O Mito no Processo Criativo 






Há muito venho pensando em escrever um artigo ligando a importância do mito ao processo criativo. O texto do professor Sílvio Medeiros " O Canto das Sereias segundo a Dialético do Esclarecimento" acabou incentivando-me como uma extensão das reflexões ali propostas. O texto de Sílvio nos traz uma compreensão mais ampla do conceito de Iluminismo, ou seja sob um ponto de vista trans- epocal fundando-se na idéia de que este se deu em diferentes períodos. Analisando o Iluminismo do século XVIII que se consagrou como o período das “Luzes”, fundando as bases do racionalismo, o texto apresenta uma importante reflexão sobre a racionalidade totalizante do mundo moderno e a urgência em criar novas luzes. Como o próprio texto aponta, baseado na Crítica do iluminismo traçada por Adorno e Horkheimer “grosso modo” “a ciência e a técnica, que vieram para libertar o homem da visão mágica, do mito, criaram outro mito, mais potente e sofisticado, pois agora, o homem é vítima do próprio progresso e da racionalidade técnica, visto que a ciência, a tecnologia, enfim, o conhecimento sonhado pelos primeiros pensadores modernos, como possibilidade de minorar o sofrimento dos homens, vai perdendo cada vez mais o potencial libertário que lhe é inerente e, por extensão, tornando-se mito.” Não se trata de fazer uma apologia ao irracionalismo até porque como o próprio texto afirma: “A razão incapacitou-se para identificar a própria irracionalidade que ela produz. Dessa leitura que inspira, sobretudo o resgate do indivíduo em sua totalidade, foi que criei esse texto em que a tônica é o conceito de mito e a sua importância no imaginário. 



Na arte, isso vem se refletindo e interliga-se com a psicanálise, com a psique humana, dado que o homem parece cortar cada vez mais o diálogo com o imaginário, com o inconsciente que guarda o desconhecido; desconhecido esse que, ironicamente inspirou o racionalismo e um mundo de descobertas. O grande mitólogo Joseph Campbell, com o estudo da mitologia comparada, estabelece uma ponte maravilhosa entre a razão e o mito, entre o homem moderno e seus conflitos universais, propondo-nos uma nova forma de pensar o mito, não como antônimo da razão ou sinônimo de fantasia mas, como um manancial incrível de vida e experiências a serem interpretadas. É necessário deixar claro, nesta tentativa de conceituar o mito, que o mesmo não tem aqui a conotação usual de fábula, lenda, invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as chamadas, de forma equivocada, culturas primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra "revelada", o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir como linguagem, "ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento". "O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado, é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se como narrativa. Ele expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações e, na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. É bem verdade que a sociedade industrial usa o mito como expressão de fantasia, de mentiras, daí a mitomania, mas não é este o sentido apreendido aqui. Mesmo Roland Barthes, procurou reduzir o conceito de mito apresentando-o como qualquer forma substituível de uma verdade. Uma verdade que esconde outra verdade. Mais exato seria, defini-lo como uma verdade profunda de nossa mente. Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos. Poucos se dão ao trabalho de observar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos vêem no mito tão-somente os significantes, isto é, a parte concreta do signo. É mister ir além das aparências e buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo.
Em meu conto “Ítaca”, por exemplo, esse aspecto é bastante ilustrativo  pois explorei conteúdos simbólicos presentes na mitologia. Já o título,  remete a  interpretações como: o retorno de Ulisses ao lar que é a ilha de Ítaca, depois de sua longa viagem: “A Odisséia”. O mesmo corresponde também a uma viagem interna e suas provações até voltar, por fim, ao seu ponto de partida ou seja, a metáfora de uma viagem ao encontro de nós mesmos. A narrativa centra-se nessa viagem interna percorrida pelo protagonista numa atmosfera onírica, possibilitando diferentes leituras afinal : “ O sonho é o que não se tornou fato e o passado é o fato que se tornou sonho, pois a memória tem a mesma estrutura do sonho.”
Vale também lembrar como exemplo, o filme: "Guerra nas Estrelas" de George Lucas que não errou em usar conceitos da mitologia comparada na estória. Ele foi um verdadeiro fã de Joseph Campbell e recorreu a ele, muitas vezes, enquanto construía o roteiro. Com o surgimento do cinema, os mitos novamente ganharam seu espaço, agora não boca-a-boca, como acontecia antigamente, mas mediante meios audiovisuais, e difundidos ao redor do mundo. Todas as etapas que aparecem no "Herói das Mil Faces" no livro de Campbell estão nesse filme de forma mais acessível e simplificada ao público infantil e adolescente.
Por último gostaria de colocar a definição de mito, dentro do conceito de Carl Gustav Jung como a conscientização de arquétipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido.
Para que o leitor possa compreender melhor a amplitude e os reflexos do mito não só dentro do processo criativo, mas na sociedade contemporânea como um todo, deixo um texto sobre o mito das sereias, analisado sob uma perspectiva psicológica. Escolhi as sereias, em particular, visto que elas são uma metáfora do nosso diálogo com o imaginário.


"O canto é um dos elementos simbólicos mais expressivos associados às sereias. O canto puro representa uma força de atração direta que atinge algo que está para além das construções defensivas do ego, indo diretamente mobilizar, constelar poderosos aspectos inconsciente da personalidade. Já Apolo havia caído fascinado pelos sons que o jovem Hermes tirava de sua lira. Os mantras sagrados funcionam da mesma maneira, tanto para harmonizar quanto para destruir. Mais recentemente, no famoso conto de Andersen, A Pequena Sereia, vemos que ela troca sua voz encantadora por um par de pernas humanas. Nos dias de hoje as sirenes (sereias) de ambulâncias e bombeiros nos paralisam por breves instantes numa angústia de aflição e morte. Temos também a expressão "cair no canto da sereia" com o sentido de logro, engano. Em todas essas expressões os sons, a música e a voz são os instrumentos utilizados para atrair, seduzir e convencer, ultrapassando todos os contra-argumentos retóricos, morais e psicológicos. É importante notar que essa força de sedução talvez se deva menos a debilidades do ego e mais ao fato de que algo profundo é tocado ou despertado ao som dessas sirenes.Isso é sedução. Essa atração encantadora e irresistível é parte essencial desse símbolo mas, como veremos mais adiante, talvez a razão profunda de tão brutal fascínio não possa ser compreendida com base em interpretações rasas em torno do tema da sexualidade. Então, entre outras coisas a sereia representa a sedução arquetípica, a sedução da psique unilateral promovendo uma inevitável enantiodromia, "o princípio que governa todos os ciclos da vida natural, desde o menor até o maior" . Seduzir vem do latim se-ducere e significa, dentro de seu campo semântico, conduzir à parte, guiar a outro lado, mudar de rota, deslocar, divagar, digredir, obrigar a mudança. Mas que mudança? Mudança no sentido psíquico, para que se dê ouvidos à alma, à anima, para que dialoguemos com nossas potências inconscientes e para que possamos de fato dar asas a nossa imaginação simbólica, criativa. O canto (sedução) da sereia pode ser arrebatador e mortal, para o ego. Não é de outra coisa que está falando Hillman ao dizer que o lugar da alma é o “mundus imaginalis”, o mundo imaginal, o mundo dos sonhos para o qual o ego é irremediavelmente seduzido todas as noites. Isso não é a morte, mas o reino de Hades. Para Hillaman a metáfora da morte nos permite entender o reino dos mortos como o mundo das almas, ou seja, como o lugar da anima, da psique viva. "Das sedutoras do mar dizia-se que adestravam o homem para a morte, o que poderia ser correto, mas no sentido proposto por Baudriallard: Qualquer força masculina é força de produção[...] A única, e irresistível força da feminilidade é aquela, inversa, a da sedução [...] A sedução é mais forte do que a sexualidade, com a qual não há que confundi-la nunca [...] Para nós, só está morto aquele que não quer seduzir em absoluto, nem ser seduzido". (Lao, M., 1995, 45) Essa é a sedução essencial, expressão profunda do arquétipo da anima, arquétipo de ligação, seja ele representado como sereia pássaro, sereia peixe, amante, santa, prostituta, Iara, Boto ou Iemanjá. A sedução / canto é a expressão primordial da anima. No mundo capitalista contemporâneo o canto da sereia exerce igualmente o seu poder de sedução, funcionando na polaridade oposta. O capitalismo nos promete a felicidade total pelo consumo de bens e as novas tecnologias nos fazem sonhar com um mundo de progressos sem limites, infinitos. Entretanto, na nova mítica já não morremos mais, apenas ficamos obsoletos. Uma propaganda de cartão de crédito mostra que apenas algumas poucas coisas na vida o dinheiro não é capaz de comprar (e são cada vez menos). Para todas as outras basta um cartão de crédito. E já não falta quem defenda que com a decodificação do DNA (e com um bom cartão de crédito) em breve será possível comprar vida, anos de vida, ou até mesmo sobreviver por meio de um clone. Essa é a verdadeira sedução perversa, que foge da morte, nega a morte e qualquer possibilidade de iniciação simbólica, forjando analfabetos psíquicos. Não iniciados são não-nascidos, e estes se prestam a permanecer numa incubadora, alimentando a poderosa Matrix que são nossos complexos autônomos, para quem se lembra do filme de Larry and Andy Wachowski. As sereias cantam para que mantenhamos o diálogo criativo com o inconsciente, com a imaginação, entre a vida e a morte, entre a sereia e o pescador, que afinal somos todos nós. Não adianta apenas ficar amarrado ao mastro, como Ulisses, e depois deixar morrer a tentação. É preciso mais. É preciso que em nossas vidas haja mais espaço para processamento, tempo de elaboração, um tempo circular, tempo para circum-ambular pela experiência, no cumprimento de ritos que venham a atualizar os mitos dentro de nós. Precisamos urgentemente reconstruir o diálogo com a Imaginação e valorizar as expressões do nosso imaginário mitológico, folclórico, coletivo e pessoal. Ao longo da história observamos que o desprestígio da Imaginação e do mundo imaginário se dá ao mesmo tempo em que a mulher e o mundo feminino também vão sendo desvalorizados, já a partir do século V a.C., na pólis grega. Segundo Zoja, "a hýbris” , pela qual o grego prevê a punição e plasma a figura de nêmesis, é o pecado de uma sociedade cujos excessos trazem a marca do homem; e o primeiro desses pecados foi exatamente a submissão da mulher". (Zoja, L., 2000, 50)Essa também era a mentalidade portuguesa que aportou por aqui em 1500 e que não entendeu que para os nossos indígenas o mundo feminino era supremo. "O índio dizia que tudo neste mundo tinha uma Mãe.  O Sol era a Mãe dos Viventes e não o Pai. A Mãe bastava. Explicava". (Cascudo,L.C., 1948,128) Muitos, ainda hoje, tratam a Imaginação com uma mentalidade bárbara, tal como as nossas mulheres índias violentadas ou as sereias que tiveram suas penas arrancadas. Mas a Psicologia Analítica já pode mostrar algo diferente. Como última imagem quero restituir aqui a imagem da sereia alada que em algum lugar, e sempre, ainda canta para dar asas à nossa Imaginação e à construção da Alma."



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Sinopse  -  O autor discute as lendas sobre as sereias e suas manifestações no imaginário popular, em especial na América Latina. O mito da sereia e o tema da sedução são entendidos como expressão arquetípica da anima. A sereia representa a sedução arquetípica, a sedução da personalidade unilateral, possibilitando profundos movimentos na psique e favorecendo o diálogo criativo com o inconsciente.



BIBLIOGRAFIA


HILLMAN, J. (1979) The Dream and the Underworld, Harper&Row, NYHOMERO, Odisséia, Col. Universidade, Edições de Ouro IWASHITA, E. (1991) Maria e Iemanjá, análise de um sincretismo, Ed. PaulinasLAO, M., (1995) Las sirenas, Ediciones EraSAMPAIO, T., (1928) O Tupi na Geografia Nacional, BahiaVERGER, P. (1981) Orixás, Deuses iorubás na África e no Novo Mundo, São PauloZOJA, L. (2000) História da Arrogância, Axis Mundi Marcos Fleury de Oliveira é Psicólogo, Analista em Formação pela SBPA-SP

Fontes 

Mito, Rito e Religião – Texto encontrado na Internet conceituando o mito. Infelizmente o nome do autor não aparece. 

O Poder do Mito - Joseph Campbell.

foto -  "Sirena" por Josep Maria Sellarès



Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 07/04/2007
Reeditado em 18/12/2009
Código do texto: T441168
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