CONTOS DE MACHADO DE ASSIS: O QUE SÃO AS MOÇAS, POBRE NINOCA e QUEM CONTA UM CONTO

O QUE SÃO AS MOÇAS

Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1866

I

Diz-se muita coisa feroz a respeito da amizade das mulheres. Ora, este conto tem por objeto a amizade de duas mulheres, tão firme, tão profunda, tão verdadeira, que as famílias respectivas, para melhor caracterizá-la, davam às duas a designação de Orestes e Pílades... de balão. Já se usava balão no tempo deste conto; isto é, as mulheres que haviam sido belas desde Eva até dez anos atrás sem o auxílio da crinolina, imaginaram que sem a crinolina já não podiam agradar.

Se outras razões não houvessem para suprimir a crinolina bastava a simples comparação entre... Mas não, leitoras, deste modo interrompo o romance e deito já em vosso espírito um germe de aversão pelo singelo escritor.

Tenho, pois, aqui a história de duas mulheres amigas e unidas como carne e unha. Razões de simpatia e de convivência longa trouxeram esta amizade, que fazia a felicidade das famílias e a admiração de toda a gente. Uma chamava-se Júlia e a outra Teresa. Esta tinha cabelos louros e era clara; aquela tinha-os castanhos e era morena. Eram estas as diferenças; no mais, igualmente belas e igualmente vestidas. Vestidas, sim, porque quando não estavam juntas, a primeira que acordava mandava perguntar à outra que vestido pretendia trajar naquele dia, e era assim que ambas sempre andavam vestidas do mesmo modo.

Imagine-se depois o resto. Nenhuma delas ia ao teatro, ao baile, ao passeio, sem a outra. À mesa de algum jantar, fosse ou não de cerimônia, o que esta comia, comia aquela, às vezes sem consulta, por simples inspiração.

Esta conformidade, tão ostensiva como era, não alterava o fundo da amizade, como acontece geralmente. Eram verdadeiramente amigas. Quando uma adoecia, a outra não adoecia, como devia ser, mas isto pela simples razão de que a doente não recebia um caldo que não fosse das mãos da outra. Talvez que esta simples circunstância influísse na cura.

Ambas contavam a mesma idade, com diferença de dias. Tinham vinte anos.

Já estou a ouvir uma pergunta da parte das leitoras, pergunta que naturalmente dará mais interesse ao meu conto, pela simples razão de que não responderei a ela.

A pergunta é esta. Aquelas duas almas, tão irmãs, tão conformes, namoravam acaso o mesmo indivíduo? A pergunta é natural e lógica, adivinho mesmo os terrores a que pode dar lugar o desenvolvimento dela; mas nada disso me demove do propósito de deixá-la sem resposta.

O mais que posso dizer é que até o momento em que a nossa história começa o coração de ambas não havia ainda palpitado por amor, coisa rara nos vinte anos, idade em que a maioria das mulheres já conservam vinte maços de cartas, correspondentes a outros tantos namorados inconstantes ou infelizes. Quero ao menos dotar as minhas heroínas destas duas singularidades.

Teresa é filha de um proprietário; Júlia é filha de um empregado público de ordem superior. Tinham as mães vivas e eram filhas únicas: não importa saber mais nada.

Teresa morava em Catumbi. Júlia nos Cajueiros. Calculem daqui a maçada que levava o moleque encarregado de ir dos Cajueiros ao Catumbi ou vice-versa para saber de que maneira se vestiam as duas amigas, que, como disse, até nisto queriam manter a mais perfeita conformidade!

Estamos no mês de junho. Faz algum frio. Júlia, retirada para o seu gabinete de trabalho, ocupa-se em terminar um bordado que destina mandar a Teresa. Tem a porta e janela fechadas por causa do frio. Trabalha com atividade para acabar o bordado naquele mesmo dia. Mas alguém vem interrompê-la: é uma mulatinha de dez anos, cria de casa, que acaba de receber uma carta mandada por Teresa.

Júlia abre a carta e lê o seguinte:

Minha querida Júlia. — talvez esta noite lá vá. Tenho coisas muito importantes a contar-te. Que romance, minha amiga! É para duas horas, senão mais. Prepara-te. Até logo! — Tua do coração, Teresa.

Júlia leu a carta, releu-a, e murmurou:

— Que singularidade!

Depois, escreveu as seguintes linhas em resposta a Teresa:

Vem, minha querida. Se não viesses ia eu! Há muito que não te vejo e quero ouvir-te e falar-te. Com que ouvidos te hei de ouvir, e com que palavras te hei de falar. Nem cinco horas. O melhor é vires dormir cá. — Tua Júlia.

O leitor compreende facilmente que as coisas muito importantes de que falava Teresa não seriam decerto nem a alça de fundos, nem a mudança de ministério, nem mesmo a criação de bancos. Aos vinte anos só há um banco: o coração; só há um ministério: o amor. As firmezas e as infidelidades são a alça e a baixa de fundos.

Daqui concebe o leitor, que é perspicaz, o seguinte: — o negócio importante de Teresa é algum amor.

E dizendo isto o leitor prepara-se para ver despontar no horizonte daquele coração virgem a primeira alva de um sentimento puro e ardente. Não serei eu que lhe impeça o prazer, mas só lho consentirei nos posteriores capítulos; neste não. Dir-lhe-ei somente, para melhor orientá-lo, que a visita prometida por Teresa não teve lugar por causa de visitas inesperadas que foram à casa dela. A moça arrepelou-se, mas não era possível vencer aquele obstáculo. Vingou-se porém; não deu palavra durante a noite e deitou-se mais cedo que de costume.

II

Dois dias depois Teresa recebia de Júlia a seguinte carta:

Minha querida Teresa. — Quiseste contar-me não sei que acontecimento; dizes-me que preparas uma carta para isso. Enquanto espero a tua carta, escrevo-te eu uma para dar-te parte de um acontecimento meu.

Até nisto parecemos irmãs.

Ah! se morássemos juntas seria a suprema felicidade; nós que juntas vivemos tão iguais.

Sabes que até hoje estou como a livre borboleta dos campos; ninguém tem feito bater o meu coração. Pois bem, chegou a minha vez.

Aí vais rir, minha cruelzinha, destas confidências; tu que não amas, vais zombar de mim que me alistei nas bandeiras do amor.

Amo, sim, e não poderia deixar de fazê-lo, tão bela, tão interessante é a pessoa em questão.

Quem é? perguntarás tu. Será o Oliveira? O Tavares? O Luís Bento? Nenhum desses, descansa. Nem lhe sei o nome. Não é conhecido nosso. Vi-o apenas duas vezes, a primeira há oito dias, a segunda ontem. Verdadeiramente o amor descobriu-se ontem. Que belo rapaz. Se o visses ficavas a morrer por ele. Quisera fazer-te a pintura, mas não sei. É um belo rapaz, de olhos pretos, moreno, cabelos abundantes e da cor dos olhos; um par de bigodes grossos e pretos.

Tem passado aqui por nossa rua, às tardes, entre as cinco e seis horas. Passa sempre a cavalo. Olha, Teresa, até o cavalo me parece adorável; cuido às vezes que está ensinado, porque ao passar em frente às nossas janelas, começa a saltar, como que me cumprimenta e agradece a simpatia que o dono me inspira.

Que tolices estou eu dizendo! Mas desculpa, minha Teresa, isto é amor. No amor sente-se muita coisa que não se sente de ordinário. Agora sei.

Vais perguntar-me se ele gosta de mim, se repara em mim? Repara posso afirmar-te; mas se gosta não sei. Porém é acaso possível que se repa re muito em alguém sem gostar? A mim parece que não. Talvez seja ilusão do meu coração e dos meus desejos.

Não sabes como isto me tem posto a cabeça tonta. Ontem mamãe reparou e me perguntou que tinha eu; respondi que nada, mas de modo tal que ela sacudiu a cabeça e disse baixinho: Ah! amores, talvez!

Estive para abraçá-la, mas recuei e entrei para o quarto. Tenho medo que se saiba disto; entretanto, não creio que seja crime gostar de um moço bonito e bem educado, como ele parece ser. Que dizes tu?

Preciso dos teus conselhos. Tu és franca e és minha amiga verdadeira. Tuas palavras me servirão de muito. Se eu não tivesse uma amiga como tu, abafava com semelhante coisa.

Escreve-me, quero palavras tuas. Se quiseres o portador esperará; em todo o caso desejo que me respondas hoje.

Adeus, Teresa; até amanhã, porque eu e mamãe lá vamos. Escreve-me e sê sempre amiga da tua amiga, Júlia.

III

Teresa a Júlia:

Minha Júlia. — Apaixonada! Que me dizes tu? Pois é possível que achasses afinal o noivo do teu coração? E assim, sem mais nem menos, como uma chuva de verão, caindo no meio de um dia claro e bonito?

Dou-te do fundo d’Anch’ Anch’alma tão funesto resultado.

O que te digo, pois, é que o ames só e procures ganhar exclusivamente toda a afeição de Daniel. Ele pode fazer-te feliz, e pela minha parte vou pedir a Deus que coroe os teus votos.

Não te importes comigo; sou mais forte do que tu; posso lutar e vencer. Por que não? Quando me faltasse coragem, bastaria a idéia de que cumpria um dever de irmã para ganhar forças. Não será uma luta estéril, a luta do meu coração contra o amor. Mas vença o dever, e tanto basta para fazer-me contente.

Ama-o e sê feliz. Do coração to deseja a tua, — Júlia.

X

Estas duas cartas, chegando ao mesmo tempo e dizendo a mesma coisa, produziram idênticos efeitos.

Ambas viram que de parte a parte havia um sacrifício de amizade. Mas ambas persistiram no que haviam entendido, sem querer aproveitar o sacrifício da outra.

Novas cartas e novas recusas da parte de ambas.

E, para realizar o sacrifício oferecido, ambas deram de tábua ao gamenho Daniel.

A primeira vez que se encontraram caíram nos braços uma da outra, quase lavadas em lágrimas.

— Obrigada, minha amiga! O teu sacrifício é grande, mas em vão; não posso aceitá-lo.

— Nem eu o teu.

— Por que não?

— Por que não?

— Aceita.

— Aceita tu.

E deste modo cada uma delas tratava de ver quem seria a mais generosa que a outra.

Respondendo desta maneira, atirado de uma para outra, recusado por sentimento de magnanimidade, Daniel foi quem perdeu no tal joguinho. De onde se prova o provérbio que é sempre mau correr a duas lebres.

Mas falta à nossa história o epílogo e moralidade.

***

Quinze dias depois das cenas que se acabam de narrar, Teresa escreveu a Júlia as seguintes linhas:

Minha Júlia. — Sei que és minha amiga e partilharás a minha felicidade. Vou ser feliz.

A felicidade para nós outras reduz-se a muito pouco: encher o nosso coração e satisfazer a nossa fantasia.

Vou casar. Acabo de ser pedida. O meu noivo possui o meu coração, e posso dizê-lo, sem vaidade para mim, eu possuo o dele.

Perguntarás quem ele é. É natural. Não te lembras do Alfredo Soares? Pois é ele. Vi-o tantas vezes a frio; não sei por que comecei a amá-lo. Hoje se ele não me pedisse, creio que eu morreria. O amor é isto, Júlia: é problema que só a morte ou o casamento resolve.

Adeus, abençoa o futuro de tua amiga, — Teresa.

Júlia leu esta carta e respondeu as seguintes linhas:

Minha Teresa. — Estimo do fundo d’alma a tua felicidade e faço votos para que sejas completamente feliz. O teu noivo merece-te; é um belo mancebo, bem educado e de boa posição.

Mas não quero que te entristeças. O céu nos fez amigas e irmãs, não podia dar-nos a felicidade por meio. Também me deparou alguma coisa; e, se não estou pedida, vou sê-lo esta tarde.O teu noivo merece-te; é um belo mancebo, bem educado e de boa posição.

Mas não quero que te entristeças. O céu nos fez amigas e irmãs, não podia dar-nos a felicidade por meio. Também me deparou alguma coisa; e, se não estou pedida, vou sê-lo esta tarde.

Não conheces o meu noivo; chama-se Carlos da Silveira, tem 25 anos, e é um coração de pomba. Ama-me como eu amo a ele.

Meu pai não se poderá opor a este casamento. O que resta é que ele seja feito no mesmo dia, para que, fazendo em igual hora a nossa ventura, ratifiquemos a sorte propicia e idêntica que o céu nos deparou.

Agradeçamos a Deus tanta felicidade. Até amanhã à noite. Tua, — Júlia.

XI

No dia seguinte reuniram-se todos, não em casa de Teresa, mas em casa de Júlia, nos Cajueiros. Estavam as duas e os dois noivos. Gabriel acompanhara a família à visita.

As duas moças comunicaram os seus projetos de felicidade. Nenhuma delas censurou à outra o silêncio que guardara até a hora do pedido em casamento, porque ambas tinham praticado a mesma coisa.

Ora, Gabriel, que soubera por sua irmã Teresa da recusa de ambas relativamente a Daniel, aproveitou uma ocasião que as acompanhou à janela e disse-lhes:

— Não há nada como a amizade. Admiro cada vez mais o ato de generosidade que ambas praticaram a respeito de Daniel.

— Ah! sabe! disse Júlia.

— Sei.

— Fui eu quem lho disse, acrescentou Teresa.

— Mas, continuou Gabriel, são tão felizes que o céu lhes deparou logo um coração para responder aos seus.

— É verdade, disseram as duas.

Gabriel olhou para ambas, e depois, à meia voz, com intenção disse:

— Com a singularidade de que a carta de desistência do coração do primeiro foi escrita depois do primeiro olhar amoroso do segundo.

As duas moças coraram e esconderam o rosto.

Tinham de ficar vexadas.

Caía assim o véu que encobria o sacrifício e via-se que ambas haviam praticado o sacrifício no interesse pessoal; ou por outra: largavam um pássaro tendo outro em mão.

Mas as duas moças casaram-se e ficaram tão amigas como antes. Não sei se no correr dos tempos houve sacrifícios semelhantes.

Fonte: alecrim.inf.ufsc.br

POBRE FINOCA!

Que é isso? Você parece assustada. Ou é namoro novo?

— Que novo? é o mesmo, Alberta; é o mesmo aborrecido que me persegue; viu-me agora passar com mamãe, na esquina da Rua da Quitanda, e, em vez de seguir o seu caminho, veio atrás de nós. Queria ver se ele já passou.

— O melhor é não olhar para a porta; conversa comigo.

Toda a gente, por menos que adivinhe, sabe logo que esta conversação tem por teatro um armarinho da Rua do Ouvidor. Finoca (o nome é Josefina) entrou agora mesmo com a velha mãe e foram sentar-se ao balcão, onde esperam agulhas; Alberta, que está ali com a irmã casada, também aguarda alguma coisa, parece que uma peça de cadarço. Condição mediana, de ambas as moças. Ambas bonitas. Os empregados trazem caixas, elas escolhem.

— Mas você não terá animado a perseguição, com os olhos? perguntou Alberta, baixinho.

Finoca respondeu que não. A princípio olhou para ele; curiosa, naturalmente; uma moça olha sempre uma ou duas vezes, explicava a triste vítima; mas daí em diante, não se importou com ele. O idiota, porém (é o próprio termo empregado por ela), cuidou que estava aceito e toca a andar, a passar pela porta, a esperá-la nos pontos dos bondes; até parece que adivinha quando ela vai ao teatro, porque sempre o acha à porta, ao pé do bilheteiro.

— Não será fiscal do teatro? aventou Alberta rindo.

— Talvez, admitiu Finoca.

Pediram mais cadarços e mais agulhas, que o empregado foi buscar, e olharam para a rua, de onde entravam várias senhoras, umas conhecidas, outras não. Cumprimentos, beijos, notícias, perguntas e respostas, troca de impressões de um baile, de um passeio ou de uma corrida de cavalos. Grande rumor no armarinho; falam todas, algumas sussurram apenas, outras riem; as crianças pedem isto ou aquilo, e os empregados curvados atendem risonhos à freguesia, explicam-se, defendem-se.

— Perdão, minha senhora; o metim era desta largura.

— Qual, sr. Silveira! — Deixe, que eu lhe trago amanhã os dois metros.[1]

— Sr. Queirós!

— Que manda V. Excia.?

— Dê-me aquela fita encarnada de sábado.

— Da larga?

— Não, da estreita.

E o sr. Queirós vai buscar a caixa das fitas, enquanto a dama, que as espera, examina de esguelha outra dama que entrou agora mesmo, e parou no meio da loja. Todas as cadeiras estão ocupadas. The table is full, como em Macbeth; e, como em Macbeth, há um fantasma, com a diferença que este não está sentado à mesa, entra pela porta; é o idiota, perseguidor de Finoca, o suposto fiscal de teatro, um rapaz que não é bonito nem elegante, mas simpático e veste com asseio. Tem um par de olhos, que valem pela lanterna de Diógenes; procuram a moça e dão com ela; ela dá com ele; movimento contrário de ambos; ele, Macedo, pede a um empregado uma bolsinha de moedas, que viu à porta, no mostrador, e que lhe traga outras à escolha. Disfarça, puxa os bigodes, consulta o relógio, e parece que o mostrador está empoeirado, porque ele tira do bolso um lenço com que o limpa; lenço de seda.

— Olha, Alberta, vê-se mesmo que entrou por minha causa. Vê, está olhando para cá.

Alberta verificou disfarçadamente que sim; ao mesmo tempo que o rapaz não tinha má cara nem modos feios.

— Para quem gostasse dele, era boa escolha, disse ela à amiga.

— Pode ser, mas para quem não gosta, é um tormento.

— Isso é verdade.

— Se você não tivesse já o Miranda, podia fazer-me o favor de o entreter, enquanto ele se esquece de mim, e fico livre.

Alberta riu-se.

— Não é má idéia, disse; era assim um modo de tapar-lhe os olhos, enquanto você foge. Mas então ele não tem paixão; quer só namoro, passar o tempo...

— Pode ser isso mesmo. Contra velhaco, velhaca e meia.

— Perdão; duas velhacas, porque somos duas. Você não pensa, porém, em uma coisa; é que era preciso chamá-lo a mim, e não é coisa que se peça a uma amiga séria. Pois eu iria agora fazer-lhe sinais...

— Aqui estão as agulhas que V. Excia....

Interrompeu-se a conversação; trataram das agulhas, enquanto Macedo tratou das bolsinhas, e o resto da freguesia das suas compras. Sussurro geral. Ouviu-se um toque de caixa; era um batalhão que subia a Rua do Ouvidor. Algumas pessoas foram vê-lo passar às portas. A maior parte deixou-se ficar ao balcão, escolhendo, falando, matando o tempo. Finoca não se levantou; mas Alberta, com o pretexto de que Miranda (o namorado) era tenente de infantaria, não pôde resistir ao espetáculo militar. Quando ela voltou para dentro, Macedo, que espiava o batalhão por cima do ombro da moça, deu-lhe galantemente passagem. Saíram e entraram fregueses. Macedo, à força de cotejar bolsinhas, foi obrigado a comprar uma delas, e pagá-las; mas não a pagou com o preço exato, deu nota maior para obrigar ao troco. Entretanto, esperava e olhava para a esquiva Finoca, que estava de costas, tal qual a amiga. Esta ainda olhou disfarçadamente, como quem procura outra coisa ou pessoa, e deu com os olhos dele, que pareciam pedir-lhe misericórdia e auxílio. Alberta disse isto à outra, e chegou a aconselhar-lhe que, sem olhar para ele, voltasse a cabeça.

— Deus me livre! Isto era dar corda, e condenar-me.

— Mas, não olhando...

— É a mesma coisa; o que me perdeu foi isso mesmo, foi olhar algumas vezes, como já disse a você; meteu-se-lhe em cabeça que o adoro, mas que sou medrosa, ou caprichosa, ou qualquer outra coisa...

— Pois olhe, eu se fosse você olhava algumas vezes. Que mal faz? Era até melhor que ele perdesse as esperanças, quando mais contasse com elas.

— Não.

— Coitado! parece que pede esmolas.

— Você olhou outra vez?

— Olhei. Tem uma cara de quem padece. Recebeu o troco do dinheiro sem contar, só para me dizer que você é a moça mais bonita do Rio de Janeiro — não desfazendo em mim, já se vê.

— Você lê muita coisa...

— Eu leio tudo.

De fato, Macedo parecia implorar a amiga de Finoca. Talvez houvesse compreendido a confidência, e queria que ela servisse de terceira aos amores — a uma paixão do inferno, como se dizia nos dramas guedelhudos. Fosse o que fosse, não podia ficar na loja mais tempo, sem comprar mais nada, nem conhecer ninguém. Tratou de sair; fê-lo por uma das portas extremas, e caminhou em sentido contrário a fim de espiar pelas outras duas portas a moça dos seus desejos. Elas é que o não viram.

— Já foi? perguntou Finoca dali a instantes à amiga.

Alberta voltou a cabeça e percorreu a loja com os olhos.

— Já foi.

— É capaz de esperar-me na esquina.

— Pois você muda de esquina.

— Como? se não sei se ele desceu ou subiu?

E depois de alguns momentos de reflexão:

— Alberta, faz-me este favor!

— Que favor?

— O que lhe pedi há pouco.

— Está tola! Vamos embora...

— O tenente não apareceu hoje?

— Ele não vem às lojas.

— Ah! se ele desse algumas lições ao meu perseguidor! Vamos, mamãe?

Saíram todos e subiram a rua. Finoca não se enganara; Macedo estava à esquina da Rua dos Ourives. Disfarçou, mas fitou logo os olhos nela. Ela não tirou os seus do chão, e foram os de Alberta que receberam os dele, entre curiosa e piedosa. Macedo agradeceu o favor.

— Nem caso! gemeu ele consigo; a outra, ao menos, parece ter compaixão de mim.

Seguiu-as, meteu-se no mesmo bonde, que as levou ao Largo da Lapa, onde se apearam e foram pela Rua das Mangueiras. Nesta morava Alberta; a outra na dos Barbonos. A amiga ainda lhe deu uma esmola; a avara Finoca nem voltou a cabeça.

Pobre Macedo! exclamarás tu, ao invés do título, e realmente, não se dirá que esse rapaz ande no regaço da Fortuna. Tem um emprego público, qualidade já de si pouco recomendável ao pai de Finoca; mas, além de ser público, é mal pago. Macedo faz proezas de economia para ter o seu lenço de seda, roupa à moda, perfumes, teatro, e, quando há lírico, luvas. Vive em um quarto de casa de hóspedes, estreito, sem luz, com mosquitos e (para que negá-lo?) pulgas. Come mal para vestir bem; e, quanto aos incômodos da alcova, valem tanto como nada, porque ele ama — não de agora — tem amado sempre, é a consolação ou compensação das outras faltas. Agora ama a Finoca, mas de um modo mais veemente que de outras vezes, uma paixão sincera, não correspondida. Pobre Macedo!

Cinco ou seis semanas depois do encontro no armarinho, houve um batizado na família de Alberta, o de um sobrinho desta, filho de um irmão empregado no comércio. O batizado era de manhã, mas havia baile à noite — e prometia ser de espavento. Finoca mandou fazer um vestido especial; as valsas e quadrilhas encheram-lhe a cabeça, dois dias antes do aprazado. Encontrando-se com Alberta, viu-a triste, um pouco triste. Miranda, o namorado, que era ao mesmo tempo tenente de infantaria, recebera ordem de ir para S. Paulo.

— Em comissão?

— Não; vai com o batalhão.

— Eu, se fosse ele, fingia-me constipado, e ia no dia seguinte.

— Mas já foi!

— Quando?

— Ontem de madrugada. Segundo me disse, de passagem, na véspera, parece que a demora é pequena. Estou pronta a esperar; mas a questão não é essa.

— Qual é?

— A questão é que ele devia ser apresentado em casa, no dia do baile, e agora...

Os olhos da moça confirmaram discretamente a sinceridade da dor; umedeceram-se e verteram duas lágrimas pequeninas. Seriam as últimas? seriam as primeiras? Seriam as únicas? Eis ai um problema, que tomaria espaço à narração, sem grande proveito para ela, porque aquilo que se não acaba entendendo, melhor é não gastar tempo em explicá-lo. Sinceras eram as lágrimas, isso eram. Finoca tratou de as enxugar com algumas palavras de boa amizade e verdadeira pena.

— Fica descansada, ele volta; S. Paulo é aqui perto. Talvez volte capitão.

Que remédio tinha Alberta, senão esperar? Esperou. Enquanto esperava, cuidou do batizado, que, em verdade, devia ser uma festa de família. Na véspera as duas amigas ainda estiveram juntas; Finoca tinha um pouco de dor de cabeça, estava aplicando não sei que medicamento, e contava acordar boa. Em que se fiava, não sei; sei que acordou pior com uma pontinha de febre, e posto quisesse ir assim mesmo, os pais não o consentiram, e a pobre Finoca não estreou naquele dia o vestido especial. Tanto pior para ela, porque o pesar aumentou o mal; à meia-noite, quando mais acesas deviam estar as quadrilhas e valsas, a febre ia em trinta e nove graus. Creio que se lhe dessem a escolher, ainda assim dançaria. Para que a desgraça fosse maior, a febre declinou sobre a madrugada, justamente à hora em que, de costume, os bailes executam as últimas danças.

Contava que Alberta viesse naquele mesmo dia visitá-la e narrar-lhe tudo; mas esperou-a em vão. Pelas três horas recebeu um bilhete da amiga, pedindo-lhe perdão de não ir vê-la. Constipara-se e chovia; estava rouca; entretanto, não queria demorar-se em dar-lhe notícias da festa.

Esteve magnífica, escrevia ela, se é que alguma coisa pode estar magnífica sem você e sem ele. Mas, enfim, agradou a todos, e principalmente ao pais do pequeno. Você já sabe o que meu irmão é, em coisas desta ordem. Dançamos até perto de três horas. Estavam os parentes quase todos, os amigos de costume, e alguns convidados novos. Um deles foi a causa da minha constipação, e dou-lhe um doce se você adivinhar o nome deste malvado. Digo só que é um fiscal de teatro. Adivinhou? Não diga que é Macedo, porque então recebe mesmo o doce. É verdade, Finoca; o tal sujeito que te persegue apareceu aqui, ainda não sei bem como; ou foi apresentado ontem a meu irmão, e convidado logo por ele; ou este já o conhecia antes, e lembrou-se de lhe mandar convite. Também não estou longe de crer, que, qualquer que fosse o caso, ele tratou de se fazer convidado, contando com você. Que lhe parece? Adeus, até amanhã, se não chover.

Não choveu. Alberta foi visitá-la, achou-a melhor, quase boa. Repetiu-lhe a carta, e desenvolveu-a, confirmando as relações de Macedo com o irmão. Confessou-lhe que o rapaz, tratado de perto, não era tão desprezível como parecia à outra.

— Eu não disse desprezível, acudiu Finoca.

— Você disse idiota.

— Sim; idiota...

— Nem idiota. Conversado e muito atencioso. Diz até coisas bonitas. Eu lembrei-me do que você me pediu, e estou, quase não quase, a tentar prendê-lo; mas lembrei-me também do meu Miranda, e achei feio. Contudo, dançamos duas valsas.

— Sim?

— E duas quadrilhas. Você sabe, poucos dançantes. Muitos jogadores de solo e conversadores de política.

— Mas como foi a constipação?

— A constipação não teve nada com ele; foi um modo que achei de dar a notícia. E olha que não dança mal, ao contrário.

— Um anjo, em suma?

— Eu, se fosse você, não o deixaria ir assim. Acho que dá um bom marido. Experimente, Finoca.

Macedo saíra do baile um tanto consolado da ausência de Finoca; as maneiras de Alberta, a elegância do vestido, as feições bonitas, e um certo ar de tristeza que, de quando em quando, lhe cobria o rosto, tudo e cada uma dessas notas particulares era de fazer pensar alguns minutos antes de dormir. Foi o que lhe aconteceu. Vira outras moças; mas nenhuma tinha o ar daquela. E depois era graciosa nos intervalos de tristeza; dizia palavras doces, ouvia com interesse. Supor que o tratou assim só por desconfiar que ele gostava da amiga, isto é que lhe parecia absurdo. Não, realmente, era um anjo.

— Um anjo, disse ele daí a dias ao irmão de Alberta.

— Quem?

— D. Alberta, sua irmã.

— Sim, boa alma, excelente criatura.

— Pareceu-me isso mesmo. Para conhecer uma pessoa, bastam às vezes alguns minutos. E depois é muito galante — galante e modesta.

— Um anjo! repetiu o outro sorrindo.

Quando Alberta soube deste pequeno diálogo — contou-lho o irmão — sentiu-se um tanto lisonjeada, talvez muito. Não eram pedras que o rapaz lhe atirava de longe, mas flores — e flores aromáticas. De maneira que, quando no domingo próximo o irmão o convidou a jantar em casa dele, e ela viu entrar, pouco antes de irem para a mesa, a pessoa do Macedo, teve um estremecimento agradável. Cumprimentou-o com prazer. E perguntou a si mesma, por que é que Finoca desdenhava de um moço tão digno, tão modesto... Repetiu ainda este adjetivo. E que ambos teriam a mesma virtude.

Dias depois, dando notícia do jantar a Finoca, Alberta referiu novamente a impressão que lhe deixara o Macedo, e instou com a amiga para que lhe desse corda, e acabassem casando.

Finoca pensou alguns instantes:

— Você, que já dançou com ele duas valsas e duas quadrilhas, e jantou à mesma mesa, e ouviu francamente as suas palavras, pode ter essa opinião; a minha é inteiramente contrária. Acho que ele é um cacete.

— Cacete porque gosta de você?

— Há diferença entre perseguir uma pessoa e dançar com outra.

— É justamente o que eu digo, acudiu Alberta; se você dançar com ele, verá que é outro; mas, não dance, fale só... Ou então, volto ao plano que tínhamos: vou falar-lhe de você, animá-lo...

— Não, não.

— Sim, sim.

— Então brigamos.

— Pois brigaremos, contanto que façamos as pazes na véspera do casamento.

— Mas que interesse tem você nisto?

— Porque acho que você gosta dele, e, se não gostava muito nem pouco, começa a gostar agora.

— Começo? Não entendo.

— Sim, Finoca; você já me disse duas palavras com a testa franzida. Sabe o que é? É um bocadinho de ciúme. Desde que soube do baile e do jantar, ficou meia ciumenta — arrependida de não ter animado o moço... Não negue; é natural. Mas faça uma coisa; para que Miranda não se esqueça de mim, vá você a S. Paulo, e trate de fazer-me boas ausências. Aqui está a carta que recebi ontem dele.

Dizendo isto, desabotoou um pedaço do corpinho, e tirou uma carta, que ali trazia, quente e aromada. Eram quatro páginas de saudades, de esperanças, de imprecações contra o céu e a terra, adjetivada e beijada, como é de uso nesse gênero epistolar. Finoca apreciou muito o documento; felicitou a amiga pela fidelidade do namorado, e chegou a confessar que lhe tinha inveja. Foi adiante; nunca recebera de ninguém uma epístola assim, tão ardente, tão sincera... Alberta deu-lhe uma pancadinha na face com o papel, e releu-o depois, para si. Finoca, olhando para ela, disse consigo:

— Creio que também ela gosta muito dele.

— Se você nunca recebeu uma assim — disse-lhe Alberta — é porque não quer. O Macedo...

— Basta de Macedo!

A conversa voltou ao ponto de partida, e as duas moças andaram no mesmo círculo vicioso. Não tenho culpa se eram escassas de assunto e de idéias. Hei de contar a história, que é curta, tal qual ela é, sem lhe pôr mais nada, além da boa vontade e da franqueza. Assim, para ser franco, direi que a repulsa de Finoca não era talvez falta de interesse nem de curiosidade. A prova é que, naquela mesma semana, passando-lhe pela porta o Macedo, e olhando naturalmente para ela, Finoca afligiu-se menos que das outras vezes; é certo que desviou os olhos logo, mas sem horror; não deixou a janela, e, quando ele, ao dobrar a esquina, voltou a cabeça, e não a viu fitá-lo, viu-a fitar o céu, que é um refúgio e uma esperança. Tu concluirias assim, rapaz que me lês; Macedo não foi tão longe.

— Afinal, o melhor é não pensar mais nela, murmurou andando.

Entretanto, ainda pensou nela, de mistura com a outra, viu-as ao pé de si, uma desdenhosa, outra atenciosa, e perguntou por que é que as mulheres haviam de ser diferentes; mas, advertindo que os homens também o eram, convenceu-se que não nascera para os problemas morais, e deixou cair os olhos no chão. Não caíram no chão, mas nos sapatos. Mirou-os bem. Que lindos que eram os sapatos! Não eram recentes, mas um dos talentos do Macedo era saber conservar a roupa e o calçado. Com pouco dinheiro, fazia sempre bonita figura.

— Sim — repetiu ele, daí a vinte minutos, Rua da Ajuda abaixo — o melhor é não pensar mais nela.

E pôs mentalmente os olhos em Alberta, tão cheia de graça, tão elegante de corpo, tão doce de palavras — uma perfeição. Mas por que é que, sendo atenta com ele, furtava-se-lhe quando ele a mirava de certo modo? Zanga não era, nem desdém, porque daí a pouco falava-lhe com a mesma bondade, perguntava-lhe isto e aquilo, respondia bem, sorria, e cantava, quando ele lhe pedia que cantasse. Macedo animava-se com isto, arriscava outro daqueles olhares doces e ferinos, a um tempo, e a moça voltava o rosto, disfarçando. Eis aí outro problema, mas desta vez não fitou o chão nem os sapatos. Foi andando, esbarrou num homem, escapou de cair num buraco, quase não deu por nada, tão ocupado levava o espírito.

As visitas continuaram, e o nosso namorado universal parecia fixar-se de vez na pessoa de Alberta, apesar das restrições que ela lhe punha. Em casa desta, notavam a assiduidade de Macedo, e a boa vontade com que ela o recebia, e os que tinham notícia vaga ou positiva do namoro militar, não compreendiam a moça, e concluíam que a ausência era uma espécie de morte — restrita, mas não menos certa. E contudo ela trabalhava para a outra, não digo que com igual esforço nem continuidade; mas em achando modo de elogiá-la, fazia-o com prazer, embora já sem grande paixão. O pior é que não há elogios infinitos, nem perfeições que se não acabem de louvar, quando menos para não vulgarizá-las. Alberta temeu, além disso, a vergonha do papel que lhe poderiam atribuir; refletiu também que, se o Macedo gostasse dela, como entrava a parecer, ouviria o nome da outra com impaciência, senão coisa pior — e calou-o por algum tempo.

— Você ainda continua a trabalhar por mim? perguntou-lhe um dia Finoca.

Alberta, um tanto espantada da pergunta (não falavam mais naquilo) respondeu que sim.

— E ele?

— Ele, não sei.

— Esqueceu-me.

— Que se esquecesse não digo, mas você foi tão fria, tão cruel...

— A gente não vê, às vezes, o que lhe convém, e erra. Depois, arrepende-se. Há dias, vi-o entrar no mesmo armarinho em que estivemos uma vez, lembra-se? Viu-me, e não fez caso.

— Não fez caso? Então para que entrou lá?

— Não sei.

— Comprou alguma coisa?

— Creio que não... Não comprou, não; foi falar a um dos caixeiros, disse-lhe não sei quê, e saiu.

— Mas está certa que ele reparou em você?

— Perfeitamente.

— O armarinho é escuro.

— Qual escuro! Viu-me, chegou a tirar o chapéu disfarçadamente, como era costume...

— Disfarçadamente?

— Sim, era um gesto que fazia...

— E ainda faz esse gesto?

— Naquele dia fez, mas sem se demorar nada. Antigamente, era capaz de comprar ainda que fosse uma boneca, só para ver-me mais tempo.. Agora... E até já nem passa lá por casa!

— Talvez passe nas horas em que você não está à janela.

— Há dias, em que estou a tarde inteira, não contando os domingos e dias santos.

Calou-se, calaram-se. Estavam em casa de Alberta, e ouviram um som de caixa de rufo e marcha de tropa. Que coisa mais adequada que fazer uma alusão ao Miranda e perguntar quando voltaria? Finoca preferiu falar do Macedo, agarrando as mãos à amiga:

— É uma coisa que não posso explicar, mas agora gosto dele; parece-me, não digo que goste de verdade; parece-me...

Alberta cortou-lhe a palavra com um beijo. Não era de Judas, porque sinceramente Alberta quis assim pactuar com a amiga a entrega do noivo e o casamento. Mas quem descontaria aquele beijo, em tais circunstâncias? Verdade é que o tenente estava em S. Paulo, e escrevia; mas, como Alberta perdesse alguns correios e explicasse o fato pela necessidade de não descobrir a correspondência, ele já escrevia menos vezes, menos copioso, menos ardente, coisa que uns justificariam pelas cautelas da situação e pelas obrigações de ofício, outros por um namoro de passagem que ele trazia no bairro da Consolação. Foi, talvez, este nome que levou o namorado de Alberta a freqüentá-lo; achou ali uma menina, cujos olhos, mui parecidos com os da moça ausente, sabiam fitar com igual tenacidade. Olhos que não deixam vestígio; ele recebeu-os e mandou os seus em troca — tudo pela intenção de mirar a outra, que estava longe, e pela idéia de que o nome do bairro não era casual. Um dia escreveu-lhe, ela respondeu; tudo consolações! Justo é dizer que ele suspendeu a correspondência para o Rio de Janeiro — ou para não tirar o caráter consolador da correspondência local, ou para não gastar todo o papel.

Quando Alberta notou que as cartas tinham cessado de todo, sentiu em si indignação contra o vil, e desligou-se da promessa de casar com ele. Casou três meses depois com outro, com o Macedo — aquele Macedo — o idiota Macedo. Pessoas que assistiram ao casamento, dizem que nunca viram noivos mais risonhos nem mais felizes.

Ninguém viu Finoca entre os convidados, o que fez pasmar as amigas comuns. Uma destas observou que Finoca, desde o colégio, fora sempre muito invejosa. Outra disse que estava fazendo muito calor, e era verdade.

Fonte: pt.wikisource.org

QUEM CONTA UM CONTO

Capítulo I

Eu compreendo que um homem goste de ver brigar galos ou de tomar rapé. O rapé dizem os tomistas[1] que alivia o cérebro. A briga de galos é o Jockey Club dos pobres. O que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.

E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa singular vocação? O noveleiro[2] não é tipo muito vulgar, mas também não é muito raro. Há família numerosa deles. São mais peritos e originais que outros. Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho, quero dizer as mesmas que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.

Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que nenhum noveleiro confessa que o é, tem impedido a realização deste meu desejo. Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito humano.

O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.

Capítulo II

Há coisa de sete anos, vivia nesta boa cidade um homem de seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.

Era um modelo do gênero.

Sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira como quem tira uma moeda de vintém para dar a um mendigo. Não, senhor.

Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente que o Ministério[1] pedira demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo molho para torná-la mais picante.

Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes e, se entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o silêncio causado pela sua entrada para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:

—Então, parece que os homens...

Os circunstantes perguntavam logo:

—Que é? Que há?

Luís da Costa, sem perder o seu ar sério, dizia singelamente:

—É o Ministério que pediu demissão.

—Ah! Sim? Quando?

—Hoje.

—Sabem quem foi chamado?

—Foi chamado o Zózimo.

—Mas por que caiu o Ministério?

—Ora, estava podre.

Etc. etc.

Ou então:

—Morreram como viveram.

—Quem? Quem? Quem?

Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:

—Os ministros.

Suponhamos, agora, que se tratava de uma pessoa qualificada que devia vir no paquete[2]: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck.

Luís da Costa entrava, cumprimentava silenciosamente a todos, e em vez de dizer com simplicidade:

—Veio no paquete hoje o príncipe de Bismarck.

Ou então:

—O Thiers chegou no paquete.

Voltava-se para um dos circunstantes:

—Chegaria o paquete?

—Chegou, dizia o circunstante.

—O Thiers veio?

Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com que se deliciava Luís da Costa, razão principal de seu ofício.

Capítulo III

Não se pode negar que este prazer era inocente e, quando muito, singular.

Infelizmente, não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? Perguntava o poeta de Jovem Cativa, e eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro.

Luís da Costa experimentou, um dia, as asperezas de seu ofício.

Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja de Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado como homem que vem pejado de alguma notícia. Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois, olhou para todos, e soltou secamente estas palavras:

—Então, fugiu a sobrinha do Gouveia? disse ele, rindo.

—Que Gouveia? disse um dos presentes.

—O major Gouveia, explicou Luís da Costa.

Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.

—O major Gouveia da Cidade Nova? perguntou o desconhecido ao noveleiro.

—Sim, senhor.

Novo e mais profundo silêncio.

Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de queimar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do major ao casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima de moinhos.

O silêncio era sepulcral.

O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão.

Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:

—E quando foi esse rapto?

—Hoje de manhã.

—Oh!

—Das 8 para as 9 horas,

—Conhece o major Gouveia?

—De nome.

—Que idéia forma dele?

—Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a moça é muito bonita...

—Conhece-a?

—Ainda ontem a vi.

—Ah! A segunda circunstância...

—A segunda circunstância é a crueldade de certos homens de certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que se trata dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o major impedi-lo?

—O major tinha razões fortes, observou o desconhecido.

—Ah! Conhece-o?

—Sou eu.

Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois sem saber que iria sair dali. Deste modo, correram cinco minutos.

Capítulo IV

No fim de cinco minutos, o major Gouveia continuou:

—Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze dias se acha em Juiz de Fora.

Luís da Costa ficou amarelo.

—Por essa razão ouvi tranqüilamente a história que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu ontem...

Luís da Costa tornou-se verde.

—A notícia, entretanto pode ter-se espalhado, continuou o major Gouveia, e eu desejo liquidar o negócio, pedindo-lhe que me diga quem a ouviu...

Luís da Costa ostentou todas as cores do íris[1].

—Então? disse o major, passados alguns instantes de silêncio.

—Sr. major, disse com voz trêmula Luís da Costa, eu não podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente, alguém me contou.

—É justamente o que eu desejo saber.

—Não me lembro...

—Veja se se lembra, disse o major com doçura.

Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que lhe contara a história do rapto.

As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o major, que não era homem de graças, insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a respeito do inventor da balela.

—Ah! Agora me lembra, disse de repente o Luís da Costa, foi o Pires.

—Que Pires?

—Um Pires que eu conheço muito superficialmente.

—Bem, vamos ter com o Pires.

—Mas, sr. major...

O major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com um ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís da Costa se levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o gesto do major, não sem tentar ainda um:

—Mas, sr. major...

—Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal Pires?

—Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.

—Vamos ao escritório.

Luís da Costa cortejou os outros e saiu ao lado do major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. O major recusou o charuto, dobrou o passo e os dois seguiram na direção da Rua dos Pescadores.

Capítulo V

—O sr. Pires?

—Foi à Secretaria de Justiça.

—Demora-se?

—Não sei.

Luís da Costa olhou para o major ao ouvir estas palavras do criado do sr. Pires. O major disse fleumaticamente:

—Vamos à Secretaria de Justiça.

E ambos foram a trote largo na direção da Rua do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às garras do major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos, é provável que o major o levasse até lá antes do jantar.

Tudo estava perdido.

Chegaram enfim à Secretaria, bufando como dois touros. Os empregados vinham saindo, e um deles deu a notícia certa do esquivo Pires; disse-lhe que saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.

—Voltemos à Rua dos Pescadores, disse pacificamente o major.

—Mas, senhor...

A única resposta do major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.

Luís da Costa ia furioso. Começava a compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de estrangular o major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror de si mesmo.

O major, porém, continuava a andar com aquele passo rápido dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente impossível apostar carreira com ele.

Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte do escritório do sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.

O major Gouveia mostrou-se aborrecido com o fato; como era homem resoluto, depressa se consolou do incidente:

—Não há dúvida, disse ele, iremos à Praia Grande.

—Isso é impossível! clamou Luís da Costa.

—Não é tal, respondeu tranqüilamente o major, temos barca e custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.

—Mas, senhor, a esta hora...

—Que tem?

—São horas de jantar, suspirou o estômago de Luís da Costa.

—Pois jantaremos antes.

Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia do major era extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era impossível livrar-se dela; Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a sopa e o primeiro prato foram o começo da reconciliação. Quando veio o café e um bom charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer seu anfitrião em tudo o que lhe aprouvesse.

O major pagou a conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se à imperial cidade.

No trajeto, o major Gouveia conservou-se tão taciturno como até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou atar conversa com o major; mas foram esforços inúteis. Ardia entretanto por levá-lo até a csa do sr. Pires, que explicaria as coisas como soubesse.

Capítulo VI

O sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do dr. Oliveira, em S. Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.

O major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:

— Vamos a S. Domingos.

— Vamos a S. Domingos, suspirou Luís da Costa.

A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.

Na casa do dr. Oliveira, passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir.

Enfim vieram.

— Está o sr. Pires?

— Está, sim, senhor, disse o moleque. Os dois respiraram.

O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires, l'introuvable[1].

Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão a Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente ao major Gouveia.

— Queiram sentar-se.

— Perdão, disse o major, não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.

O sr. Pires curvou a cabeça e esperou.

O major voltou-se então para Luís da Costa e disse:

— Fale.

Luís da Costa fez das tripas coração e exprimiu-se nestes termos:

— Estando eu hoje na loja do Paulo Brito contei a história do rapto de uma sobrinha do sr. major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta, contudo, chegar à fonte da notícia e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu, então, procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim, encontramo-lo.

Durante este discurso, o rosto do sr. Pires apresentou todas as modificações do espanto e do medo. Um ator, um pintor, ou um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três ou quatro minutos.

— Espero as suas ordens, disse o major, vendo que o homem não falava.

— Mas, que quer o senhor? balbuciou o sr. Pires.

— Quero que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?

— Não lhe disse tal, acudiu o sr. Pires; o que eu disse foi que me constava ser bonita.

— Vê? disse o major, voltando-se para Luís da Costa.

Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto.

O major dirigiu-se, depois, ao sr. Pires:

— Mas vamos lá, disse; de quem ouviu a notícia?

— Foi de um empregado do tesouro.

— Onde mora?

— Em Catumbi.

O major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.

— Pode retirar-se, disse o major; não é mais preciso aqui.

Luís da Costa não esperou mais: apertou a mão do sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa, e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.

Estava livre.

Capítulo VII

Ficaram sós o major e o sr. Pires.

— Agora, disse o primeiro, há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do Tesouro...como se chama?

— O bacharel Plácido.

— Estou às suas ordens; tem passagem e carro pagos.

O sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:

— Mas eu não sei...se...

— Se?

— Não sei se me é possível nesta ocasião...

— Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.

— Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...

— O quê?

— Adiar?

— Impossível.

O sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.

— Acredite, sr. major, disse ele concluindo, que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.

O major inclinou-se.

O sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução.

A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O major parecia uma estátua; não falava e raras vezes olhava para o seu companheiro.

A razão foi compreendida pelo sr. Pires, que matou as saudades do voltarete, fumando sete cigarros por hora.

Enfim, chegaram a Catumbi.

Desta vez, foi o major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.

O bacharel Plácido era seu próprio nome feito homem. Nunca, a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido verdadeiramente plácido.

O sr. Pires explicou o objeto da visita.

— É verdade que eu lhe falei de um rapto, disse o bacharel, mas não foi nos termos em que o senhor repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia do projeto de rapto.

— E quem lhe disse isso, sr. bacharel? Perguntou o major.

— Foi o capitão de artilharia Soares.

— Onde mora?

— Ali em Mataporcos.

— Bem, disse o major,

E voltando-se para o sr. Pires:

— Agradeço-lhe o incômodo, disse; não lhe agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar até a estação das barcas.

O sr. Pires não esperou novo discurso; despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro, deu dois ou três socos em si mesmo e fez solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa:

— É bem feito, dizia o sr. Pires; quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito descansado e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!

Capítulo VIII

O bacharel Plácido encarou o major, sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou que o major o esclarecesse. Logo que o sr. Pires saiu da sala, disse ele:

— Queira agora acompanhar-me à casa do capitão Soares.

— Acompanhá-lo! exclamou o bacharel mais surpreendido do que se lhe caísse o nariz no lenço de tabaco.

— Sim, senhor.

— Que pretende fazer?

— Oh! nada que o deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.

O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias para ir a Mata-porcos era um absurdo. A nada atendia o major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.

— Mas há de confessar que é longe, observou este.

— Não seja essa a dúvida, acudiu o outro; mande chamar um carro que eu pago.

O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.

— Então? disse o major ao cabo de algum tempo de silêncio.

— Refleti, disse o bacharel; é melhor irmos a pé; eu jantei há pouco e preciso digerir. Vamos a pé...

— Bem, estou às suas ordens.

O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o major, com as mãos nas costas, passeava na sala meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.

Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala, quando o major ia já tocar a campainha para chamar alguém.

— Pronto?

— Pronto.

— Vamos!

— Deus vá conosco.

Saíram os dois na direção de Mata-porcos.

Se uma pipa andasse seria o bacharel Plácido; já porque a gordura não lho consentia, já porque desejara pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava: arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.

Com este era impossível o major empregar o sistema de reboque que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do braço.

Tudo isto punha o major em apuros. Se visse passar um carro, tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento, os fregueses.

O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o major batia palmas na escada.

— Quem é? perguntou uma voz açucarada.

— O sr. capitão? disse o major Gouveia.

— Eu não sei se já saiu, respondeu a voz; vou ver.

Foi ver, enquanto o major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a gentileza:

— O senhor quem é?

— Diga que é o bacharel Plácido, acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.

A voz foi dar a resposta e daí a dois minutos voltou a dizer que o bacharel Plácido podia subir.

Subiram os dois.

O capitão estava na sala e veio receber à porta o bacharel e o major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.

— Queiram sentar-se.

Sentaram-se.

Capítulo IX

— Que mandam nesta sua casa? perguntou o capitão Soares.

O bacharel usou da palavra:

— Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do sr. major Gouveia.

— Não me lembra; que foi? disse o capitão com uma cara tão alegre como a de homem a quem estivessem torcendo um pé.

— Disse-me você, continuou o bacharel Plácido, que o namoro da sobrinha do sr. major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...

— Perdão! interrompeu o capitão. Agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.

— Não foi?

— Não.

— Então que foi?

— O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. S. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.

— Sim, há alguma diferença, concordou o bacharel.

— Há, disse o major deitando-lhe os olhos por cima do ombro.

Seguiu-se um silêncio.

Foi o major Gouveia o primeiro que falou.

— Enfim, senhores, disse ele, ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o sr. capitão dizer-me a quem ouviu isso?

— Pois não, disse o capitão; ouvi-o ao desembargador Lucas.

— É meu amigo!

— Tanto melhor.

— Acho impossível que ele dissesse isso, disse o major levantando-se.

— Senhor! exclamou o capitão.

— Perdoe-me, capitão, disse o major caindo em si. Há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado por culpa de um amigo...

— Nem ele disse por mal, observou o capitão Soares. Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa...

— É verdade, concordou o major. O desembargador não era capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.

— É provável.

— Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.

— Agora!

— É indispensável.

— Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?

— Sei; iremos de carro.

O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.

— Não podíamos adiar isso para depois? perguntou o capitão logo que o bacharel saiu.

— Não, senhor.

O capitão estava em sua casa; mas o major tinha tal império na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão ceder.

Preparou-se, meteram-se num carro e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.

O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.

Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que em menos de uma hora lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava... figuradamente falando, e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.

O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes.

— Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.

— Vamos, tenha paciência, dizia-lhe o coadjutor. Vá, vá ver o que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção corrija a sorte dos dados.

— Tem razão, é possível, concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.

Capítulo X

Na sala teve a surpresa de achar dois conhecidos.

O capitão levantou-se sorrindo e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O major levantou-se também, mas não sorria.

Feitos os cumprimentos foi exposta a questão. O capitão Soares apelou para a memória do desembargador a quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do major Gouveia.

— Recordo-me ter-lhe dito, respondeu o desembargador, que a sobrinha de meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro...

O major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia a diminuir à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.

— Muito bem, disse ele; a mim não basta esse dito; desejo saber a quem ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.

— A quem o ouvi?

— Sim.

— Foi ao senhor.

— A mim!

— Sim, senhor; sábado passado.

— Não é possível!

— Não se lembra que me disse na Rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...

— Ah! mas não foi isso! exclamou o major. O que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar a minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.

— Nada mais? perguntou o capitão.

— Mais nada.

— Realmente é curioso.

O major despediu-se do desembargador, levou o capitão até Mata-porcos e foi direito para casa praguejando contra si e todo o mundo.

Ao entrar em casa estava já mais aplacado. O que o consolou foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:

— Quem conta um conto...

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