CONTOS DE MACHADO DE ASSIS: O DESTINADO e O PAI
O DESTINADO
Ao entrar no carro, cerca das quatro horas da manhã, Delfina trazia consigo uma preocupação grave, que eram ao mesmo tempo duas. Isto pede alguma explicação. Voltemos à primeira valsa.
A primeira valsa que Delfina executou no salão do coronel foi um puro ato de complacência. O irmão dela apresentou-lhe urn amigo, o bacharel Soares, seu companheiro de casa no último ano da academia, uma pérola, um talento, etc. Só não acrescentou que era dono de um rico par de bigodes, e aliás podia dizê-lo sem mentir nem exagerar nada. Curvo, gracioso, com os bigodes espetados no ar, o bacharel Soares pediu à moça uma roda de valsa; e esta, depois de três segundos de hesitação, respondeu que sim. Por que hesitação? Por que complacência? Voltemos à primeira quadrilha.
Na primeira quadrilha o par de Delfina fora outro bacharel, o bacharel Antunes, tão elegante como o valsista, embora não tivesse o rico par de bigodes, que ele substituía por um par de olhos mansos. Delfina gostou dos olhos mansos; e, como se eles não bastassem a dominar o espírito da moça, o bacharel Antunes juntava a esse mérito o de uma linguagem doce, canora, todas as seduções da conversação . Em poucas palavras, acabada a quadrilha, Delfina achou no bacharel Antunes os característicos de um namorado.
— Agora vou sentar-me um pouco, disse-lhe ela depois de passear alguns minutos.
O Antunes acudiu com uma frase tão piegas, que não a ponho aqui para não desconcertar o estilo; mas, realmente, foi cousa que deu à moça uma idéia avantajada do rapaz. Verdade é que Delfina não tinha o espírito muito exigente; era um bom coração, excelente índole, educada a primor, amiga de bailar, mas sem largos horizontes intelectuais: — quando muito, um pedaço de azul visto da janela de um sótão.
Contentou-se, portanto, com a frase do bacharel Antunes, e sentou-se pensativa. Quanto ao bacharel, ao longe, defronte, conversando aqui e ali, não tirava os olhos da bela Delfina. Gostava dos olhos dela, dos seus modos, elegância, graça...
— É a flor do baile, dizia ele a um parente da família.
— A rainha, emendou este.
— Não, a flor, teimou o primeiro; e, com um tom adocicado: — Rainha dá idéia de domínio e imposição, ao passo que a flor traz a sensação de uma celeste embriaguez de aromas.
Delfina, logo que teve notícia desta frase, declarou de si para si que o bacharel Antunes era um moço de grande merecimento, e um digníssimo marido. Note-se que ela partilhava a mesma opinião acerca da distinção entre rainha e flor; e, posto aceitasse qualquer das duas definições, todavia achou que a escolha da flor, e a sua explicação eram obra acertada e profundamente subtil.
Ora, em tais circunstancias, é que o bacharel Soares pediu-lhe uma valsa. A primeira valsa era sua intenção dá-la ao bacharel Antunes; mas ele não apareceu então, ou porque estivesse no buffet, ou porque realmente não gostasse de valsar. Que remédio senão dá-la ao outro? Levantou-se, aceitou o braço do par, ele cingiu-lhe delicadamente a cintura, e ei-los no turbilhão. Pararam daí a pouco; o bacharel Soares teve a delicada audácia de lhe chamar sílfide.
— Na verdade, acrescentou ele, é valsista de primeira ordem.
Delfina sorriu, com os olhos baixos, não espantada do cumprimento, mas satisfeita de o ouvir. Deram outra volta, e o bacharel Soares, com muita delicadeza, repetiu o elogio. Não é preciso dizer que ele a conchegava ao corpo com certa pressão respeitosa e amorosa ao mesmo tempo. Valsaram mais, valsaram muito, ele dizendo-lhe cousas amáveis ao ouvido, ela escutando-o corada e delirante...
Aí está explicada a preocupação de Delfina, aliás duas, porque tanto os bigodes de um como os olhos mansos do outro iam com ela dentro do carro, às quatro horas da manhã. A mãe achou que ela estava com sono; e Delfina explorou o erro, deixando cair a cabeça para trás, cerrando os olhos e pensando nos dous namorados. Sim, dous namorados. A moça tentava sinceramente escolher um deles, mas o preterido sorria-lhe com tanta graça que era pena deixá-lo; elegia então esse, mas o outro dizia-lhe cousas tão doces, que não mereciam tal desprezo. O melhor seria fundi-los ambos, unir os bigodes de um aos olhos de outro, e meter esse conjunto divino no coração; mas como? Um era um, outro era outro. Ou um, ou outro.
Assim entrou ela em casa; assim recolheu-se aos aposentos. Antes de se despir, deixou-se cair em uma cadeira, com os olhos no ar! tinha a alma longe, dividida em duas partes, uma parte nas mãos de Antunes, outra nas de Soares. Cinco horas! era tempo de repousar. Delfina começou a despir-se e despentear-se, lentamente, ouvindo as palavras do Antunes, sentindo a pressão do Soares, encantada, cheia de uma sensação extraordinária. No espelho, pareceu-lhe ver os dous rapazes, e involuntariamente voltou a cabeça; era ilusão! Enfim, rezou, deitou-se, e dormiu.
Que a primeira idéia da donzela, ao acordar, fosse para os dous pares da véspera, nada há que admirar, desde que na noite anterior, ou velando ou sonhando, não pensou em outra cousa. Assim ao vestir, assim ao almoçar.
— Fifina ontem conversou muito com um moço de bigodes grandes, disse uma das irmãzinhas.
— Boas! foi com aquele que dançou a primeira quadrilha, emendou a outra irmã.
Delfina zangou-se; mas vê-se que as pequenas acertaram. Os dous cavalheiros tinham tomado conta dela, do seu espírito, do seu coracão; a tal ponto que as pequenas deram por isso. O que se pergunta é se o fato de um amor assim duplo é possível; talvez que sim, desde que não haja saído da fase preparatória, inicial; e esse era o caso de Delfina. Mas enfim, cumpria escolher um deles.
Devine, si tu peux, et choisis, si tu l'oses.
Delfina achou que a eleição não era urgente, e fez um cálculo que prova da parte dela certa sagacidade e observação; disse consigo que o próprio tempo excluiria o condenado, em proveito do destinado. "Quando eu menos pensar, disse ela, estou amando deveras ao escolhido."
Escusado é acrescentar que não disse nada ao irmão, em primeiro lugar porque não são cousas que se digam aos irmãos, e em segundo lugar porque ele conhecia um dos concorrentes. Demais, o irmão, que era advogado novo, e trabalhava muito, estava nessa manhã tão ocupado no gabinete, que nem veio almoçar.
— Está com gente de fora, disse-lhe uma das pequenas.
— Quem é?
— Um moço.
Delfina sentiu bater-lhe o coração. Se fosse o Antunes! Era cedo, é verdade, nove horas apenas; mas podia ser ele que viesse buscar o outro para almoçar. Imaginou logo um acordo feito na véspera, entre duas quadrilhas, e atribuiu ao Antunes o plano luminoso de ter assim entrada na família...
E foi, foi, devagarinho, até à porta do gabinete do irmão. Não podia ver de fora; as cortinas ficavam naturalmente por dentro. Não ouvia falar, mas um ou outro rumor de pés ou de cadeiras. Que diabo! Teve uma idéia audaciosa: empurrar devagarinho a porta e espiar pela fresta. Fê-lo; e que desilusão! viu ao lado do irmão um rapaz seco, murcho, acanhado, sem bigodes nem olhos mansos, com o chapéu nos joelhos, e um ar modesto, quase pedinte. Era um cliente do jovem advogado. Delfina recuou lentamente, comparando a figura do pobre-diabo com a dos dous concorrentes da véspera, e rindo da ilusão. Por que rir? Cousas de moça. A verdade é que ela casou daí a um ano justamente com o pobre-diabo. Leiam os jornais do tempo; lá está a notícia do consórcio, da igreja, dos padrinhos, etc. Não digo o ano, porque eles querem guardar o incógnito, mas procurem que hão de achar.
Fonte: pt.wikisource.org
O PAI
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1866
O pai vivia de hortelão; a filha vivia da costura; ambos viviam de uma esperança no futuro e de uma reparação do passado.
Tinha cinqüenta anos o pai. Os cabelos brancos caíam-lhe em flocos da cabeça como uma cascata e davam realce ao rosto severo, enérgico, mas ao mesmo tempo cheio de uma dor profunda e resignada. Os anos o tinham curvado um pouco; mas era esse o único vestígio do tempo. Os cabelos brancos e algumas rugas da cara tinham-lhe aparecido em poucos dias, não gradualmente, por uma transformação rápida, como se ali passasse um vento maldito e destruidor.
Os olhos profundos, serenos, perscrutadores, pousavam em alguém como se foram os olhos da consciência; e ninguém os sofria por muito tempo, tal era a magia deles.
Tinha a franqueza, sem ter a intimidade; não oferecia a casa a ninguém nem ia à casa alheia em ocasião alguma. Tinha fé nos homens, mas não a fé da credulidade cega; era uma fé que examinava, perscrutava, esmerilhava, não se fiava nas aparências, não se deixava fascinar pelos primeiros aspectos; quando acreditava em um homem tinha-lhe analisado o coração.
E, ainda assim, ninguém poderia contar a glória de lhe haver atravessado a soleira da porta. Dali para dentro não era já o mundo; era um lugar de penitência e de trabalho, onde nenhum olhar estranho podia penetrar; e, se nem o olhar, muito menos o pé.
Duas criaturas únicas viviam ali, naquele ermo, contentes uma da outra, vivendo uma pela outra, aliadas ambas no serviço de um juramento de honra, de um dever de consciência: o pai e a filha.
A filha estava no verdor dos anos; vinte contava; vinte flores a julgar pela beleza e pela graça que a distinguiam; vinte lágrimas a julgar pela tristeza e pela resignação que de toda a sua figura ressumbrava.
Triste e resignada, como era, tinha no rosto impressa a consciência de uma missão que desempenhava; a coragem de um dever que cumpria. O trabalho ainda não pudera murchar a flor da beleza nem diminuir-lhe a exuberância da vida; mas via-se que o olhar dela reproduzia um cuidado exclusivo, e que, nesse cuidado, deixava correr os dias sem se lhe dar nem da vida nem da beleza.
Por quê?
Esta pergunta de natural curiosidade e legítima admiração era a que sempre fazia um poeta, não um poeta moço, mas um poeta velho, um poeta de cinqüenta anos, vizinho daquela família singular.
Não menos que aos outros, fizera impressão ao poeta aquela existência solitária, silenciosa, próxima talvez de Deus, mas com certeza arredada do mundo.
O poeta não era menos solitário que os dois, e para isso era poeta velho; isto é, tinha o direito de conversar com o mundo de Deus como poeta, e tinha o dever de conversar o menos possível com o mundo dos homens, como velho. Na idade a que chegara pôde conservar o viço da impressão e o desgosto das coisas mundanas; fora um dos enteados da glória, não encontrando para os auspícios de sua musa mais do que um eco vão e negativo. Isolou-se, em vez de falar no mundo com a língua que Deus lhe dera, voltou-se para Deus, para dizer, como Davi: “.
Tinha dois livros: a Bíblia e Tasso; dois amigos: um criado e um cão. O criado chamava-se Elói; Diógenes chamava-se o cão, que era a terceira pessoa daquela trindade solitária.
Muito tempo, meses, anos, viveram estas duas famílias, metidas no seu isolamento, sem se conhecerem, sem se falarem, vizinhas uma de outra, ambas parecendo tão próprias para formar uma só.
O hortelão saia poucas vezes; trabalhava desde a alva até o ocaso, ao lado da filha, que igualmente trabalhava nas suas obras de costura. Quando acontecia sair o pai, a casa, se era silenciosa, tomava aspecto tumular, e então nem um som saía dali de dentro.
Ora, um dia em que todos estavam em casa, aconteceu andar o poeta e mais o cão a passear no jardim que confinava com a chacarinha do hortelão.
O poeta ia cismando, mais ermo de si do que nunca, quando deu por falta do cão; Diógenes tinha passado para a horta do hortelão atraído não sei por quê; o poeta chamou por ele, aproximou-se da pequena cerca e viu o vizinho ocupado em amimar Diógenes.
— Ah!
O hortelão voltou-se e deu com o poeta.
— Tinha saltado para cá...
— É um travesso. Fez-lhe mal às plantações?
— Oh! não!
— Diógenes!
O cão saltou a cerca e foi fazer festas ao dono. O poeta e o hortelão cumprimentaram-se e nada mais se passou naquele dia entre ambos.
Tal foi o primeiro encontro entre os dois vizinhos.
Mas este encontro trouxe outros, e a conformidade da vida e dos sentimentos dos dois velhos completou uma intimidade que dentro de pouco tempo se tornou perfeita.
Era o primeiro a quem o velho hortelão tinha aberto completamente a sua alma e a sua vida. Ainda assim, só o fez depois que uma longa observação trouxe-lhe em resultado o conhecimento da existência retirada do poeta.
Só tarde soube este que o vizinho tinha uma filha, uma linda e infeliz filha, no dizer do próprio pai. Isto equivale a dizer que, apesar da mesma vitória alcançada pelo poeta no espírito do hortelão, ainda não tinha conseguido transpor a soleira da casa deste.
Assim era. As conversas dos dois velhos, nas horas vagas, eram em casa do poeta, sendo o operário o mais solicitado para essas práticas mansas e intimas.
É necessário, para comodidade da narração, dar a cada um dos personagens desta história um nome. Será o do poeta: Davi; o do hortelão: Vicente; o da filha deste: Emília.
Davi, portanto, convidava Vicente muitas vezes para ir matar com ele algumas horas aborrecidas depois do trabalho. Vicente acedia a esses desejos, ao princípio por simpatia e conformidade da existência e idade, depois por ver a conformidade dos sentimentos e do profundo desgosto que ambos pareciam ter, finalmente por motivo de uma verdadeira e profunda amizade.
Ora, uma tarde, em que ambos se achavam juntos, o poeta Davi dirigiu a Vicente estas palavras:
— Meu amigo, quero merecer de ti uma prova de confiança.
— Qual?
— Não cuide que a sua existência, tão separada do mundo como a minha, deixe de me ter feito impressão. Já lhe disse em poucas palavras como, tendo perdido as minhas ilusões literárias, e, o que valia mais, tendo perdido um anjo que Deus me deparou por mulher, vim viver, neste cantinho, disposto a não pedir nem dar nada aos homens. Se alguma coisa me ficou ainda por contar, é esta da natureza daquelas que a memória e o coração nem procuram conservar. Dessas não peço que me contes, se as tens; mas daquilo que é lícito saber, declaro que teria desejo de que me comunicasses, na plena confiança do coração. És capaz?
— Oh! não vale a pena.
— Não é possível; alguma coisa há na tua vida que merece a atenção de quem sabe olhar para estas coisas...
— Afirmo-lhe que...
— É escusado negar. E por que negar? Se não tens confiança, dize logo. É melhor entre velhos. Entre velhos! Se há alguma ocasião em que duas almas puras devem comunicar as desilusões do passado e as crenças do futuro... o futuro de além-túmulo, é agora; é quando, chegados ao cume da montanha, deitamos um último olhar para o caminho que subimos e fixamos tranqüilamente o abismo que vamos caminhar mais rapidamente.
— Pois sim: essa confiança de que falas, não te nego que sinto por ti. É verdade. O que te vou contar ainda ninguém o ouviu de minha boca. És a primeira pessoa. Quero até que a tua aprovação, se eu a tiver, seja uma animação para o que ainda tenho de lutar.
— Lutar?
— É verdade. E muito. Mas não antecipemos nada. Hoje não pode ser.
— Quando?
— Domingo.
— Que dia é hoje?
— Sexta-feira.
— Pois bem; domingo.
— Sem falta. É dia livre.
Separaram-se os dois.
No domingo, com efeito, reuniram-se os dois amigos em casa de Davi, e Vicente contou ao poeta as circunstâncias da situação e os episódios que o levaram a ela.
Esses episódios e essas circunstâncias podem resumir-se do seguinte modo: Quatro anos antes viviam em outra parte Vicente e a filha, felizes, contentes, esperançosos; ela com os seus dezesseis anos; ele com o emprego público que lhe dava para manter a casa, e no qual esperava uma favorável aposentadoria. Viviam muito menos solitários do que hoje; então tinham amizades em grande número, faziam e recebiam visitas, entravam como podiam no movimento e na vida. O que Vicente previa era o casamento de Emília. Emília era bonita e requestada; estava nos seus dezesseis anos; Vicente, como pôde, quis encaminhar o espírito da filha de modo tal que nem lhe sugerisse ambições desmarcadas nem desarrazoadas pretensões.
Entre os que freqüentavam a casa de Vicente, havia um rapaz de nome Valentim, cujo coração estava em perfeita harmonia com uma fisionomia meiga e suave. Foi ao menos essa a primeira impressão de Vicente e de Emília. Quem era Valentim? Ninguém o soube nunca. O que ele dizia é que morava em casa de um parente. Mas quem fosse esse parente sempre foi para todos um mistério.
As previsões de Vicente realizaram-se; Emília não pôde ver Valentim sem amá-lo, não com amor das loureiras, mas o amor dos corações feitos para amar, isto é, aspirar as glórias e os gozos infinitos.
Imagine-se o que seria este amor nascido em um coração virgem, novo, ardente, inspirado por um rapaz belo, insinuante e apaixonado; um amor que parecia ter conduzido de extremos opostos aquelas duas criaturas para ligá-las em um sentimento único, exclusivo, absoluto.
Desde os primeiros dias o amor de Valentim e Emília não pôde ser um segredo para Vicente, tal foi a violência com que duas almas se arrojaram uma para a outra.
Vicente era homem prudente; sem contrariar os sentimentos da filha, quis ver até onde Valentim merecia o presente que a sorte lhe deparara.
Das investigações resultou para o espírito de Vicente o mais completo assentimento à união dos dois namorados.
Resolvido a isso, entendeu que mostrar-se ignorante por mais tempo era prolongar uma situação esquecida para os dois e um cuidado para o seu espírito de pai.
Dizer francamente a Emília que ele sabia dos sentimentos que a ligavam a Valentim, era, ao parecer do pai, encaminhar para os dois corações o complemento da felicidade sem hesitações nem mortificações íntimas.
Pensando assim, Vicente foi diretamente à filha e disse-lhe:
— Emília, nunca pensaste no casamento?
— Eu, meu pai?
— Sim, tu.
— Que pergunta, meu pai!
— É uma pergunta. Responde.
— Nunca!
— Ora, para que dizes isso assim abaixando os olhos e ficando com as faces vermelhas? Anda lá, minha filha, tu já pensaste no casamento...
— Meu pai quer que eu lhe fale a verdade?
— Nunca se mente a um pai.
— Pois sim; já pensei no casamento.
— Ah... E...
— E?...
— E pensaste que eu mais dia menos dia havia de bater a bota e que tu ficavas sozinha no mundo.
— Oh! meu pai...
— Em tal caso, era preciso que o marido substituísse o pai... Ora, para substituir um pai como eu, é preciso um marido como eu fui... Que te disse teu coração?
— Não consultei...
— Não? É mentira...
— Disse...
— Valentim?
— É verdade, meu pai.
— Pois bem... Acho que fazes boa escolha. É um bom moço, ativo e que parece gostar de ti com extremo. O segredo nestas coisas seria agora uma hipocrisia sem nome. Melhor é que sejamos francos. Tu o amas e fazes bem. Se Valentim hesita em pedir-te em casamento, não o deixes nessa hesitação...
— Oh! obrigada, meu pai.
E Emília, deitando a cabeça no seio de Vicente, deixava correr pelas faces lágrimas de contentamento.
Na primeira ocasião em que Emília se encontrou a sós com Valentim disse-lhe que tinha razões para crer que seu pai não aceitaria mal uma proposta de casamento.
Valentim pareceu morrer de alegria com a notícia.
Todavia, passaram-se dois, três, cinco, dez dias, sem que Valentim dissesse nada nem a Emília nem a Vicente.
Emília insistiu.
— Creio que você não me ama, disse ela ao rapaz.
— Por quê, meu coração?
— Porque nem falou ainda a meu pai... Olhe, estou certa de que ele não aceitará mal o pedido...
— Concluis disto que te não amo?
— Pois então?
— Escuta, Emília, disse Valentim, quero proceder como cavalheiro e homem de juízo. Sabes que, como médico, não tenho um só doente a quem curar. Novo ainda, não tenho prática nem nomeada.
— Ah! disse a moça.
— Não me interrompas... Ouve: sendo assim, propor-me a ser teu marido é propor-me a fazer a tua desgraça, quando o que eu desejo neste mundo, mais do que a salvação, é fazer-te a mais feliz das mulheres... que fazer? Fui a um dos ministros e pedi-lhe um emprego... por estes dias serei despachado. Com ele posso ser teu marido, e sê-lo-ei, Emília, juro-te...
Estas palavras ditas no tom mais insinuante convenceram a rapariga. Um beijo, um só, mas casto, mas profundo, mas daqueles que fundem duas existências em uma só, terminou a conversação e selou o juramento.
Emília deu conta a seu pai dos projetos de Valentim. Vicente ouviu a narração de sua filha com a alma nadando em júbilo. Era aquilo mesmo que ele desejara ao marido de sua filha: a prudência, o tino, a dedicação.
A primeira vez em que Valentim entrou em casa, Vicente não se pôde ter; atirou-se-lhe aos braços.
— Muito bem, meu rapaz.
— Que é? perguntou Valentim, sem compreender.
— Muito bem. Vejo que és um homem honesto. Teus projetos mostram de tua parte que és o mais próprio marido que se podia escolher para minha filha... Queres que eu te chame meu filho?
— Meu pai! disse Valentim, deitando-se-lhe nos braços.
Desde então ficou assentado que Valentim, apenas empregado, casaria com Emília.
Foi deste modo romanesco, fora dos hábitos comuns, que se tratou o casamento da filha de Vicente.
Puseram-se todos a esperar o despacho de Valentim. Todavia, ou porque não houvesse ainda bom lugar a dar a Valentim, ou porque alguma estrela má perseguisse a família do pobre Vicente, o que é certo é que o despacho não apareceu ainda dois meses depois das cenas que narramos.
Valentim, quando se tratava disso em conversa, respondia ao seu futuro sogro e à futura mulher que o ministro costumava a afirmar-lhe que podia contar com o despacho, mas que deixasse esperar melhor ocasião.
E nessa expectativa andavam todos.
Mas os dias e os meses corriam.
Um dia entrou Valentim em casa da namorada dando gritos de grande contentamento:
— Que é isso? perguntou-lhe Vicente.
— Meu sogro, tudo está arranjado.
— Ah!
— Não saiu ainda o despacho, mas há de sair daqui a um mês.
— Ainda um mês!
— Todavia o ministro exige que durante este tempo eu vá à província de *** cumprir uma missão toda pessoal e não política. Não acha que devo ir?
— Deve...
— Não faço despesa alguma. Tudo corre por conta do ministro...
— Um mês! exclamou Emília.
— Um mês, é verdade.
— Tanto tempo!
— Depressa se passa. Coragem, minha... D. Emília.
Vicente ficou contente por ver que em breve se realizavam os seus desejos, e nesse sentido falou a Emília, dizendo-lhe que não se assustasse com a viagem de Valentim.
— Mas eu tenho medo de duas coisas.
— O que é? perguntou o namorado.
— O mar...
— Ora, o mar.
— E o esquecimento...
— O esquecimento!
— Jura?
— Pela mão de seu pai...
E Valentim beijou respeitosamente a mão de Vicente.
Depois, para expelir da cabeça de Emília as idéias que lhe haviam entrado, Valentim continuou a conversar com Vicente:
— Com que, então, disse ele, vamos ser colegas, empregados públicos...
— Ah! não... respondeu Vicente; este casamento dá-me duas aposentações: a de pai e a de empregado público.
— Ah! deixa a secretaria?
— Deixo; tenho já anos de serviços...
Separaram-se todos, e Valentim tratou de cuidar dos preparativos de viagem. As apreensões de Emília dissiparam-se às palavras brandas e persuasivas de Vicente, e no fim de oito dias a moça estava alegre e contente como dantes. Dai a três dias devia partir Valentim.
A alegria que por momentos voltara a Emília desaparecia nas vésperas da partida do vapor. Era natural. Emília passava as noites em claro, chorava, rezava a Deus, à Virgem, aos santos, para que a viagem fosse rápida e feliz, e sobretudo para que, sob a ação do novo clima, Valentim não se esquecesse dela. Na véspera da partida Valentim tomou chá em casa de Vicente; foi um chá triste e desconsolado. Vicente procurava alegrar a conversação, mas via-se que ele próprio estava contrafeito.
Às dez horas despediu-se Valentim, prometendo-lhe Vicente que iria no dia seguinte ao bota-fora do vapor.
Valentim e Emília tinham a voz cortada pelas lágrimas. O moço mal pôde beijar a mão à rapariga e fugir para a porta.
A moça desatou a chorar.
Vicente consolou-a como pôde, dizendo-lhe palavras de animação e dando-lhe mil garantias da rapidez da viagem e do amor de Valentim.
Às onze horas Emília retirou-se para o seu quarto.
Aí pôde chorar mais à vontade. Enquanto as lágrimas lhe corriam ela fazia forças para resistir à ausência.
Quando as lágrimas cessaram de correr, a moça dirigiu-se para um oratório em que havia um crucifixo de marfim, e ajoelhada pediu a Deus que favorecesse a viagem de Valentim.
Seus pensamentos elevaram-se puros a Deus como eram puras as palpitações do seu coração virgem e sinceramente apaixonado.
No meio das suas orações ouviu bater meia-noite.
Era tarde.
Levantou-se disposta a descansar e conciliar, se pudesse, o sono.
Mas um súbito rumor da parte da rua fê-la chegar à janela.
Não quis abrir e espiou pelas venezianas.
Recuou.
Tinha dado com os olhos no rosto de Valentim.
A janela abriu-se e Valentim apareceu aos olhos da moça...
A moça hesitou; recuou ainda, mas depois vencida por força interior, força inocente e amorosa, foi à janela e beijou a testa do amante.
— Obrigada, disse ela. Parece que te devia este beijo todo do coração...
Seguiu-se um momento de silêncio. Um olhar profundo, intenso, e reflexão do coração, prendeu aquelas duas almas por longos minutos.
Depois Valentim começou a beijar os cabelos e as mãos de Emília. Emília tinha uns belos olhos pretos que se escondiam sob os cílios ante as caricias do amante apaixonado.
Meia hora passou-se assim.
Só no fim desse tempo ocorreu a Emília perguntar onde estava apoiado Valentim.
Valentim apoiava-se numa escada leve e construída de modo a poder dobrar-se. É preciso acrescentar que o que facilitava esta escalada de Romeu era a solidão do lugar, cujo morador mais próximo estava a cem passos dali.
Valentim só reparou que estava fatigado quando esta pergunta lhe foi dirigida por Emília.
Então sentiu que tinha as pernas frouxas e ia sendo presa de uma vertigem.
Para não cair agarrou-se à janela.
— Ah! exclamou Emília.
E Valentim, não podendo segurar-se, julgou dever saltar para dentro.
E saltou.
A escada ficou pendente e oscilou um pouco pela impressão do movimento de Valentim.
A janela conservou-se aberta.
Estava uma noite linda, linda como aquelas em que os anjos parece que celebram no céu as festas do Senhor.
Valentim e Emília encostaram-se à janela.
— Amar-me-ás sempre? perguntou Emília fitando namorados e ciosos olhos no seu amante.
— Oh! sempre! disse Valentim.
— Não sei por quê, diz-me o coração que, uma vez passado o mar, hás de esquecer-me.
— Não digas isso, Emília, Emília, nunca te esquecerei, nem fora possível depois que jurei entre mim aceitar-te por mulher diante de Deus e dos homens. Mas se ainda uma vez queres que to jure...
— Por esta noite, por Deus que nos ouve?
— Sim.
Os dois olharam-se de novo com aquele olhar supremo em que os corações apaixonados sabem traduzir os seus sentimentos nas horas de maior exaltação.
Encostados à janela os dois amantes viram correr os meteoros do alto do céu até o horizonte, deixando após si um sulco luminoso que se apagava logo. A noite era das mais belas noites de verão.
O espírito suspeitoso de Emília achava, apesar dos juramentos reiterados de Valentim, ocasião para revelar as suas dúvidas.
Olhando tristemente a estrela que corria.
...Cette étoile qui file, Qui file, file et disparait,
A moça dizia baixinho:
— Quem sabe se, como esta estrela que desapareceu, não há de ser o amor dele, que nem ao menos lhe deixará no coração uma lembrança sequer, como esta estrela não deixa vestígios no céu?
— Sempre desconfiada, Emília.
— Ah! dizia ela como que acordando.
— Não te jurei já?
— Juraste... mas os pressentimentos...
— Criancice!
— Às vezes são avisos do céu.
— Contos da carochinha! Não te disse já que te amava?...
E um beijo longo, mais longo que o primeiro, uniu os lábios de Valentim aos de Emília.
A manhã veio surpreender Emília à janela. Estava só. Nem Valentim, nem a escada estavam ali.
Emília tinha as feições alteradas e os olhos vermelhos de chorar. Dissera-se a deusa da vigília vendo morrer no céu as últimas estrelas.
Quando ela reparou que era dita, já de há muito tinham as sombras da noite sido expelidas, e do oriente começavam a surgir os primeiros raios vivificantes do sol. Emília retirou-se para dentro.
Estava cansada. Mal pôde ir até o sofá. Ali lançou os olhos para um espelho que havia em frente e pôde ver a mudança do rosto e a desordem dos cabelos.
Então duas lágrimas correram-lhe pelas faces, e ela olhou para a janela como se ainda pudesse ver a imagem do amante.
Mas o cansaço e o sono venciam aquela fraca natureza. Quis resistir, não pôde. O espírito não podia mais sustentar aquela luta desigual.
Emília dirigiu-se para a cama e atirou-se a ela vestida como estava.
E adormeceu.
Quanto a Vicente, que dormira a noite inteira sem interrupção alguma, levantou-se às sete horas, tomou uma xícara de café, vestiu-se e saiu.
Antes de sair perguntou à mucama de Emília se estava acordada. Disse-lhe ela que não. Vicente deixou dito que ia ao bota-fora de Valentim.
E saiu, com efeito, com direção ao cais próximo para tomar um escaler e dai seguir para o vapor que devia partir às oito horas.
Valentim já lá estava.
Quando Vicente subiu à tolda, Valentim foi direito a ele para abraçá-lo.
O vapor estava prestes a largar.
O pouco tempo que havia foi empregado nas últimas despedidas e nos últimos protestos de amizade.
— Adeus, meu pai! disse Valentim. Até breve.
— Breve, deveras?
— Deveras.
— Adeus, meu filho!
Tal foi a despedida cordial, franca, sentimental. Vejamos agora o anverso da medalha.
Quando Vicente voltou para casa encontrou Emília de pé. Estava pálida e desfeita. Vicente foi a ela sorrindo.
— Não te entristeças tanto, disse-lhe, ele volta.
— Partiu, não?
— Agora mesmo.
Emília suspirou.
Vicente fê-la sentar ao pé de si.
Ora, vem cá, disse-lhe, se te entregas a essa dor, ficas magra, feia, e quando ele vier, em vez de eu lhe dar uma mulher refeita e bonita, dou-lhe uma que ele não deixou e que não era assim. Um mês depressa se passa e as lágrimas não fazem correr os dias mais depressa. Pelo contrário...
— Mas eu não choro, meu pai.
Choraste esta noite. Era natural. Agora consola-te e espera. Sim?
— Sim. Ele foi triste?
— Como tu. É outra criança. Nada de choros. Esperança e confiança. Ora bem...
Emília procurou rir, como podia, para consolar o pai; e durante os dias que se seguiram não foi encontrada a chorar uma só vez que fosse, nem os seus olhos apareciam vermelhos de chorar.
É certo que se alguém enfiasse um olhar pela fechadura da porta do quarto de Emília vê-la-ia todas as noites antes de deitar-se rezar diante do pequeno oratório e derramar lágrimas silenciosas.
Nesta hipocrisia de dor, durante o dia, e neste desafogo do coração durante a noite, passou Emília os primeiros quinze dias depois da partida de Valentim.
No fim de quinze dias chegou a primeira carta de Valentim. Era uma ladainha de mil protestos de que não se esquecera de ambos, e uma promessa formal que no fim do mês estaria de volta.
Esta carta foi lida, relida e comentada pela filha de Vicente.
Vicente, mais contente com essa carta pelo efeito salutar que produzira em Emília, resolveu fazer o que pudesse para acelerar o tempo e tornar menos sensível a ausência de Valentim.
Multiplicou e inventou passeios, visitas, jantares, distrações de toda a natureza.
Este meio produziu algum efeito. Os outros quinze dias correram mais depressa, e Emília chegou alegre ao último dia do mês da fatal separação.
Nesse dia devia chegar exatamente o vapor que trazia Valentim. Levantou-se a moça mais alegre e viva. Tinham-lhe voltado as cores às faces, a luz nos olhos. Era outra. E para ela os objetos exteriores, que até então tinham conservado um aspecto lúgubre, eram também outros. Tudo se fez risonho como o sol, que nesse dia apareceu mais vivificador.
Vicente levantou-se, abraçou a filha e preparou-se para ir a bordo buscar Valentim.
Emília suplicou-lhe que se não demorasse por motivo algum; que viesse logo, mal desembarcassem.
Vicente saiu depois de fazer esta promessa à filha. Emília ficou ansiosa esperando o pai e o noivo.
Infeliz. Daí a uma hora voltava o pai, triste, cabisbaixo, só. O noivo não o acompanhava.
— E ele, meu pai?
— Não veio.
— Não veio?
— Não.
— Nem uma carta?
— Nada. Mas é ainda cedo; pode haver cartas; porém mais tarde... É natural que escrevesse, é mesmo certo. Esperemos.
Emília desfez-se em prantos.
Mas Vicente consolou-a dizendo que tudo podia ter explicação; que naturalmente a missão a que fora Valentim o explicasse, e só daí a dias o pudesse fazer.
Esperaram uma carta de explicações, um, dois, três, cinco e dez dias: nada.
— Nada, meu pai! Nem uma carta! dizia ela. Ele não me ama.
Vicente sofria vendo a dor de Emília. Não podia convencer pelo raciocínio a uma mulher que se dirigia pelo sentimento. Preferiu deixá-la desabafar e escrever a Valentim, ao mesmo tempo que procurava informar-se, como empregado público, dos motivos que teriam demorado Valentim na província.
A carta de Vicente contava tudo o que se passara, o desespero e a dor de Emília vendo-se malograda, como ele próprio, na expectativa de ver chegar Valentim.
Expedida a carta, Vicente procurou indagar as razões poderosas que tinham demorado o noivo de sua filha; mas desde as primeiras tentativas viu logo que não se lhe seria fácil entrar no conhecimento desses motivos atenta a gravidade da questão, e a gravidade estava no segredo guardado pelo próprio mensageiro. Todavia uma consideração se apresentou ao espírito de Vicente: a missão, por grave que fosse, não era política; o ministro podia, sem entrar na explicação por menor dessa viagem, dizer-lhe se Valentim voltava ou não cedo.
Quando se resolveu definitivamente a ir ao ministro e dizer-lhe, se necessário fosse, as razões de seu passo, chegou novo vapor e não trouxe carta alguma em resposta à escrita por Vicente.
Diante desse fato Vicente não hesitou.
Foi ao ministro.
Não era esse o mesmo chefe da repartição em que Vicente era empregado, mas não era absolutamente estranho ao velho pai, por já ter servido na pasta correspondente à sua repartição.
Vicente declarou-lhe os motivos que o levavam, e esperou, adiantando palavra de honra, que o ministro lhe dissesse qual a demora de Valentim.
O ministro pareceu não perceber a pergunta e pediu que ele a repetisse mas nem depois da repetição ficou mais instruído.
O ministro não só não tinha prometido nada a Valentim, como até nem o conhecia.
Vicente enfiou.
O caso parecia-lhe tão extraordinário que não quis acreditar em seus próprios ouvidos.
Mas o ministro repetiu o que dissera e deu-lhe palavra de honra e que dizia a verdade.
Vicente despediu-se do ministro e saiu.
Que iria dizer a sua filha? Como dar-lhe parte do ocorrido? Como evitar os perigos que já se lhe antolhavam nesta revelação?
Vicente hesitou, e caminhando para sua casa foi ruminando mil projetos, a ver qual era melhor para sair desta dificuldade.
Mas na confusão que naturalmente estas idéias lhe traziam, Vicente fixou o espírito no ponto principal da questão: a perfídia de Valentim.
Essa perfídia não carecia de provas. Estava patente, clara, evidente. Valentim tinha usado de uma fraude para enganar Emília. Ou, se tinha motivo de sair, quis aproveitar uma mentira, para mais a salvo poder escapar às promessas anteriores.
Tudo isso é evidente; Vicente via em toda a nudez a triste situação em que ficava colocado.
As circunstâncias contribuíam para aumentar a evidência dos fatos; o silêncio, o anúncio mentiroso da próxima chegada, tudo.
Fazendo todas estas reflexões, Vicente chegou à porta de casa.
E não tinha inventado nada para dizer a Emília. Em tal caso o que cumpria fazer era calar-se e esperar que o tempo tivesse, desfazendo o amor, minorado o sofrimento do desengano.
Calou-se, portanto.
Quando pôde estar a sós refletiu no procedimento de Valentim; uma soma enorme de ódio e despeito criou-se no seu coração. Vicente desejava estar naquele momento diante de Valentim para lançar-lhe em rosto a sua infâmia e a sua baixeza.
Mas todas essas raivas contidas e tardias nada mudavam a situação.
A situação era: Emília definhando, Valentim ausente. O que cumpria fazer? Distrair a moça para ver se ela voltava à vida, e ao mesmo tempo se o primeiro amor se desvanecia naquele coração.
Nesse sentido Vicente fez tudo quanto o amor de pai lhe sugeriu, sem que nos primeiros dias nada pudesse conseguir. Mas os dias se passavam e a dor, se não desapareceu de todo, ao menos não era tão ruidosa como outrora. Três meses se passaram assim, e desde a única carta que Valentim escreveu a Vicente, nunca mais houve uma só letra, uma só palavra dele.
Mas no fim desses três meses apareceu uma carta. Enfim! Vicente recebeu-a contente e não quis logo comunicá-la a Emília. Quis lê-la antes. Era longa: leu-a toda.
Dizia Valentim:
Meu caro sr. Vicente. Se V. Sa. não compreendeu que a minha união com D. Emília era desigual, mostra ter muito pouca prática do mundo. Em todo o caso é digno de desculpa, porque eu também tive um momento em que não reparei nisso, que aliás não era muito de admirar, atenta a maneira por que tinha preso o coração. Tinha preso, tinha. Para que negá-lo.? D. Emília é cheia de encantos e de graças; eu sou moço e ardente. O amor pôs-me poeira nos olhos.
Enquanto eu estava nesse estado inteiramente de rapaz apaixonado, compreende-se facilmente uma fantasia de momento. Então, como viu, fizemos ambos mútuas promessas.
Mas, não há como o mar para dissuadir os homens, ainda os mais apaixonados, de algumas idéias extravagantes que tenham em sua vida.
O mar fez-me bem.
Quando cá cheguei tinha o espírito mais lúcido e o coração mais calmo. Reparei que se lá fico mais tempo destruía dois princípios de minha vida.
O primeiro é o de nunca olhar para baixo; o segundo é o de não sacrificar a minha liberdade a ninguém, de baixo ou de cima.
Este sacrifício era inevitável se eu realizasse o casamento com D. Emília, pessoa a quem, aliás, tributo a maior veneração.
Mal me achei aqui e reconheci esta situação pensei logo em dizer a V. Sa. quais eram as minhas intenções; mas era cedo, e talvez isso produzisse maus resultados no, tocante à sensibilidade de D. Emília.
Por isso escrevi-lhe aquela carta, única que lhe escrevi, e na qual eu lhe dizia mil tolices tendentes a provar que ainda amava a filha de V. Sa.
Depois que recebi uma carta que V. Sa. me contava umas coisas realmente enfadonhas é que eu senti tê-las provocado. Mas, uma vez convertido ao bom senso, fora tolice voltar atrás; calei-me à espera de que passas-se mais tempo.
Hoje creio que já as dores terão passado, e salvo ainda a ocasião para dizer-lhe todos estes meus pensamentos com aquela franqueza própria de um cavalheiro como eu.
Não será de falta de franqueza que V. Sa. me acusa.
Portanto, e visto o mais dos autos, instituo a V. Sa. a palavra que me deu de dar-me sua filha por esposa, presente este que eu aceitava com as mãos abertas a não sem os supraditos princípios que eu enunciei e que são e serão sempre a norma de minha vida.
Resta-me informar a V. Sa. dos motivos que me trouxeram de lá para cá. Não foi nenhum motivo de missão ministerial, nem coisa que com isso se pareça. Os motivos foram dois: o primeiro, certo pressentimento de que eu estava fom dos eixos tentando casar com D. Emília; o segundo, ir receber a herança daquela célebre tia de quem eu lhe falei algumas vezes e que acabava de morrer.
Ha de convir que não podia tê-los mais poderosos.
Terminarei com um aviso salutar.
Naturalmente ao receber esta carta V. Sa. prorrompe contra mim e vai derramar em uma folha de papel todo o ódio que me votar.
Declaro que será trabalho inútil. E outro princípio meu: não responder a cartas inúteis.
Dito isto não o enfado mais. Valentim.
A insolência desta carta produziu em Vicente um efeito doloroso. Não era só a fé de uma moça que fora iludida; era também a dignidade de pai e de ancião que o inconsiderado moço ultrajava, no velho pai de Emília.
Vicente, quando acabou de ler a carta, amarrotou-a com furor e levantou-se da cadeira pálido e trêmulo.
Nesse momento apareceu Emília, e vendo o pai naquele estado de agitação, correu para ele:
— Que tem, meu pai?
— Que tenho? É esta carta...
— Esta carta!?
E Emília procurava ler as folhas amarrotadas que Vicente lhe mostrava sem as largar das mãos.
— Que diz esta carta, meu pai? perguntou Emília levantando os olhos para Vicente.
Vicente olhou para ela, atirou a carta para uma gaveta, fechou-a, e foi sentar-se em um sofá.
— Que dizia aquela carta?
— Minha filha... tens coragem?...
— Tenho... mas...
— Escute bem.
Emília ajoelhou-se aos pés de Vicente e com a cabeça nos joelhos deste escutou.
— O que te vou dizer é grave, continuou Vicente; prepara-te. Para que enganar-te mais tempo? Melhor é que te desengane de uma vez. Emília, Valentim não te ama, não volta cá, dispensa-te da fé que lhe juraste.
— Ah!
Foi um grito, um só, mas que parecia saído do fundo do coração e que devia ir ecoar na estância da eterna justiça.
Emília caiu sem sentidos.
Vicente enganara-se.
Uma tranqüilidade mais aparente que real fizera-lhe supor que Emília podia suportar o golpe daquela revelação.
Isto foi o que o animou a falar.
O grito de Emília teve um eco em Vicente. O velho soltou um grito igual quando viu a filha a seus pés sem dar acordo de si.
Ao princípio supô-la morta.
— Minha filha! Morta! Morta!
Prestaram-se a Emília os primeiros cuidados.
O infeliz pai, quando teve conhecimento de que a filha ainda vivia, respirou de alívio.
Depois mandou chamar o médico.
O médico veio, e depois de examinar a moça disse que respondia pela vida dela.
— Sr. doutor, disse Vicente ao médico à porta da rua, a morte desta menina é a minha morte. Salve-a!
— Pode ficar descansado, respondeu o médico.
Então começou para Vicente uma vida de dedicação. Como exatamente nas vésperas tivesse recebido o decreto de aposentação, achou-se ele livre da obrigação de freqüentar a secretaria. Podia ser todo para a filha. Dias e noites passou-as ao pé do leito de Emília, consolando-a, animando-a, pedindo-lhe que achasse na própria enormidade do crime de Valentim razão para desprezá-lo. A ciência e os conselhos animadores de Vicente obraram de comum no restabelecimento de Emília. No fim de um mês, a moça estava de pé.
Enquanto se achava fraca, e como já não houvesse razão para tocar no doloroso assunto da perfídia de Valentim, o pai de Emília esquivou-se a falar-lhe dos motivos que tinham prostrado a filha.
A convalescença correu regularmente. O que não se pôde vencer foi a tristeza de Emília, mais profunda então do que outrora.
Muitas vezes a moça esquecia-se do pai e de todos, e com o olhar fixo e sem expressão parecia entregue a dolorosas reflexões.
Nessas ocasiões Vicente procurava distrai-la de algum modo, sem, todavia, aludir a nada que fosse de Valentim.
Enfim, Emília ficou completamente restabelecida.
Um dia Vicente, em conversa com ela, disse-lhe que passada a funesta tempestade do coração cumpria-lhe não se escravizar a um amor que tão indignamente votara a Valentim. Estava moça; considerar empenhado o coração naquele erro do passado era cometer um suicídio sem proveito, nem razão legítima.
— Meu pai, assim é preciso.
— Não é, minha filha.
— Afirmo-lhe que é.
— Tão generosamente pagas a quem foi tão cruel para contigo?
— Meu pai, disse Emília, cada um de nós foi condenado a ter neste negócio uma catástrofe. É a sua vez.
— Explica-te.
— Meu pai, disse Emília, fechando o rosto nas mãos, eu sou dele quer queira quer não.
Uma idéia pavorosa atravessou o espírito de Vicente. Mas tão impossível lhe pareceu, que, sem dar crédito à imaginação, perguntou a Emília o que queria dizer.
A resposta de Emília foi:
— Poupe-me à vergonha, meu pai.
Vicente compreendeu tudo.
O seu primeiro movimento foi repelir a filha.
Levantou-se desesperado.
Emília não disse uma palavra. No fundo do abismo da desgraça em que se via, não podia desconhecer que a indignação de Vicente era legítima e que devia respeitá-la.
Vicente fez mil imprecações de ódio, mil protestos de vingança.
Passada a primeira explosão, e quando, extenuado pela dor, Vicente caía em uma cadeira, Emília levantou-se e foi ajoelhar-se aos seus pés.
— Perdão, meu pai, exclamava ela entre lágrimas, perdão! Conheço todo o horror da minha situação e respeito a dor que meu pai acaba de sentir. Mas vejo que mereço perdão. Eu era fraca e amava. Ele era insinuante e parecia amar. Nada disto me lava do pecado; mas se a indignação de um pai pode encontrar atenuação no ato de uma filha, meu pai, eu ouso esperar isso.
Vicente repeliu Emília com a mão.
Emília insistiu, implorou, desfez-se em lágrimas, em súplicas, e em lamentos. Pediu pela alma da mãe que Vicente não juntasse à dor da perfídia do amante a dor da maldição paternal.
A voz do arrependimento e da contrição de Emília teve eco no espírito de Vicente. O velho pai, chorando também, voltou os olhos para a filha e estendeu-lhe os braços.
Na consciência de Vicente Emília estava perdoada.
Mas o mundo?
Os juízos do mundo são singulares e contraditórios. Quando uma pobre rapariga cai num erro, como Emília, o mundo fecha-lhe as portas e lavra mandamento de interdição. É justo. Mas o que não é justo, o que é infame, o que clama justiça, é que essas mesmas portas se abram ao autor do crime, e que este, depois de sofrer uns simples murmúrios de desaprovação, seja festejado, acatado, considerado.
Ora, a situação de Emília diante do mundo apresentou-se logo no espírito de Vicente em todo o seu horror.
Vicente, voltando do abalo que sofrera, procurou reunir as idéias e os fatos e meditou sobre eles.
O que havia de positivo era:
Uma menina enganada e perdida.
Um depravado alegre e feliz com o bom êxito da empresa, rindo-se de longe da credulidade e do infortúnio de uma família honrada.
A par da velhice desfeita, a felicidade dos seus últimos dias anulada.
Que fazer diante disto?
Vicente formou e desfez mil projetos, sem acertar com um que pudesse resolver todas as dúvidas e preparar todas as conseqüências.
Estava velho. Podia morrer de uma hora para outra. Emília ficava desamparada. Podia perder-se, senão por tendência própria, ao menos por urgência das necessidades. Ele sabia que a rapariga nas circunstâncias de Emília apresentava este dilema: ou a morte ou a vergonha, pontos horríveis, aos quais não é possível chegar sem ferir os preceitos divinos e humanos.
Há uma terceira solução que faz sair da morte e da vergonha; mas essa terceira seria escolhida por Emília? Apesar das lições paternas, do exemplo, da índole, dos sentimentos que nutria, ficaria ela a salvo das futuras seduções que, de envolta com a necessidade, fossem debruçar-se à noite no leito de sua miséria?
Vicente sentia, via, adivinhava toda esta situação, mas desesperava por não poder achar um só meio de preveni-la, e dissipar as suas tristes apreensões.
Entretanto o mais fúnebre silêncio sucedeu em casa às explosões de dor e de indignação do pai e da filha.
Esta vivia quase sempre no quarto, evitando o mais que pudesse a vista do pai, que era para ela a imagem da consciência viva.
Vicente do mesmo modo recolhia-se ao seu quarto, e ali passava horas e horas, só com a sua dor e com as suas considerações do futuro.
Um dia Vicente entrou no quarto de Emília e foi sentar-se ao pé dela.
— Emília...
— Meu pai.
— Já te perdoei, como sabes, o erro em que caíste; reconheci, minha filha, que a boa fé do teu coração foi iludida. Tudo isto pertence ao passado. Mas pensaste no futuro?
— No futuro?
— Sim, pensaste na tua posição de ora avante, nas circunstâncias penosas em que te achas, mas ainda mui penosas com que hás de achar-te quando eu morrer?
— Oh! meu pai, eu também morrerei...
— Ouve. Não digas isso. Não sabes se poderás ou não resistir à minha morte, e no caso afirmativo, que é o que se há de dar, porque é o que se dá sempre, só recorrendo ao crime terás a morte, e então...
— Meu pai!
— E então terás aumentado as torturas eternas do meu espírito... Ah! é preciso que te não esqueças de que há um Deus que nos olha e nos julga. Para esse, apelo eu, apelarás tu, no que diz respeito ao infame. Mas enquanto esse Deus não te chamar a si, tu não tens, nem eu tenho, o direito de atirar à margem o fardo da vida.
Bem sei, meu pai...
— Ora, pois. Morto eu, qual é a tua posição? Ficas desamparada à beira de um abismo. É preciso que conjures esse perigo, e eis o meio: mudar-nos-emos daqui. A casa a que eu for morar terá capacidade para que possamos eu e tu trabalhar em uma só coisa: fazer um pecúlio para ti. Serei hortelão; serás costureira. O que nos render nessas duas ocupações, junto com o que o Estado me dá, servirá para sustentar a casa e economizar de modo que, no fim de alguns anos, quando a morte me chamar, tu fiques desassombrada, ao abrigo das necessidades e das tentações.
— Oh! meu pai! exclamou Emília deitando-se aos braços de Vicente.
— Queres?
— De todo o coração, meu pai.
Desde este dia foi assentado que ambos se ocupariam na reparação do passado por meio da esperança do futuro.
Mudaram-se para a casinha em que os encontramos, leitor, no começo desta narrativa.
Aí viveram, longe do mundo, entregues só ao cumprimento da palavra jurada e no desempenho dos encargos que o funesto amor de Valentim trouxera àquela infeliz família.
Quanto ao rapaz, Vicente entendeu que não devia por modo algum procurar vingar-se. Qual seria a vingança? Vicente, profundamente religioso, julgou entre si que a justiça de Deus bastava para reparar os casos onde fosse impotente a justiça dos homens.
Votando-se a uma vida de trabalho e de obscuridade, o pai e a filha buscaram reparar os erros do passado, amando-se mais e fazendo convergir os seus esforços, para a compra da tranqüilidade futura.
Tal foi, em resumo, a narração feita por Vicente a Davi.
Quando o velho hortelão acabou de falar ia a noite adiantada. Davi estava pensativo e concentrado. Não perdera uma só das revelações do velho, e às últimas palavras dele lançou-se-lhe aos braços.
— Muito bem! muito bem! exclamou o poeta. Obrou como um homem de honra e de prudência. Não era outro o seu procedimento. Este abraço é de irmão, e de admirador.
— Fiz o dever, não?
— Fez! fez! Devem todos os que o conhecem felicitá-lo por tal... Ainda bem, que não morro inteiramente desgostoso com a minha espécie; ainda há indivíduos que lhe fazem honra... Mas diga-me, nunca mais ouviu falar de Valentim?
— Nunca mais. Foi um ingrato.
— Foi um infame.
— É a mesma coisa.
— Sim, mas hoje, pelo tom que as coisas levam, já se vai dando à ingratidão a significação de independência... É com efeito independência, mas independência do justo e do honesto... E sua filha... pobre menina!
— Coitada. Trabalha contente e alegre. Nossas economias são muitas, porque reduzimos o mais que nos é possível as nossas despesas, de modo que, se eu hoje morrer, já Emília não fica inteiramente abandonada. Ai está a história da nossa vida. Adeus. É tarde. Até amanhã!
Vicente voltou ainda:
— É o primeiro a quem revelo todas estas coisas. Será também o primeiro a quem dê entrada em minha casa. Agora é tarde. Amanhã entrará no santuário do trabalho em que eu e minha filha somos sacerdotes...
— Até amanhã.
No dia seguinte, com efeito, Vicente apresentou-se em casa do poeta às 9 horas da manhã.
Davi coordenava uns papéis.
— Ponho em fuga a musa? disse Vicente à porta.
— Não; pode entrar. Isto não são versos. Já perdi o gosto de rever os versos que faço. Isto foi bom em outros tempos. Agora faço versos e atiro-os à gaveta, para lá dormirem com as minhas ilusões. Preparo uma ode, é verdade, mas não é agora... Vem buscar-me?
— Venho.
— Pois vamos.
O poeta guardou os papéis e entrou com Vicente na casa deste.
Emília veio recebê-lo à sala.
Era uma bela criatura, apesar da magreza e da palidez, sendo que essa palidez e essa magreza davam ainda realce à beleza natural da moça em virtude do vestido negro que trazia, como luto de sua honra, e os cabelos desleixadamente atados sobre a nuca.
Davi não pôde deixar de parar uns segundos diante de Emília sem dirigir-lhe uma só palavra. Se depois da narração feita pelo pai a que dava a vida da moça um fundo romanesco, Davi encontrasse uma mulher de aspecto vulgar, a impressão seria menor; não acontecendo assim, realçando a beleza de Emília o episódio tão curioso dos amores de Valentim, Davi, que, como todo o verdadeiro poeta, conservava, apesar dos anos, a fantasia e o coração, não pôde deixar de ficar impressionado.
Passado o primeiro momento de admiração, Davi encaminhou-se para a moça, e disse-lhe algumas palavras próprias da ocasião.
Depois sentaram-se todos.
Não fora convencionado, mas o velho poeta compreendeu bem que era descabida toda a convenção no assunto do amor e do crime de Valentim.
A conversa versou portanto sobre coisa diferente e estranha daquela, mostrando-se Davi, o mais que pôde, ignorante do passado de Emília.
Davi despediu-se e voltou para casa.
Vicente e Emília insistiram para que ele lá voltasse, e Davi prometeu.
E, com efeito, durante oito dias, Davi fazia regularmente uma visita diária ao amigo e vizinho.
Mas no fim de oito dias Davi não foi lá, nem deu sinais de si.
Durante dois dias conservou-se a casa fechada; mal aparecia, uma ou outra vez o criado Elói.
Vicente cuidou que o poeta estivesse doente, e lá foi. Elói apareceu e disse que o poeta tinha saído declarando que não voltaria antes de dois meses. Entretanto, deixara uma carta para ser entregue a Vicente.
Vicente recebeu a carta e foi lê-la em casa.
Dizia o poeta:
Meu caro amigo. Esta carta dar-lhe-á notícia, quando aí for, de que eu me ausento por dois meses.
Os motivos desta ausência são particulares. Talvez lhos diga depois. O que lhe peço é que, no caso de mudar de casa, faça-me chegar a notícia exata da sua nova residência.
Adeus; até breve. — Davi, poeta para si, amigo para Vicente, estranho para toda a humanidade.
Vicente leu esta carta a Emília, e lamentou com ela a repentina saída de Davi.
— Era o meu único amigo, e esse mesmo me falta.
— Mas, por dois meses...
— Eu sei lá... Dois meses... Também...
Vicente concluiu mentalmente a frase que dizia respeito a Valentim.
Entretanto voltaram os dois às funções regulares da horta e da costura, à espera que chegasse o dia da volta do poeta.
Tudo continuou, portanto, como outrora.
Não durou, porém, isto mais do que quinze dias, ao cabo dos quais Vicente adoeceu.
Foi o sinal da agitação naquela família, que tão sossegada e silenciosamente vivia.
Emília, assustada ao princípio com os sintomas de uma grave enfermidade para seu pai, quis ir ela própria chamar o médico.
Vicente disse-lhe que chamasse antes o criado de Davi, e que por caridade este se prestaria a isso.
Com efeito, mal a filha do hortelão fez saber a Elói o serviço que exigiam dele, o criado apressou-se em ir à cata de um médico, e depois à compra dos medicamentos precisos.
Esta solicitude, confessou depois o próprio Elói, era ordem expressa de Davi.
— Ah! dizia Vicente quando soube desta circunstância, e aquele amigo tão longe! Se eu morrer?...
— Morrer? Não fale nisso, meu pai...
— É muito possível, minha filha, eu nem sempre hei de viver, e bom é que nos acostumemos a este pensamento, de que, aliás, nunca nos devíamos esquecer.
Emília chorava ouvindo estas palavras de seu pai. Vicente, para distraí-la, começava de afagá-la e passava a assuntos diferentes.
Entretanto, a moléstia de Vicente agravou-se, e o médico chegou a recear pelos dias do enfermo.
Quando Emília soube do estado grave de seu pai quase endoideceu.
Não era só o arrimo que perdia; era a imagem viva da consolação e do conforto que ela tinha nele e que estava prestes a separar-se dela.
Redobraram os cuidados.
Elói durante algumas noites deixou a casa do amo para ir passá-las ao pé do enfermo.
Emília por seu lado passava as noites em claro, e só cedia às instâncias do criado para que fosse descansar, quando já lhe era absolutamente impossível conservar-se acordada.
Ainda assim pouco dormia. Passando da realidade dos fatos, Emília era dominada pelos mistérios da imaginação. Os sonhos mais lúgubres e assustadores atordoaram o seu espírito durante o sono.
Uma noite, em que Elói, sentado em um pequeno banco, fazia esforços incríveis contra o sono que o invadia, Vicente acordou de uma madorna de meia hora. Viu que o criado fugia embalde ao sono, e cuidou que a filha também estivesse repousando.
Mas, desviando o olhar para o fundo do quarto, deu com os olhos em Emília, ajoelhada, apoiada em uma cadeira, implorando não sei que santo invisível pela saúde do pai.
Este espetáculo comoveu o doente. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Lembrou-se então das horas longas e choradas que passara igualmente junto ao leito da filha, implorando ao Senhor pela saúde dela.
E não pôde deixar de dizer com voz fraca, mas suficiente para que ela ouvisse:
— Deus te ouça, minha filha.
— Meu pai!
E Emília dirigiu-se para o leito do enfermo, que lhe beijou as mãos de agradecido.
Esta cena repetiu-se ainda algumas vezes durante as crises da enfermidade de Vicente.
À força de cuidados e de remédios Vicente pôde melhorar, e tão a olhos vistos, que um dia de manhã Emília, ao levantar-se e ao ver a fisionomia do doente, julgou que se tivesse operado um milagre.
Vicente melhorou e ficou restabelecido. O médico proibiu-lhe expressamente que voltasse tão cedo ao trabalho.
— Mas como passaremos nós? perguntou Vicente a Emília quando esta lhe comunicou as determinações do médico.
— Trabalharei eu, e com o mais que há iremos passando...
— Mas tu, trabalhares sozinha? Isso não pode ser.
— Tanto pode, que há de ser...
— Mas... Enfim, lá diz o rifão que Deus dá o frio conforme a roupa. Podia ser pior, e eu ficava aí perdido de uma vez.
— Não podia ser pior, meu pai.
— Por quê?
— Porque eu pedi à minha madrinha...
A madrinha era a mãe de Deus. Esta devoção tão cândida e tão sincera fez sorrir de contentamento ao hortelão.
— Pedi-lhe a sua saúde, meu pai, e bem vê que ela me ouviu.
— Dize-me cá, Emília, se eu morresse que farias tu?
— Morria também... Não me seria possível sobreviver-lhe. Que me restava mais neste mundo? Não é meu pai o único fio que me prende à vida?
— Pobre filha!
Esta exclamação pintava toda a situação daquelas duas criaturas, situação dolorosa e admirável, em que a vida de uma dependia da de outra, sem outra solução possível, visto que a morte de uma tirava à outra toda a esperança de felicidade e de paz.
E o que era esta moléstia de Vicente? Que resultado teria no futuro daquela família? A ruína. O pecúlio feito à custa de tantas economias, de tantos trabalhos, de tantas misérias, fora absorvido com a moléstia de Vicente. Dora em diante deviam começar de novo a ajuntar o patrimônio do futuro, que era a segurança da honra e da paz.
E aqueles dois Sísifos olhavam-se rindo, contentes de si e de Deus, sem repararem nas atribulações e nas fadigas porque deviam passar de novo.
Já Vicente terminara a convalescença quando recebeu uma carta de Davi.
Aproximava-se o tempo marcado para a volta do poeta, e a carta fez-lhe supor que o poeta não voltaria ainda.
— Para que me escreveria se voltasse já?
Abriu a carta e leu-a:
Meu caro amigo. Dentro de pouco estarei aí e então para nunca mais fazer viagem alguma.
Nunca lhe disse que havia em minha vida alguns desgostos a respeito dos quais nunca procurava conversar? Pois saiba que um deles foi o que me trouxe cá.
Ficou-me de minha mulher um filho a quem eduquei com desvelo paternal.
Prometia ser até à idade dos quinze anos um modelo de retidão e de sisudez.
Más companhias o perderam. Tendo chegado a uma certa idade em que o olhar paterno não podia segui-lo em toda a parte, o rapaz esqueceu as lições que eu tanto lhe ensinei e deixou-se levar pela torrente da rapaziada.
De perdição em perdição este filho chegou a sair-me de casa e a desconhecer até a minha autoridade.
Separamo-nos.
Ora, imagine que tive ultimamente um sonho e que se me afigurou ver o rapaz contrito e morigerado pedir-me a bênção paternal.
Não hesitei um momento. Vim ter ao lugar onde em natural encontrá-lo e vi a realidade do meu sonho...
Lá vou ter dentro de poucos dias. Esperem aí o velho amigo. Davi.
Conforme dizia a carta, apareceu no fim de pouco tempo o nosso poeta. O sinal da chegada de Davi foi a presença de Diógenes na horta de Vicente. O cão acompanhara o senhor.
Sabendo da presença do vizinho, Vicente lá foi ter e abraçá-lo; contou-lhe o que sofrera, os perigos de que escapara e até os atos de dedicação e amor da parte de Emília.
E, concluindo a narrativa, disse Vicente:
— Enfim... já é para agradecer que me salvasse e esteja aqui livre de tudo, disposto a recomeçar os meus trabalhos... Mas, então, encontrou seu filho?
— É verdade, respondeu Davi.
— Foi um verdadeiro achado... não?
— Um achado sublime. Achei-o corrigido pelo tempo e pelas desgraças. O cadinho serviu; antes era um peralta; agora é um homem de bem.
— Ora, deixe-me abraçá-lo...
— Abrace-me... abrace-me. E a menina?
— Está boa...
— Mais alegre?...
— Vai vivendo...
— Pois eu lá hei de ir hoje... Crê que ela terá prazer em ver-me?
— Por que não?
Os dois velhos separaram-se. Quase a sair, Vicente foi chamado por Davi, que lhe disse:
— Olhe, sabe que meu filho vem amanhã?
— Ah!
— Há de ver... que rapagão!
No dia seguinte o poeta apresentou-se em casa de Vicente. Emília foi recebê-lo.
— Ora, viva! disse ela, como está? Como se deu fora estes dois meses?... Sabe que a sua ausência foi sentida como se fora a de um amigo de longo tempo?
— Desconfio...
— Pois é verdade. Então, ainda volta?
— Não. Fico de uma vez.
— Tanto melhor.
— E desde já imponho, como condição disto, um perdão de sua parte.
— Um perdão?
— É verdade: um perdão.
— Que crime cometeu?
— Ah! não sou eu o culpado... é outro... É ele.
Emília abaixou os olhos e estremeceu.
— Ele... Valentim... meu filho.
— Filho... Pois?...
Vicente entrou na sala...
— Ajude-me, amigo, nesta empresa: eu peço o perdão de sua filha para meu filho.
— Seu filho... Quem?
— Valentim!
— Ah!
— E ao mesmo tempo pedir licença para uma reparação. Mas ouçam antes: não lhe disse algumas vezes, sr. Vicente, que eu tinha um desgosto em minha vida? Era Valentim. Saiu-me um filho mau como lhe contei na carta. Agora, como também lhe contei, fui buscá-lo. O motivo era simples. Soube da história de sua filha e fui em casa do rapaz com a intenção de fazer dele um marido capaz, custasse o que custasse. Fui ainda mais feliz. Achei-o mudado: o tempo e o infortúnio tinham-lhe mostrado o caminho errado em que andara. Trago-lhes uma pérola.
— Ah! — disse Emília lançando-se aos braços de Davi.
Dai a alguns minutos entrava na casa de Vicente o filho do poeta. Estava mudado até no rosto. Via-se que ele sofrera e aprendera com os anos.
Entrando foi ajoelhar-se aos pés de Emília e de Vicente. Ao perdão de ambos seguiu-se o casamento. Como fora convencionado os dois velhos não se mudaram, nem os dois filhos.
Valentim tornou-se um marido exemplar, um filho modelo. Esquecido o passado, cuidaram todos de fazer do presente a realidade daqueles sonhos de paz e de ventura que tantas vezes haviam tentado em sua vida.
E conseguiram.
Fonte: alecrim.inf.ufsc.br