CONOTS DE MACHADO DE ASSIS: O CASO BARRETO e O CASO DA VIÚVA
O CASO BARRETO
Publicado originalmente em A Estação 1892
— Sr. Barreto, não falte amanhã, disse o chefe de seção; olhe que temos de dar essas cópia ao ministro.
— Não falto, venho cedo.
— Mas, se vai ao baile, acorda tarde.
— Não, senhor, acordo cedo.
— Promete?
— Acordo cedo, deixe estar, a cópia fica pronta. Até amanhã.
Qualquer pessoa, menos advertida, afirma logo que o amanuense Barreto acordou tarde no dia seguinte, e engana-se. Mal tinham batido as seis horas, abriu os olhos e não os fechou mais. Costumava acordar às oito e meia ou nove horas, sempre que se recolhia às dez ou onze da noite; mas, andando em teatros, bailes, ceias e expedições noturnas, acordava geralmente às onze horas da manhã. Em tais casos, almoçava e ia passar o resto do dia na charutaria do Brás, Rua dos Ourives. A reputação de vadio, preguiçoso, relaxado, foi o primeiro fruto desse método de vida; o segundo foi não andar para diante. Havia já oito anos que era amanuense; alguns chamavam-lhe o marca-passo. Acrescente-se que, além de falhar muitas vezes, saía cedo da repartição ou com licença ou sem ela, às escondidas. Como é que lhe davam trabalhos e trabalhos longos? Porque tinha bonita letra e era expedito; era também inteligente e de compreensão fácil. O pai podia tê-lo feito bacharel e deputado; mas era tão estróina o rapaz, e de tal modo fugia a quaisquer estudos sérios, que um dia acordou amanuense. Não pôde dar crédito aos olhos; foi preciso que o pai confirmasse a notícia.
— Entras de amanuense, porque houve reforma na Secretaria, com aumento de pessoal. Se houvesse concurso, é provável que fugisses. Agora a carreira depende de ti. Sabes que perdi o que possuía; tua mãe está por pouco, eu não vou longe, os outros parentes conservam a posição que tinham, mas não creio que estejam dispostos a sustentar malandros. Agüenta-te.
Morreu a mãe, morreu o pai, o Barreto ficou só; ainda assim achou uma tia que lhe dava dinheiro e jantar. Mas as tias também morrem; a dele desapareceu deste mundo dez meses antes daquela cópia que o chefe de seção lhe confiou, e que ele ficou de concluir no dia seguinte, cedo.
Cedo acordou, e não foi pequena façanha, porque o baile acabou às duas horas, e ele chegou à casa perto das três. Era um baile nupcial; casara-se um companheiro de colégio, que era agora advogado principiante, mas ativo e de futuro. A noiva era rica, neta de um inglês, que meteu em casa cabeças louras e suíças ruivas; a maioria, porém, compunha-se de brasileiros e de alta classe, senadores, conselheiros, capitalistas, titulares, fardas, veneras, ricas jóias, belas espáduas, caudas, sedas, e cheiros que entonteciam. Barreto valsou como um pião, fartou os olhos em todas aquelas coisas formosas e opulentas, e principalmente a noiva, que estava linda como as mais lindas. Ajuntai a isso os vinhos da noite, e dizei se não era caso de despertar ao meio-dia.
A preocupação da cópia podia explicar esse madrugar do amanuense. É certo, porém, que a excitação dos nervos, o tumulto das sensações da noite, foi a causa originária da interrupção do sono. Sim, ele não acordou, propriamente falando; interrompeu o sono, e nunca mais pôde reatá-lo. Perdendo a esperança, consultou o relógio, faltavam vinte minutos para as sete. Lembrou-se da cópia. — É verdade, tenho de acabar a cópia...
E assim deitado, pôs os olhos na parede, fincou ali os pés do espírito, se me permitem a expressão, e deu um salto no baile. Todas as figuras, danças, contradanças, falas, risos, olhos e o resto, obedeceram à evocação do jovem Barreto. Tal foi a reprodução da noite, que ele chegou a ouvir a mesma música às vezes, e o rumor dos passos. Reviveu as gratas horas tão velozmente passadas, tão próximas e já tão remotas.
Mas, se esse rapaz ia a outros bailes, divertia-se, e, pela própria roda em que nascera, costumava ter daquelas festas, que razão havia para a excitação particular em que ora o vemos? Havia uma longa cauda de seda, com um bonito penteado por cima, duas pérolas sobre a testa, e dois olhos embaixo da testa. Beleza não era; mas tinha graça e elegância de sobra. Perdei a idéia de paixão, se a tendes; pegai na de um simples encontro de salão, um desses que deixam algum sulco, por dias, às vezes por horas, e se desvanecem sem grandes saudades. Barreto dançou com ela, disse-lhe algumas palavras, ouviu outras, e trocou meia dúzia de olhares mais ou menos longos.
Entretanto, não era ela a única pessoa que se destacava no quadro; vinham outras, começando pela noiva, cuja influência no espírito do amanuense foi profunda, porque lhe deu a idéia de casar.
— Se eu me casasse? perguntou ele com os olhos na parede.
Tinha vinte e oito anos, era tempo. O quadro era fascinador; aquele salão, com tantas ilustrações, aquela pompa, aquela vida, as alegrias da família, dos amigos, a satisfação dos simples convidados, e os elogios ouvidos a cada momento, às portas, nas salas: — “ — “ — “ — “ — “ — Todas essas vistas, pessoas e palavras eram de animar o nosso amanuense, cuja imaginação batia as asas pelo estreito âmbito da alcova, isto é, pelo universo.
De barriga para o ar, as pernas dobradas, e os bracos cruzados sobre a cabeça, Barreto formulava pela primeira vez, um programa de vida, olhava para as coisas com seriedade, e chamava a postos as forças todas que pudesse ter em si para lutar e vencer. Oscilava entre a recordação e o raciocínio. Ora via as galas da véspera, ora dava nos meios de as possuir também. A felicidade não era um fruto que fosse preciso ir buscar à lua, pensava ele; e a imaginação provava que o raciocínio era verdadeiro, mostrando-lhe o noivo da véspera e na cara deste a sua própria.
— Sim, dizia Barreto consigo, basta um pouco de boa vontade, e eu posso ter muita. Há de ser aquela. Parece que o pai é rico; ao menos terá alguma coisa para os primeiros tempos. O resto é comigo. Um mulherão! O nome é que não é grande coisa: Ermelinda. O nome da noiva é que é realmente delicioso: Cecília! Manganão! Ah! manganão! Achou noiva para o seu pé...
“ fê-lo rir e mudar de posição. Voltou-se para o lado, e olhou para os sapatos, a certa distância da cama. Lembrou-se que podiam ter sido roídos das baratas, esticou o pescoço, viu o verniz intacto, e ficou tranqüilo. Mirou os sapatos com amor; não só eram bonitos, bem feitos, mas ainda acusavam um pé pequeno, coisa que lhe enchia a alma. Tinha horror aos pés grandes — pés de carroceiro, dizia, pés do diabo. Chegou a tirar um dos seus, de baixo do lençol, e contemplá-lo por alguns segundos. Depois encolheu-o novamente, coçou-o com a unha de um dos dedos do outro pé, gesto que lhe trouxe à memória o adágio popular — uma mão lava a outra —, e naturalmente sorriu. Um pé coça outro, pensou. E, sem advertir que uma idéia traz outra, pensou também nos pés das cadeiras e nos pés dos versos. Que eram pés de verso? Dizia-se verso de pé quebrado. Pé de flor, pé de couve, pé de altar, pé de vento, pé de cantiga. Pé de cantiga seria o mesmo que pé de verso? A memória neste ponto cantarolou uma copla ouvida em não sei que opereta, copla realmente picante e música mui graciosa.
— Tem muita graça a Geni! disse ele, concertando o lençol nos ombros.
A cantora fez-lhe lembrar um sujeito grisalho que a ouvia uma noite, com tais derretimentos de olhos que fez rir alguns rapazes. Barreto riu também, e mais que os outros, e o sujeito grisalho avançou para ele, furioso, e agarrou-o pela gola. Ia dar-lhe um murro; mas o nosso Barreto deu-lhe dois, com tal ímpeto que o obrigou a recuar três passos. Gente no meio, gritos, curiosos, polícia, apito, e foram ter ao corpo da guarda. Aí soube-se que o sujeito grisalho não avançara para o moço com o fim de se despicar do riso, por imaginar que se risse dele, mas por supor que estava mofando da cantora.
— Eu, senhor?
— Sim, senhor.
— Mas se até a aprecio muito! Para mim é a melhor que temos atualmente nos nossos teatros.
O sujeito grisalho acabou convencido da veracidade de Barreto, e a polícia mandou-os em paz.
— Um homem casado! pensava agora o rapaz, recordando o episódio. Eu, quando casar, hei de ser coisa muito diferente.
Tornou a pensar na cauda e nas pérolas do baile.
— Realmente, um bom casamento. Não conhecia outra mais elegante... Mais bonita havia no baile; uma das Amarais, por exemplo, a Julinha, com os seus grandes olhos verdes — uns olhos que faziam lembrar os versos de Gonçalves Dias... Como eram mesmo? Uns olhos cor de esperança...
Que, ai, nem sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Não se lembrando do princípio da estrofe, teimou por achá-lo, e acabou vencendo. Repetiu a estrofe, uma, duas, três vezes, até decorá-la inteiramente, para não esquecê-la mais. Bonitos versos! Ah! era um grande poeta! Tinha composições que haviam de ficar perpétuas na nossa língua, como o Ainda uma vez, adeus! E Barreto, em voz alta, recitou este começo:
Enfim te vejo! Enfim, posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te
Pesar de quanto sofri!
Muito penei! Cruas ânsias,
De teus olhos apartado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti.
— Realmente, é bonito! exclamou outra vez de barriga para o ar. E aquela outra estrofe — como é? —, aquela que acaba:
Quis viver mais, e vivi!
Desta vez, trabalho em vão; a memória não lhe acudiu com os versos do poeta; em compensação, trouxe-lhe uns do próprio Barreto, versos que ele sinceramente rejeitou do espírito, vexado da comparação. Para consolar o amor-próprio, disse que era tempo de tratar de negócios sérios. Versos de criança. Toda a criança faz versos. Vinte e oito anos; era tempo de seriedade. E o casamento voltou, como um parafuso, a penetrar no coração e na vontade do nosso rapaz. A Julinha Amaral não era grande negócio, e demais já andava meio presa ao filho do conselheiro Ramos, que advogava com o pai, e diziam que ia longe. Todas as filhas do barão de Meireles eram bonitas, menos a mais moça, que tinha cara de pau. Verdade é que dançava como um anjo.
— Mas a Ermelinda... Sim, a Ermelinda não é tão bonita, mas também não se pode dizer que seja feia; tem só os olhos miudinhos demais e o nariz curto, mas é simpática. A voz é deliciosa. E tem graça, o ladrão, quando fala. Ainda ontem...
Barreto recordou, salvo algumas palavras, um diálogo que tivera com ela, no fim da segunda valsa. Passeavam: ele, não sabendo bem que dissesse, falou do calor.
— Calor? disse ela admirada.
— Não digo que esteja quente, mas a valsa agitou-me um pouco.
— Justamente, acudiu a moça; em mim produziu efeito contrário; estou com frio.
— Então, constipou-se.
— Não, é costume antigo. Sempre que valso, tenho frio. Mamãe acha que eu vim ao mundo para contrariar todas as idéias. O senhor espanta-se?
— Seguramente. Pois a agitação da valsa...
— Aqui temos um assunto, interrompeu Ermelinda; era o único modo de tirar alguma coisa do calor. Se concordássemos, estava esgotada a matéria. Assim, não; teimo em dizer que valsar faz frio.
— Não é má idéia. Então, se eu lhe disser que valsa muito mal...
— Eu acredito o contrário, e provo... concluiu ela, estendendo-lhe a mão.
Barreto cingiu-a ao turbilhão da valsa. De fato, a moça valsava bem; o que mais impressionou o nosso amanuense, além da elegância, foi o desembaraço e a graça da conversação. As outras moças não são assim, disse ele consigo, depois que a conduziu a uma cadeira. E ainda agora repetia a mesma coisa. Realmente, era espirituosa. Não podia achar melhor noiva — de momento, ao menos; o pai era bom homem; não o recusaria por ser amanuense. A questão era aproximar-se dela, ir à casa, freqüentá-la; parece que eles tinham assinatura no Teatro Lírico. Vagamente lembrava-se de lhe haver ouvido isso, na véspera; e pode ser até que com intenção. Foi, foi intencional. Os olhares que ela lhe lançou traziam muita vida. Ermelinda! Bem pensado, o nome não era feio. Ermelinda! Ermelinda! Não podia ser feio um nome que acabava pela palavra linda. Ermelinda! Barreto deu por si a dizer alto:
— Ermelinda!
Assustou-se, riu-se, repetiu:
— Ermelinda! Ermelinda!
A idéia de casar fincou-se-lhe de vez no cérebro. De envolta com ela vinha a de figurar na sociedade por seus próprios méritos. Era preciso deixar a crisálida de amanuense, abrir as asas de chefe. Que é que lhe faltava? Tinha inteligência, prática, era limpo, não nascera das ervas. Bastava energia e disposição. Pois ia tê-las. Ah! porque não obedecera aos desejos do pai, formando-se, entrando na Câmara dos Deputados? Talvez fosse agora ministro. Não era de admirar a idade, vinte e oito anos; não seria o primeiro. Podia muito bem ser ministro, ordenanças atrás. E o Barreto lembrava-se da entrada do ministro na Secretaria, e imaginava-se a si mesmo naquela situação, com farda, chapéu, bordados... Logo depois, compreendia que estava longe, agora não — não podia ser. Mas era tempo de ganhar posição. Quando fosse chefe, casado em boa família, com uma das primeiras elegantes do Rio de Janeiro, e um bom dote — acharia compensação aos erros passados...
— Tenho de acabar a cópia, pensou Barreto repentinamente.
E achou que o melhor modo de crescer era trabalhar. Pegou no relógio que ficara sobre a mesa, ao pé da cabeceira da cama: estava parado. Mas não andava quando acordou? Pôs-lhe o ouvido, agitou, estava parado de vez. Deu-lhe corda, ele andou um pouco, mas parou logo.
— É uma espiga do tal relojoeiro das dúzias, murmurou o Barreto.
Sentou-se na cama um tanto reclinado, e cruzou as mãos sobre o estômago. Notou que não tinha fome, mas também comera bem no baile. Ah! os bailes que ele havia de dar, com ceia, mas que ceias! Aqui lembrou-se que ia pôr água na boca aos companheiros da Secretaria, contando-lhes a festa e as suas fortunas; mas não as contaria com ar de pessoa que nunca viu luxo. Falaria naturalmente, aos pedaços, quase sem interesse. E compôs alguns trechos de notícias, ensaiou de memória as atitudes, os movimentos. Talvez algum o achasse com olheiras. — “ — Não, responderia ele, fui ao baile . — “ — “. E continuou assim o provável diálogo, compondo, emendando, riscando palavras, mas de maneira que acabasse contando tudo sem parecer que dizia nada. Diria o nome de Ermelinda ou não? Este problema gastou-lhe mais de dez minutos; concluiu que, se lho perguntassem, não havia mal em dizê-lo, mas não lho perguntando, que interesse havia nisso? Evidentemente nenhum.
Ficou ainda outros dez minutos, pensando à toa, até que deu um salto, e pôs as pernas fora da cama.
— Meu Deus! Há de ser tarde.
Calçou as chinelas e tratou de ir às abluções; mas logo aos primeiros passos, sentiu que as danças o tinham fatigado deveras. A primeira idéia foi descansar: tinha para isso uma excelente poltrona, ao pé do lavatório; achou, porém, que o descanso podia levar longe e não queria chegar tarde à Secretaria. Iria até mais cedo; às dez e meia, no máximo, estaria lá. Banhou-se, ensaboou-se, deu-se todo aos cuidados pessoais, gastando o tempo do costume, e mirando-se ao espelho, vinte e trinta vezes. Também era costume. Gostava de ver-se bem, não só para retificar uma coisa ou outra, mas para contemplar a própria figura. Afinal começou a vestir-se, e não foi pequeno trabalho, porque era meticuloso em escolher meias. Mal tirava umas, preferia outras; e já estas lhe não serviam, ia a outras, tornava às primeiras, comparava-as, deixava-as, trocava-as; afinal, escolheu um par cor de canela, e calçou-as; continuou a vestir-se. Tirou camisa, meteu-lhe os botões e enfiou-a; fechou bem o colarinho e o peito, e só então foi à escolha das gravatas, tarefa mais demorada que a das meias. Costumava fazê-lo antes, mas desta vez estivera pensando no discurso que dispararia ao diretor, quando este lhe dissesse:
— Ora viva! Muito bem! Hoje madrugou! Vamos à cópia.
A resposta seria esta:
— Agradeço os cumprimentos; mas pode o sr. diretor estar certo que eu, comprometendo-me a uma coisa, faço-a, ainda que o céu venha abaixo.
Naturalmente, não gostou do final, porque torceu o nariz, e emendou:
— ...comprometendo-me a uma coisa, hei de cumprí-la fielmente.
Isto é que o distraiu, a ponto de vestir a camisa sem ter escolhido a gravata. Foi às gravatas e escolheu uma, depois de pegar, deixar, tornar a pegar e a deixar umas dez ou onze. Adotou uma de seda, cor das meias, e deu o laço. Reviu-se então longamente no espelho, e foi às botas, que eram de verniz e novas. Já lhes tinha passado um pano; era só calçá-las. Antes de as calçar, viu no chão, atirada por baixo da porta, a Gazeta de Notícias. Era uso do criado da casa. Levantou a Gazeta e ia pô-la na mesa, ao pé do chapéu, para lê-la ao almoço, como de costume, quando deu com uma notícia do baile. Ficou pasmado! Mas como é que podia a folha de manhã noticiar um baile, que acabou tão tarde? A notícia era curta, e podia ter sido escrita antes de terminar a festa, à uma hora da noite. Viu que era entusiástica, e reconheceu que o autor havia estado presente. Gostou dos adjetivos, do respeito ao dono da casa, e advertiu que entre as pessoas citadas figurava o pai de Ermelinda.. Insensivelmente sentara-se na poltrona, e indo dobrar a folha, deu com estas palavras em letras grandes: “ A narração era longa, entrelinhada; começou a ver o que seria, e, em verdade, achou que era gravíssimo. Um homem da Rua das Flores matara a mulher, três filhos, um padeiro e dois policiais, e ferira a mais três pessoas. Correndo pela rua fora, ameaçava a toda a gente, e toda a gente fugia, até que dois mais animosos puseram-se-lhe em frente, um com um pau, que lhe quebrou a cabeça. Escorrendo sangue, o assassino ainda corria na direção da Rua do Conde; aí foi preso por uma patrulha, depois de luta renhida. A descrição da notícia era viva, bem feita; Barreto leu-a duas vezes; depois leu a parte relativa à autópsia, um pouco por alto; mas demorou-se no depoimento das testemunhas. Todas eram acordes em que o assassino nunca dera motivo de queixa a ninguém. Tinha 38 anos, era natural de Mangaratiba e empregado no Arsenal de Marinha. Parece que houve uma discussão com a mulher, e duas testemunhas disseram ter ouvido ao assassino: “ Outras não acreditavam que as mortes tivessem tal origem, porque a mulher do assassino era boa pessoa, muito trabalhadeira e séria; inclinaram-se a um acesso de loucura. Concluía a noticia dizendo que o assassino estivera agitado e fora de si; à ultima hora ficara prostrado, chorando, e chorando pela mulher e pelos filhos.
— Que coisa horrível! exclamou Barreto. Quem se livra de uma destas?
Com a folha nos joelhos, fitou os olhos no chão, reconstruindo a cena pelas simples indicações do noticiarista. Depois, tornou à folha, leu outras coisas, o artigo de fundo, os telegramas, um artigo humorístico, cinco ou seis prisões, os espetáculos da antevéspera, até que se levantou de repente lembrando-se que estava perdendo tempo. Acabou de vestir-se, escovou o chapéu com toda a paciência e cuidado, pô-lo na cabeça diante do espelho, e saiu. No fim do corredor, reparou que levava a Gazeta, para lê-la ao almoço, mas já estava lida. Voltou, deitou a folha por baixo da porta do quarto e saiu à rua.
Dirigiu-se para o hotel em que costumava almoçar, e não era longe. Ia apressado para desforrar o tempo perdido; mas não tardou que a natureza vencesse, e o passo tornou ao de todos os dias. Talvez a causa fosse a bela Ermelinda, porque, havendo pensado ainda uma vez no noivo, a moça veio logo, e a idéia do casamento meteu-se-lhe no cérebro. Não teve outra até chegar ao hotel.
— Almoço, almoço, depressa! disse ele sentando-se à mesa.
— Que há de ser?
— Faça-me depressa um filé e uns ovos.
— O costume.
— Não, não quero batatas hoje. Traga petit-pois... Ou batatas mesmo, venha batatas, mas batatas miudinhas. Onde está o Jornal do Commercio?
O criado trouxe-lhe o Jornal, que ele começou a ler, enquanto lhe faziam o almoço. Correu à notícia do assassinato. Quando lhe trouxeram o filé, perguntou que horas eram.
— Faltam dez minutos para o meio-dia, respondeu o criado.
— Não me diga isso! exclamou o Barreto espantado.
Quis comer às carreiras, ainda contra o costume; despachou efetivamente o almoço o mais depressa que pôde, reconhecendo sempre que era tarde. Não importa; prometera acabar a cópia, iria acabá-la. Podia inventar uma desculpa, um acidente, qual seria? Doença, era natural de mais, natural e gasto; estava farto de dores de cabeça, febres, embaraços gástricos. Insônia, também não queria. Um parente enfermo, noite velada? Lembrou-se que já uma vez explicara uma ausência por esse modo.
Era meia hora depois do meio-dia, quando bebeu o ultimo gole de chá. Ergueu-se e saiu. Na rua parou. A que horas chegaria? Tarde para acabar a cópia, para que ir à Secretaria tão tarde? O diabo fora o tal assassinato, três colunas de leitura. Maldito bruto! Matar a mulher e os filhos. Aquilo foi bebedeira, de certo. Assim reflexionando, ia o Barreto, caminhando para a Rua dos Ourives, sem plano, levado pelas pernas, e entrou na charutaria do Brás. Já lá achou dois amigos.
— Então, que há de novo? perguntou ele, sentando-se. Tem passado muito rabo de saia?
Fonte: alecrim.inf.ufsc.br
O CASO DA VIÚVA
Publicado originalmente em 1881
I
Este conto deve ser lido especialmente pelas viúvas de vinte e quatro a vinte e seis anos. Não teria mais nem menos a viúva Camargo, D. Maria Luísa, quando se deu o caso que me proponho contar nestas páginas, um caso “ posto que menos sangrento que o de D. Inês. Vinte e seis anos; não teria mais, nem tanto; era ainda formosa como aos dezessete, com o acréscimo das roupas pretas que lhe davam grande realce. Era alva como leite, um pouco descolorida, olhos castanhos e preguiçosos, testa larga, e talhe direito. Confesso que essas indicações são mui gerais e vagas; mas conservo-as por isso mesmo, não querendo acentuar nada neste caso, tão verdadeiro como a vida e a morte. Direi somente que Maria Luísa, nasceu com um sinalzinho cor-de-rosa, junto à boca, do lado esquerdo (única particularidade notada), e que foi esse sinal a causa de seus primeiros amores, aos dezoito anos.
— Que é que tem aquela moça ao pé da boca? perguntava o estudante Rochinha a uma de suas primas, em certa noite de baile.
— Um sinal.
— Postiço?
— Não, de nascença.
— Feia coisa! murmurou o Rochinha.
— Mas a dona não é feia, ponderou a prima, é até bem bonita...
— Pode ser, mas o sinal é hediondo.
A prima, casada de fresco, olhou para o Rochinha com algum desdém, e disse-lhe que não desprezasse o sinal, porque talvez fosse ele a isca com que ela o pescasse, mais tarde ou mais cedo. O Rochinha levantou os ombros e falou de outro assunto; mas a prima era inexorável; ergueu-se, pediu-lhe o braço, levou-o até o lugar em que estava Maria Luísa, a quem o apresentou. Conversaram os três; tocou-se uma quadrilha, o Rochinha e Maria Luísa dançaram, depois conversaram alegremente.
— Que tal o sinal? perguntou-lhe a prima, à porta da rua no fim do baile, enquanto o marido acendia um charuto e esperava a carruagem.
— Não é feio, respondeu o Rochinha; dá-lhe até certa graça; mas daí à isca vai uma grande distância.
— A distância de uma semana, tornou a prima rindo. E sem aceitar-lhe a mão entrou na carruagem.
Ficou o Rochinha à porta, um pouco pensativo, não se sabe se pelo sinal de Maria Luísa, se pela ponta do pé da prima, que ele chegou a ver, quando ela entrou na carruagem. Também não se sabe se ele viu a ponta do pé sem querer, ou se buscou vê-la. Ambas as hipóteses são admissíveis aos dezenove anos de um rapaz acadêmico. O Rochinha estudava direito em S. Paulo, e devia formar-se no ano seguinte; estava portanto nos últimos meses da liberdade escolástica; e fio que a leitora lhe perdoará qualquer intenção, se intenção houve naquela vista fugitiva. Mas, qualquer que fosse o motivo secreto, a verdade é que ele não ficou pensativo mais de dois minutos, acendeu um charuto e guiou para casa.
Esquecia-me dizer que a cena contada nos períodos anteriores passou-se na noite de 19 de janeiro de 1871, em uma casa do bairro do Andaraí. No dia seguinte, dia de S. Sebastião, foi o Rochinha jantar com a prima; eram anos do marido desta. Achou lá Maria Luísa e o pai. Jantou-se, cantou-se, conversou-se até meia noite, hora em que o Rochinha, esquecendo-se do sinalzinho da moça, achou que ela estava muito mais bonita do que lhe parecia no fim da noite passada.
— Um sinal que passa tão depressa de fealdade a beleza, observou o marido da prima, pode-se dizer que é o sinal do teu cativeiro.
O Rochinha aplaudiu este ruim trocadilho, sem entusiasmo, antes com certa hesitação. A prima, que estava presente, não lhe disse nada, mas sorriu para si mesma. Era pouco mais velha que Maria Luísa, tinha sido sua companheira de colégio, quisera vê-la bem casada, e o Rochinha reunia algumas qualidades de um marido possível. Mas não foram só essas qualidades que a levaram a prendê-lo a Maria Luísa, e sim também a circunstância de que ele herdaria do pai algumas propriedades. Parecia-lhe que um bom marido é um excelente achado, mas que um bom marido não pobre era um achado excelentíssimo. Assim só se falava ao primo no sinal de Maria Luísa, como falava a Maria Luísa na elegância do primo.
— Não duvido, dizia esta daí a dias; é elegante, mas parece-me assim...
— Assim como?
— Um pouco...
— Acaba.
— Um pouco estróina.
— Que tolice! é alegre, risonho, gosta de palestrar, mas é um bom rapaz e, quando precisa, sabe ser sério. Tem só um defeito.
— Qual? perguntou Maria Luísa, com curiosidade.
— Gosta de sinais cor de rosa ao canto da boca.
Maria Luísa deu uma resposta graciosamente brasileira, um muxoxo; mas a outra que sabia muito bem a múltipla significação desse gesto, que tanto exprime o desdém, como a indiferença, como a dissimulação, etc., não se deu por abalada e menos por vencida. Percebera que o muxoxo não era da primeira nem da segunda significação; notou-lhe uma mistura de desejo, de curiosidade, de simpatia, e jurou aos seus deuses transformá-lo em um beijo de esposa, com uma significação somente.
Não contava com a academia. O Rochinha partiu daí a algumas semanas para S. Paulo, e, se deixou algumas saudades, não as contou Maria Luísa a ninguém; guardou-as consigo, mas guardou-as tão mal, que a outra as descobriu e leu.
— Está feito, pensou esta; um ano passa-se depressa.
Reflexão errada, porque nunca houve ano mais vagaroso para Maria Luísa do que esse, ano trôpego, arrastado, feito para entristecer as mais robustas esperanças. Mas também que impaciência alegre quando se aproximou a vinda do Rochinha. Não o encobria da amiga, que teve o cuidado de o escrever ao primo, o qual respondeu com esta frase: “. A prima, com uma perfídia sem nome, foi contá-lo a Maria Luísa, e com uma cegueira de igual quilate declarou isso mesmo ao primo, que, pela mais singular das complacências, encheu-se de satisfação. Quem quiser que o entenda.
II
Veio o Rochinha de S. Paulo, e daí em diante ninguém o tratou senão por dr. Rochinha, ou, quando menos, dr. Rocha; mas já agora, para não alterar a linguagem do primeiro capítulo, continuarei a dizer simplesmente o Rochinha, familiaridade tanto mais desculpável, quanto mais a autoriza a própria prima dele.
— Doutor! disse ela. Creio que sim, mas lá para as outras; para mim há de ser sempre o Rochinha.
Veio pois o Rochinha de S. Paulo, diploma na algibeira, saudades no coração.
Oito dias depois encontrava-se com Maria Luísa, casualmente na rua do Ouvidor, à porta de uma confeitaria; ia com o pai, que o recebeu muito amavelmente, não menos que ela, posto que de outra maneira. O pai chegou a dizer-lhe que todas as semanas, às quintas-feiras, estava em casa.
O pai era negociante, mas não abastado nem próspero. A casa dava-lhe para viver, e não viver mal. Chamava-se Toledo, e contava pouco mais de cinqüenta anos; era viúvo; morava com uma irmã viúva, que lhe servia de mãe à filha. Maria Luísa era o seu encanto, o seu amor, a sua esperança. Havia da parte dele uma espécie de adoração, que entre as pessoas da amizade passara a provérbio e exemplo. Ele tinha para si que o dia em que a filha lhe não desse o beijo da saída era um dia fatal; e não atribuía a outra coisa o menor contratempo que lhe sobreviesse. Qualquer desejo de Maria Luísa era para ele um decreto do céu, que urgia cumprir, custasse o que custasse. Daí vinha que a própria Maria Luísa evitava muita vez falar-lhe de alguma coisa que desejava, desde que a satisfação exigisse da parte do pai um sacrifício qualquer. Porque também ela adorava o pai, e nesse ponto nenhum devia nada ao outro. Ela o acompanhava até a porta da chácara todos os dias, para lhe dar o ósculo da partida; ela o ia esperar para dar o ósculo da chegada.
— Papaizinho, como passou? dizia ela batendo-lhe na face. E, de braço dado, atravessavam toda a chácara, unidos, palreiros, alegres, como dois namorados felizes. Um dia Maria Luísa, em conversa, à sobremesa, com pessoas de fora, manifestou grande curiosidade de ver a Europa. Era pura conversa, sem outro alcance; contudo, não passaram despercebidas ao pai as suas palavras. Três dias depois, Toledo consultou seriamente a filha se queria ir dai a quinze dias para a Europa.
— Para a Europa? perguntou ela um tanto espantada.
— Sim. Vamos?
Não respondeu Maria Luísa imediatamente, tão vacilante se viu entre o desejo secreto e o inesperado da proposta. Como refletisse um pouco, perguntou a si mesma se o pai podia sem sacrifício realizar a viagem, mas sobretudo não atinou com a razão esta.
— Para a Europa? repetiu.
— Sim, para a Europa, disse o pai rindo; mete-se a gente no paquete, e desembarca lá. É a coisa mais simples do mundo.
Maria Luísa ia dizer-lhe talvez que sim; mas recordou-se subitamente das palavras que proferira dias antes, e suspeitou que o pai faria apenas um sacrifício pecuniário e pessoal, para o fim de lhe cumprir o desejo. Então abanou a cabeça com um risinho triunfante.
— Não, senhor, deixemo-nos da Europa.
— Não?
— Nem por sombras.
— Mas tu morres por lá ir...
— Não morro, não senhor, tenho vontade de ver a Europa e hei de vê-la algum dia, mas muito mais tarde... muito mais tarde.
— Bem, então vou só, redargüiu o pai com um sorriso.
— Pois vá, disse Maria Luísa erguendo os ombros.
E assim acabou o projeto europeu. Não só a filha percebeu o motivo da proposta do pai, como este compreendeu que esse motivo fora descoberto; nenhum deles, todavia, aludiu ao sentimento secreto do outro.
Toledo recebeu o Rochinha com muita afabilidade, quando este lá foi numa quinta-feira, duas semanas depois do encontro na rua do Ouvidor. A prima de Rochinha também foi, e a noite passou-se alegremente para todos. A reunião era limitada; os homens jogavam o voltarete, as senhoras conversavam de rendas e vestidos. O Rochinha e mais dois ou três rapazes, não obstante essa regra, preferiam o círculo das damas, no qual, além dos vestidos e rendas, também se falava de outras damas e de outros rapazes. A noite não podia ser mais cheia.
Não gastemos o tempo em episódios miúdos; imitemos o Rochinha, que ao cabo de quatro semanas, preferiu uma declaração franca à multidão de olhares e boas palavras. Com efeito, ele chegara ao estado agudo do amor, a ferida era profunda, e sangrava; urgiu estancá-la e curá-la. Urgia tanto mais fazer-lhe a declaração, quanto que da última vez que esteve com ela, encontrara-a um pouco acanhada e calada, e, à despedida, não teve o mesmo aperto de mão do costume, um certo aperto misterioso, singular, que se não aprende e se repete com muita exatidão e pontualidade, em certos casos de paixão concentrada ou não concentrada. Pois nem esse aperto de mão; a de Maria Luísa parecia-lhe fria e fugidia.
— Que lhe fiz eu? dizia ele consigo, ao retirar-se para casa.
E buscava recordar todas as palavras do último encontro, os gestos, e nada lhe parecia autorizar qualquer suspeita ou ressentimento, que explicasse a súbita frieza de Maria Luísa. Como já então houvesse entrado na confidência dos seus sentimentos à prima, disse-lhe o que se passara, e a prima, que reunia ao desejo de ver casada a amiga, certo pendor às intrigas amorosas, meteu-se a caminho para a casa desta. Não lhe custou muito descobrir a Maria Luísa a secreta razão de sua visita, mas, pela primeira vez, achou a outra reservada.
Você é bem cruel, dizia-lhe rindo; sabe que o pobre rapaz não suspira senão por um ar de sua graça, e trata-o como se fosse o seu maior inimigo.
— Pode ser. Onde é que você comprou esta renda?
— No Godinho. Mas vamos; você acha o Rochinha feio?
— Ao contrário, é um bonito rapaz.
— Bonito, bem educado, inteligente...
— Não sei como é que você ainda gosta desse chapéu tão fora da moda...
— Qual fora da moda!
— O brinco é que ficou muito bonito.
— É uma pérola...
— Pérola este brinco de brilhante?
— Não; falo do Rochinha. É uma verdadeira pérola; você não sabe quem está ali. Vamos lá; creio que não lhe tem ódio...
— Ódio por quê?
— Mas...
Quis a má fortuna do Rochinha que a tia de Maria Luísa viesse ter com ela, de maneira que a prima dele não pôde acabar a pergunta que ia fazer’. E todas essas circunstâncias eram realçadas pelos bens da fortuna, vantagem que Toledo, como pai, considerava de primeira ordem. Tais foram os motivos que o levaram a falar do Vieira à filha, antes mesmo que ele lha fosse pedir. Maria Luísa não se mostrou espantada da revelação.
— Gosta de mim o Vieira? — respondeu ela ao pai. Creio que já o sabia.
— Mas sabias que ele gosta muito?
— Muito, não.
— Pois é verdade. O pior é a figura que estou fazendo...
— Como?
— Falando de coisas sabidas, e... pode ser que ajustadas.
Maria Luísa baixou os olhos, sem dizer nada; pareceu-lhe que o pai não rejeitava a pretensão do Vieira, e temeu desenganá-lo logo dizendo-lhe que não correspondia às afeições do namorado. Esse gesto, além do inconveniente de calar a verdade, teve o de fazer supor o que não era. Toledo imaginou que era vergonha da filha, e uma espécie de confissão. E foi por isso que tomou a falar-lhe, daí a dois dias, com prazer, louvando muito as qualidades do Vieira, o bom conceito em que era tido, as vantagens do casamento. Não seria capaz de impor à filha, nem esse nem outro; mas visto que ela gostava... Maria Luísa sentiu-se fulminada. Adorava e conhecia o pai; sabia que ele não falaria de coisa que lhe não supusesse aceita, e sentiu qual era a sua persuasão. Era fácil retificá-lo; uma só palavra bastava a restituir a verdade. Mas ai entrou Maria Luísa noutra dificuldade; o pai, logo que supôs aceita à filha a candidatura do Vieira, manifestou todo o prazer que lhe daria o consórcio; e esta circunstância é que deteve a moça, e foi a origem dos sucessos posteriores.
A doença de Vieira durou perto de três semanas; Toledo visitou-o duas vezes. No fim daquele tempo, após curta convalescença, Vieira mandou pedir ao pai de Maria Luísa que lhe marcasse dia para a entrevista, que não pudera realizar por motivo da enfermidade. Toledo designou outro dia, e foi a isso que aludiu no fim do capítulo passado.
O pedido do casamento foi feito nos termos usuais, e recebido com muita benevolência pelo pai, que declarou, entretanto, nada decidido sem que fosse do agrado da filha. Maria Luísa declarou que era muito de seu agrado; e o pai respondeu isso mesmo ao pretendente.
V
Não se faz uma declaração daquelas, em tais circunstâncias, sem grande esforço. Maria Luísa lutou primeiramente consigo, mas resolveu enfim, e, uma vez resoluta, não quis recuar um passo. O pai não percebeu o constrangimento da filha; e se não a viu jubilosa, atribuiu-o à natural gravidade do momento. Ele acreditara profundamente que ia fazer a felicidade da moça.
Naturalmente a notícia, apenas murmurada, causou assombro à prima do Rochinha, e desespero a este. O Rochinha não podia crer, ouvira dizer a duas pessoas, mas parecia-lhe falso.
— Não, impossível, impossível!
Mas logo depois lembrou-se de mil circunstâncias recentes, a frieza da moça, a falta de resposta, o desengano lento que lhe dera, e chegava a crer que efetivamente Maria Luísa ia casar com o outro. A prima dizia-lhe que não.
— Como não? interrompeu ele. Acho a coisa mais natural do mundo. Repare bem que ele tem muito mais do que eu, cinco ou seis vezes mais. Dizem que passa de seiscentos contos.
— Oh! protestou a prima.
— Quê?
Não diga isso; não calunie Maria Luísa.
O Rochinha estava desesperado e não atendeu à súplica; disse ainda algumas coisas duras, e saiu. A prima resolveu ir ter com a amiga para saber se era verdade; começava a crer que o fosse, e em tal caso já não podia fazer nada. O que não entendia era o repentino do casamento; não soube sequer do namoro.
Maria Luísa recebeu-a tranqüila, a princípio, mas às interrupções e recriminações da amiga não pôde resistir por muito tempo. A dor comprimida fez explosão; e ela confessou tudo. Confessou que não gostava do Vieira, sem aliás lhe ter aversão ou antipatia; mas aceitara o casamento porque era um desejo do pai.
— Vou ter com ele, interrompeu a amiga, vou dizer-lhe que...
— Não quero, interrompeu vivamente a filha de Toledo; não quero que lhe diga nada.
— Mas então hás de sacrificar-te?...
— Que tem? Não é difícil o sacrifício; o meu noivo é um bom homem; creio até que pode fazer a felicidade de uma moça.
A prima do Rochinha estava impaciente, nervosa, desorientada; batia com o leque no joelho, levantava-se, sacudia a cabeça, fechava a mão; e tornava a dizer que ia ter com Toledo para contar-lhe a verdade. Mas a outra protestava sempre; e da última vez declarou-lhe peremptoriamente que seria inútil qualquer tentativa; estava disposta a casar com o Vieira, e nenhum outro.
A última palavra era clara e expressiva; mas por outro lado traiu-a, porque Maria não o pôde dizer sem visível comoção. A amiga compreendeu que o Rochinha era amado; ergueu-se e pegou-lhe nas mãos.
— Olhe, Maria Luísa, não direi nada, não farei nada. Sei que você gosta de outro, e sei quem é o outro. Por que há de fazer dois infelizes? Pense bem; não se precipite.
Maria Luísa estendeu-lhe a mão.
— Promete que refletirá? disse-lhe a outra.
— Prometo.
— Reflita, e tudo se poderá arranjar, creio.
Saiu de lá contente, e disse tudo ao primo; contou-lhe que Maria Luísa não amava ao noivo; casava, porque lhe parecia que era agradável ao pai. Não esqueceu dizer que alcançara a promessa de Maria Luísa de que refletiria ainda sobre o caso.
— E basta que ela reflita, concluiu, para que tudo se desfaça.
— Crê?
— Creio. Ela gosta de você; pode estar certo de que gosta e muito.
Um mês depois casavam-se Maria Luísa e Vieira.
VI
Segundo o Rochinha confessou à prima, a dor que ele padeceu com a notícia do casamento não podia ser descrita por nenhuma língua humana. E, salvo a exageração, a dor foi isso mesmo. O pobre rapaz rolou de uma montanha ao abismo, expressão velha, mas única que pode dar bem o abalo moral do Rochinha. A última conversa da prima com Maria Luísa tinha-o principalmente enchido de esperanças, que a filha de Toledo cruelmente desvaneceu. Um mês depois do casamento o Rochinha embarcava para a Europa.
A prima deste não rompeu as relações com Maria Luísa, mas as relações esfriaram um pouco; e nesse estado duraram as coisas até seis meses. Um dia encontraram-se casualmente, falaram de objetos frívolos, mas a tristeza de Maria Luísa era tamanha, que feriu a atenção da amiga.
— Estás doente? disse esta.
— Não.
— Mas tens alguma coisa?
— Não, nada.
A amiga supôs que houvesse algum desacordo conjugal, e, porque era muito curiosa, não deixou de ir alguns dias depois à casa de Maria Luísa. Não viu desacordo nenhum, mas muita harmonia entre ambos, e extrema benevolência da parte do marido. A tristeza de Maria Luísa tinha momentos, dias, semanas, em que se manifestava de um modo intenso; depois apagava-se ou diminuía, e tudo voltava ao estado habitual.
Um dia, estando em casa da amiga, Maria Luísa ouviu ler uma carta do Rochinha, vinda nesse dia da Europa. A carta tratava de coisas graves; não era alegre nem triste. Maria Luísa empalideceu muito, e mal pôde dominar a comoção. Para distrair-se abriu um álbum de retratos; o quarto ou quinto retrato era do Rochinha; fechou apressadamente e despediu-se.
— Maria Luísa ainda gosta dele, pensou a amiga.
Pensou isto, e não era pessoa que se limitasse a pensá-lo: escreveu-o logo ao primo, acrescentando esta reflexão: “
O Rochinha leu a carta com grande saudade e maior satisfação; mas fraqueou logo, e achou que a notícia era naturalmente falsa ou exagerada. A prima enganava-se, decerto; tinha o intenso desejo de os ver casados, e buscava alimentar a chama para o fim de uma hipótese possível. Não era outra coisa. E foi essa a linguagem da resposta que lhe deu.
Ao cabo de um ano de ausência, voltou o Rochinha da Europa. Vinha alegre, juvenil, curado; mas, por mais que viesse curado, não pôde ver sem comoção Maria Luísa, dai a cinco dias, na rua. E a comoção foi ainda maior, quando ele reparou que a moça empalidecera muito.
— Ama-me ainda, pensou ele.
E esta idéia luziu no cérebro dele e o acendeu de muita luz e vida. A idéia de ser amado, apesar do marido, e apesar do tempo (um ano!), deu ao Rochinha uma alta idéia de si mesmo. Pareceu-lhe que, rigorosamente, o marido era ele. E (coisa singular!) falou do encontro à prima sem lhe dar notícia da comoção dele e de Maria Luísa, nem da suspeita que lhe ficara de que a paixão de Maria Luísa não morrera. A verdade é que os dois encontraram-se segunda vez e terceira, em casa da prima do Rochinha, e a quarta vez na casa do próprio Vieira. Toledo era morto. Da quarta vez à quinta vez, a distância é tão curta, que não vale a pena falar nisso, senão para o fim de dizer que vieram logo atrás a sexta, a sétima e outras.
Para dizer a verdade toda, as visitas do Rochinha não foram animadas nem até desejadas por Maria Luísa, mas por ele mesmo e pelo Vieira, que desde o primeiro dia achou-o extremamente simpático. O Rochinha desfazia-se, na verdade, com o marido de Maria Luísa; tinha para ele, as mais finas atenções, e desde o primeiro dia desacanhou-o, por meio de uma bonhomia, que foi a porta aberta da intimidade.
Maria Luísa, ao contrário, recebeu as primeiras visitas do Rochinha com muita reserva e frieza. Achou-as até de mau gosto. Mas é difícil conservar uma opinião, quando há contra ela um sentimento forte e profundo. A assiduidade amaciou as asperezas, e acabou por avigorar a chama primitiva. Maria Luísa não tardou em sentir que a presença do Rochinha lhe era necessária, e até pela sua parte dava todas as mostras de uma paixão verdadeira, com a restrição única de que era extremamente cautelosa, e, quando preciso, dissimulada.
Maria Luísa aterrou-se logo que conheceu o estado do seu coração. Ela não amava o marido, mas estimava-o muito, e respeitava-o. O renascimento do amor antigo pareceu-lhe uma perfídia; e, desorientada, chegou a ter idéia de contar tudo a Vieira; mas retraiu-se. Tentou então outro caminho, e começou a fugir das ocasiões de ver o antigo namorado; plano que não durou muito tempo. A assiduidade do Rochinha teve interrupções, mas não cessou nunca de todo, e ao fim de mais algumas semanas, estavam as coisas como no primeiro dia.
Os olhos são uns porteiros bem indiscretos do coração; os de Maria Luísa, por mais que esta fizesse, contaram ao Rochinha tudo, ou quase tudo o que se passava no interior da casa, a paixão e a luta com o dever. E o Rochinha alegrou-se com a denúncia, e pagou aos delatores com a moeda que mais os podia seduzir, por modo que eles dai em diante não tiveram outra coisa mais conveniente do que prosseguir na revelação começada.
Um dia, animado por um desses colóquios, o Rochinha lembrou-se de dizer a Maria Luísa que ele ia outra vez para a Europa. Era falso; não pensara sequer em semelhante coisa; mas se ela, aterrada com a idéia da separação, lhe pedisse que não partisse, o Rochinha teria grande satisfação, e não precisava de outra prova de amor. Maria Luísa, com efeito, empalideceu.
— Vou naturalmente no primeiro paquete do mês que vem, continuou ele.
Maria Luísa baixara os olhos; estava ofegante, e lutava consigo mesma. O pedido para que ele ficasse esteve quase a saltar-lhe do coração, mas não chegou nunca aos lábios. Não lhe pediu nada, deixou-se estar pálida, inquieta, a olhar para o chão, sem ousar encará-lo. Era positivo o efeito da notícia; e o Rochinha não esperou mais nada para pegar-lhe na mão. Maria Luísa estremeceu toda, e ergueu-se. Não lhe disse nada, mas afastou-se logo. Momentos depois, saía ele reflexionando deste modo:
— Faça o que quiser, ama-me. E até parece que muito. Pois...
VII
Oito dias depois, soube-se que Maria Luísa e o marido iam para Teresópolis ou Nova Friburgo. Dizia-se que era moléstia de Maria Luísa, e conselho dos médicos. Não se dizia, contudo, os nomes dos médicos; e é possível que esta circunstância não fosse necessária. A verdade é que eles partiram rapidamente, com grande mágoa e espanto do Rochinha, espanto que, aliás, não durou muito tempo. Ele pensou que a viagem era um meio de lhe fugir a ele, e concluiu que não podia haver melhor prova da intensidade da paixão de Maria Luísa.
Não é impossível que isto fosse verdade; essa foi também a opinião da amiga; essa será a opinião da leitora. O certo é que eles seguiram e por lá ficaram, enquanto o Rochinha meditava na escolha da enfermidade que o levaria também a Nova Friburgo ou Teresópolis. Andava nessa indagação, quando se recebeu na corte a notícia de que o Vieira sucumbira a uma congestão cerebral.
— Feliz Rochinha! pensou cruelmente a prima, ao saber da morte do Vieira.
Maria Luísa desceu logo depois de enterrar o marido. Vinha sinceramente triste; mas excepcionalmente bela, graças às roupas pretas.
Parece que, chegada a narrativa a este ponto, dispensar-se-ia o auxílio do narrador, e as coisas iam por si mesmas. Mas onde ficaria o caso da viúva, que deu que falar a um bairro inteiro? A amiga perguntou-lhe um dia se queria enfim casar com o Rochinha, agora, que nada mais se opunha ao consórcio de ambos.
— Ele é que o pergunta? disse ela.
— Quem o pergunta sou eu, disse a outra; mas há quem ignore a paixão dele?
— Crês que me ame?
— Velhaca! tu sabes bem que sim. Vamos lá; queres casar?
Maria Luísa deu um beijo na amiga; foi a sua resposta. A amiga, contente, enfim, de realizar a sua primitiva idéia, correu à casa do primo. Rochinha hesitou, olhou para o chão, torceu a corrente do relógio entre os dedos, abriu um livro de desenhos, arranjou um cigarro, e acabou dizendo que...
— Quê? perguntou ansiosa a prima.
— Que não, que não tinha idéia de casar.
A estupefação da prima daria outra novela. Tal foi o caso da viúva.
Fonte: alecrim.inf.ufsc.br