qual o jovem boêmio se apaixonara, e que lhe serviu de inspiração para o soneto transcrito.

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A FORTALEZA

Ao longe, em brancas praias embalada

Pelas ondas azuis dos verdes mares,

A Fortaleza, a loira desposada

Do sol, dormita à sombra dos palmares.

Loura de sol e branca de luares,

Como uma hóstia de luz cristalizada,

Entre verbenas e jardins pousada

Na brancura de místicos altares.

Lá canta em cada ramo um passarinho,

Há pipilos de amor em cada ninho,

Na solidão dos verdes matagais...

É minha terra! a terra de Iracema,

O decantado e esplêndido poema

De alegria e beleza universais!

Quando se pensa sobre a fama atual de Paula Nei, constata-se que, seguramente, este soneto é seu legado mais vivo, na medida em que a beleza dos versos de "A Fortaleza" rendeu ao poema o mérito de figurar em diversas coletâneas de poesias, sendo o soneto consideravelmente conhecido pelo público até hoje, principalmente em Fortaleza, que por muitos ainda é chamada de – A loira desposa do sol".

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BIOGRAFIA

- A Vida Boêmia de Paula Nei. Raimundo de Menezes. Edições de Ouro. Rio de Janeiro. MCMLXVIII

- No Tempo de Paula Nei. Ciro Vieira da Cunha. Edições Saraiva. São Paulo. 1950

- 100 Piadas de Paula Nei. Ciro Vieira da Cunha. Edições Galo Branco. Rio de Janeiro. 2000

B S Pereira
Enviado por B S Pereira em 21/08/2005
Reeditado em 15/11/2015
Código do texto: T44129
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