CONTOS DE MACHADO DE ASSIS: NEM UMA NEM OUTRA e O ASTRÓLOGO
NEM UMA NEM OUTRA
I
Uma tarde do mês de março de 1860, entrava no Hotel Ravot um velho mineiro, que, nesse mesmo dia, chegara de Mar de Espanha. Trazia um camarada consigo e alojou-se num dos aposentos do hotel, tendo o cuidado de restaurar as forças com um excelente jantar.
O velho representava ter cinqüenta anos, e eu peço perdão aos homens que têm essa idade sem todavia estarem velhos. O viajante de quem se trata, posto viesse de um clima conservador, estava todavia alquebrado. Via-se pela cara que não era homem inteligente, mas tinha nos traços severos do rosto os sinais positivos de uma grande vontade. Era alto, um pouco magro, tinha os cabelos todos brancos. No entanto, era alegre, e desde que chegou à corte divertia-se muito com os espantos do criado que pela primeira vez saía da sua província para vir ao Rio de Janeiro.
Quando acabaram de jantar, amo e criado entraram a conversar amigavelmente e com aquela boa franqueza mineira tão apreciada pelos que conhecem a província. Depois de rememorarem os incidentes da viagem, depois de comentarem o pouco que o criado conhecia do Rio de Janeiro, entraram ambos no principal assunto que trouxera o amo ao Rio de Janeiro.
Amanhã, José, disse o amo, precisamos ver se descobrimos meu sobrinho. Não vou daqui sem levá-lo comigo.
— Ora, sr. capitão, respondia o criado, eu acho bem difícil encontrar seu sobrinho numa cidade tamanha. Só se ficarmos aqui um ano inteiro.
— Qual um ano! Basta anunciar no Jornal do Commercio, e se não for bastante vou à polícia, mas hei de achá-lo. Tu lembras-te dele?
— Não me lembro nada. Vi-o só uma vez e há tanto tempo...
— Mas não o achas um bonito rapaz?
— Naquele tempo era...
— Há de estar melhor.
O capitão sorriu depois de pronunciar estas palavras; mas o criado não lhe viu o sorriso, nem lho perceberia, que é justamente o que acontece aos leitores.
A conversa parou nisto.
No dia seguinte, a primeira coisa em que o capitão Ferreira cuidou, logo depois do almoço, foi em levar um anúncio ao Jornal do Commercio, concebido nos seguintes termos:
Deseja-se saber onde mora o senhor Vicente Ferreira para negócio do seu interesse.
Apenas deixou o anúncio, descansou o nosso capitão e ficou a esperar uma resposta.
Mas, contra a expectativa, não apareceu resposta nenhuma no dia seguinte, e o capitão foi obrigado a repetir o anúncio.
A mesma coisa.
O capitão fez repetir o anúncio durante oito dias, sem adiantar um passo, mandou pô-lo em grandes tipos; mas continuava o mesmo silêncio. Convenceu-se por fim que o sobrinho não estava no Rio de Janeiro.
— Fizemos a viagem inutilmente, disse o capitão ao criado; voltemos para Mar de Espanha.
O criado alegrou-se com a idéia de voltar; mas o velho estava triste.
Para distrair-se de sua tristeza, saiu o capitão a dar um passeio depois do almoço, e dirigiu-se para os lados do Passeio Público.
Justamente na Rua do Passeio pareceu ver entrar em uma casa um sujeito que de longe lhe pareceu o sobrinho.
O velho apressou o passo e chegou à porta do corredor por onde entrara o vulto, mas não achou ninguém. Quem quer que era tinha já subido a escada.
Que fazer?
Lembrou-se de ficar na porta à espera; mas podendo ser que se houvesse enganado, a espera seria, sobre fastidiosa, inútil. O capitão lembrou-se de bater palmas.
Com efeito, subiu o primeiro lanço da escada e bateu palmas. Pouco depois veio abrir-lhe a cancela um moço representando ter vinte e cinco anos de idade, a quem o capitão, apenas o viu, gritou com toda a força dos seus pulmões.
— Vicente!
— Quem é?
O capitão subiu os degraus sem responder e chegou ao patamar gritando:
— Pois não me conheces, sobrinho ingrato?
Dizer isto e atirar-se-lhe aos braços foi a mesma coisa. O rapaz abraçou ternamente o tio, não sem um pouco de acanhamento em que o capitão não reparou.
— Entre cá para a sala, meu tio, disse Vicente.
Entraram na sala, e se os olhos do tio fossem mais indiscretos teriam visto que, justamente no momento em que ele entrava na sala, saiu por um corredor interno um vestido de mulher.
Mas o capitão Ferreira ia tão embebido no sobrinho e tão contente por tê-lo finalmente encontrado, que não reparou em coisa alguma.
— Ora, graças a Deus que te encontro! disse ele sentando-se numa cadeira que lhe oferecia o rapaz.
— Quando chegou?
— Há dez dias. Não sabendo onde moravas, anunciei no Jornal do Commercio todos os dias, e sempre em vão. Não leste o anúncio?
— Meu tio, eu não leio jornais.
— Tu não lês jornais?
— Não, senhor.
— Homem, fazes bem; mas ao menos agora seria conveniente que houvesse lido; mas para isso era preciso que eu te avisasse, e eu não sabia da casa...
— Já vê... disse Vicente sorrindo.
— Pois, senhor, acho-te bem disposto. Estás muito melhor do que a última vez que lá foste à fazenda; creio que há já cinco anos.
— Pouco mais ou menos.
— Tudo por lá ficou bom, mas com saudades de ti. Por que diabo não apareces?
— Meu tio, ando tão ocupado...
— Sim, creio que estás aprendendo a tocar piano, disse o capitão olhando para o instrumento que via na sala.
— Eu? disse o rapaz; não, não sou eu, é um amigo.
— Que mora contigo?
— Justo.
— Vocês moram bem; e estou capaz de vir para aqui uns dias antes de voltar para Minas.
O rapaz empalideceu, e por muito pouca perspicácia que tenha o leitor há de compreender que esta palidez está ligada à fuga do vestido de que lhe falei acima.
Não respondeu coisa alguma à proposta do tio, e este foi o primeiro a romper a dificuldade, dizendo:
— Mas para quê? demoro-me tão pouco tempo que não vale a pena; e além disso, pode o teu amigo não gostar...
— Ele é um pouco esquisito.
— Ora aí está! E eu sou muito esquisito, e portanto, não podemos fazer conciliação. O que eu quero, Vicente, é falar-te sobre um importantíssimo negócio, único que me traz ao Rio de Janeiro.
— Um negócio?
— Sim; mas agora não temos tempo; adiemos para outra ocasião. Apareces no Ravot hoje?
— Lá irei.
— Olha, vai jantar comigo, sim?
— Vou, meu tio.
— Anda daí.
— Agora não me é possível; tenho de esperar o meu companheiro; mas pode ir que eu lá estarei para jantar.
— Ora, bem, não me faltes.
— Não, senhor.
O capitão abraçou outra vez o sobrinho e saiu radiante de alegria.
Apenas o tio chegou à porta da rua, Vicente, que tinha voltado e sala e estava à janela, sentiu que lhe tocavam por trás.
Voltou-se.
Uma moça — a do vestido — estava por trás dele, e lhe perguntava sorrindo:
— De onde te veio este tio?
— De Minas; não contava agora com ele, tenho de lá ir jantar.
— Ora...
— Desculpa; é um tio.
— Vá, disse ela sorrindo, faço o sacrifício ao tio. Mas, olha, vê se mo envias depressa para Minas.
— Descansa; o mais depressa que me for possível.
II
Vicente foi exato na promessa.
O capitão Ferreira que já estava impaciente, apesar de não ser tarde, andava da sala para a janela, olhando para todos os lados, a ver se descobria sinais do sobrinho. Ora, o sobrinho entrou justamente numa ocasião em que ele estava na sala; um criado do hotel levou-o ao aposento do capitão, aonde Vicente entrou justamente na ocasião em que o capitão ia para a janela, de maneira que foi uma grande surpresa para o tio ver o sobrinho repimpado numa cadeira quando menos o esperava.
— Por onde diabo entraste tu?
— Pela porta.
— É singular; não te senti entrar. Ora, ainda bem que vieste; são horas de jantar, e é bom que jantemos antes, a fim de termos tempo para conversarmos a respeito do negócio de que te falei.
Vicente estava alegre e ruidoso como era do seu natural. A entrada inesperada do tio na casa da Rua do Passeio é que o tinha tornado acanhado e hesitante; agora, porém, que já não tinha motivos para hesitações nem acanhamento, deu o rapaz largas ao seu gênio folgazão.
A surpresa foi agradável para o capitão Ferreira, que não tinha a insuportável mania de querer moços velhos, e aceitava o gênio de todas as idades e de todos os temperamentos.
Acabando o jantar, o capitão foi com o sobrinho para o seu aposento e aí começou a conversa importante que o trouxera à corte.
— Primeiramente, disse o velho, deixa-me puxar-te as orelhas pela tua prolongada ausência lá de casa, onde ias ao menos uma vez por ano. Que diabo andas fazendo aqui?
— Meu tio, ando muito ocupado.
— Graves negócios, não?
— Não graves, porém, maçantes.
— Sim? Imagino. Estás empregado?
— Numa casa comercial, onde ganho alguma coisa, e isso junto com o pouquinho que me ficou de minha mãe...
— Eram uns vinte contos, não pode ser muito, talvez não seja nada.
— Isso está intacto.
— Confesso, disse o velho, que não te supunha tão econômico. Mas por que razão não arranjaste uma licença para ires ver-me à fazenda?
— No comércio é difícil.
— Pois mandava-se o emprego ao diabo; lá em casa há um canto para um parente.
Vicente não respondeu; o velho continuou:
— E é justamente para isto que eu vim falar-te.
— Ah! disse Vicente arregalando os olhos.
— Aposto que recusas?
— Recusar? Mas...
— Estás com pouca vontade, e eu no teu caso faria o mesmo; mas não se trata só de abandonar a corte para ires encafuar-te numa fazenda. Para um rapaz a mudança há de ser difícil. A carne é dura de roer, mas eu trago-te o molho.
Dizendo isto, o capitão fitava os olhos do rapaz cuidando ver neles uma curiosidade misturada de alegria. Viu a curiosidade, mas não viu a alegria. Não se perturbou, e continuou:
— Teu pai, que era meu irmão, incumbiu-me de velar por ti, e fazer-te feliz. Até aqui tenho cumprido o que prometi, porque sendo mais feliz na corte, não te forcei a ir viver comigo na fazenda; e quando quiseste ter um emprego, esse que tens agora, hás de lembrar-te que alguém to ofereceu.
— É verdade.
— Pois bem, foi por iniciativa minha.
— Ah! foi meu tio?
— Pois então? disse o velho, batendo-lhe na perna a rir; cuidavas que eu ignorava o teu emprego? Se eu mesmo to dei; e mais, tenho indagado do teu comportamento na casa, e sei que é exemplar. Já por três vezes mandei dizer ao teu patrão que te desse licença por algum tempo, e ele mesmo, segundo me consta, falou-te nisso, mas tu recusaste.
— É verdade, meu tio, respondeu Vicente; e eu não sei como lhe agradeça...
— O haveres recusado visitar-me?
— Confesso que...
— Compreendo o motivo; os rapazes da corte — as delicias de Cápua, como diz o vigário Tosta — eis a causa.
Vicente caía das nuvens com todas estas notícias que lhe dava o capitão, ao passo que o capitão ia desenrolando-se sem intenção de afrontar nem censurar o rapaz... O capitão era um bom velho; compreendia a mocidade, e desculpava-lhe tudo.
— Ora bem, continuou ele, quem fez tanto por ti, entende que é chegado o momento de fazer-te feliz de outra maneira.
— Qual maneira? perguntou Vicente curioso e ao mesmo tempo assustado com o gênero de felicidade que lhe anunciava o tio.
— De uma maneira tão velha como Adão e Eva, o casamento. Vicente empalideceu; esperava tudo, menos o casamento. E que casamento seria? O velho não disse mais nada; Vicente gastou alguns minutos em formular uma resposta, que seria ao mesmo tempo une fin de non recevoir.
— Que achas? respondeu finalmente o velho.
— Acho, respondeu resolutamente o rapaz, que meu tio é em extremo bondoso comigo em me propor o casamento para minha felicidade. Com efeito, parece que o casamento é o remate natural da vida, e por isso aceito com braços abertos a sua idéia.
O velho sorria de contentamento, e ia já abraçá-lo quando o sobrinho acabou o discurso.
— Mas, acrescentou Vicente, a dificuldade está na esposa, e eu por enquanto não amo a ninguém.
— Não amas a ninguém? disse o velho deitando-se; mas então cuidas que eu vinha à corte só para te propor um casamento? Trago duas propostas — a do casamento e a da mulher. Não amas a mulher? Hás de vir a amá-la, porque ela já te ama.
Vicente estremeceu; a questão agora tornava-se mais complicada. Ao mesmo tempo a idéia de ser amado sem que ele soubesse nem tivesse feito nenhum esforço, era uma coisa que lhe sorria à vaidade. Entre estes dois sentimentos contrários, o rapaz achou-se embaraçado para dar uma resposta qualquer.
— A mulher que te destino e que te ama, é minha filha Delfina.
— Ah! a prima? Mas ela é criança...
— Era há cinco anos; agora está com dezessete anos, e creio que a idade é própria para um consórcio. Aceitas, não?
— Meu tio, respondeu Vicente, eu aceitaria com muito prazer a sua idéia; mas, posto que eu reconheça toda a vantagem desta união, contudo, não quero fazer uma moça infeliz, e é o que pode acontecer se eu não amar minha mulher.
— Dar-lhe-ás pancadas?
— Oh! perdão! disse Vicente, não sem esconder um sentimento de indignação que lhe provocara a pergunta do velho. Mas não amando a uma pessoa que me ama, é fazê-la infeliz.
— Histórias da vida! disse o velho levantando-se e passeando pela sala; isto de amor em casamento é uma burla; basta que se estimem e se respeitem; é o que eu exijo e nada mais. Vê lá; em troca disso, dou-te a minha fortuna toda; bem sei que isto é o menos para ti; mas ter mulher bonita (porque Delfina é uma jóia), meiga, dócil, é uma fortuna que só um pateta pode recusar...
— Eu não digo que...
— Um pateta, ou um estouvado, como tu; um estouvado, que abandonou a casa de comércio, em que se achava, por um capricho, uma simples desinteligência com o dono da casa... Olhas espantado para mim? É verdade, meu rico; soube de tudo isso: e é essa a razão de não saberes tu quando aqui cheguei. Creio ao menos que estarás empregado?
— Estou, balbuciou o moço.
O capitão estava já zangado com as recusas do sobrinho, e não se pôde conter; disse-lhe o que sabia. Vicente, que o cuidava iludido acerca da saída da casa em que estivera, recebeu a notícia como uma bala de 150.
O velho continuou a passear silencioso. Vicente deixou-se estar assentado sem dizer palavra.
No fim de alguns minutos, voltou o capitão à sua cadeira e acrescentou:
— Não me sejas palerma; atende que eu venho fazer a tua felicidade. Tua prima suspira por ti. Só o soube quando o filho do coronel Vieira foi lá pedi-la em casamento. Disse-me ela então que só se casaria contigo; e eu que a estremeço, quero fazer-lhe a vontade. Vamos; não posso esperar; decide-te.
— Meu tio, disse Vicente depois de alguns instantes, não posso dar-lhe uma resposta definitiva; mas afirmo que o que eu puder fazer estará feito.
— Boa confiança devo eu ter nas tuas palavras!
— Por quê?
— Queres saber por quê? é porque eu suponho que andarás por aí perdido, que sei eu? Como se perdem os rapazes de hoje.
— Oh! quanto a isso, juro...
— Não quero juramentos, quero uma resposta.
O capitão Ferreira era um homem de vontade; não admitia recusas, nem sabia propor coisas daquelas, quando lhe não assistia direito legal. Vicente até então vivera independente do tio; era natural que nunca contasse com a fortuna dele. Querer impor-lhe o casamento por aquele modo, era arriscar a negociação, afrontando o orgulho do moço. O velho não reparava nisso, ficou muito admirado quando o sobrinho respondeu secamente às últimas palavras dele:
— Pois bem, a minha resposta é simples: não me caso.
Seguiu-se a estas palavras um profundo silêncio; o velho ficou fulminado.
— Não te casas? perguntou ele no fim de longos minutos.
O rapaz fez um sinal negativo.
— Reparaste bem na resposta que me deste?
— Reparei.
— Adeus.
E dizendo isto, o velho levantou-se e dirigiu-se para o quarto sem lhe dirigir um olhar sequer.
Vicente compreendeu que estava despedido e saiu.
Quando chegou à casa, achou a moça que já tivemos ocasião de ver no primeiro capítulo, a qual o recebeu com um abraço que era ao mesmo tempo um ponto de interrogação.
— Briguei com meu tio, disse o moço sentando-se.
— Ah!
— Adivinha o que ele queria?
— Mandar-te para fora daqui?
— Casar-me com a filha dele e fazer-me seu herdeiro.
— Recusaste?
— Recusei.
A moça ajoelhou-se diante de Vicente e beijou-lhe as mãos.
— Que é isto, Clara?
— Obrigada! murmurou ela.
Vicente levantou-a e beijou-lhe por sua vez as mãos.
— Tolinha! Pois há nisto motivo para me agradeceres? E chorando! Clara, deixa-te de lágrimas! Eu não gosto de ver uma moça chorona... Vamos! ri-te.
Clara sentou-se calada; via-se-lhe a alegria no rosto, mas uma alegria misturada de tristeza.
— Quem sabe? disse ela no fim de algum tempo; quem sabe se fizeste bem recusando?
— Essa agora!
— Recusaste por minha causa, e eu...
— Já vejo que fiz mal em falar-te nisto. Ora, vamos... nada de tolices; anda passear.
Vicente Ferreira, desde que lhe morrera a mãe, deixara o interior da província de S. Paulo, aonde vivera, e estabeleceu-se na corte com o pouco que herdara; algum tempo empregou-se, e já sabemos que por influência do tio, que deveras o estimava. Era um rapaz um tanto orgulhoso, e imaginava que viver com o tio era mostrar-se adulador da fortuna dele, idéia esta de que fugia sempre. Quando estava em S. Paulo visitara muitas vezes o tio; mas, depois que viera para a corte, nunca mais o fez. Além dos sentimentos que já apontamos acima, não queria deixar a casa ainda que com licença do patrão, que aliás era o primeiro a oferecer-lha; e finalmente a Clara da Rua do Passeio tinha grande parte na decisão do rapaz.
Por que essa influência e como começara ela?
Apressemo-nos a tirar do espírito do leitor uma idéia que porventura já lhe tenha surgido, e vem a ser a de que a nossa Clara é uma Margarida Gauthier lavando-se nas águas do amor das culpas passadas.
Clara tinha sido raptada de casa de seus pais por um amigo de Vicente, ou pelo menos o sujeito que andava com ele — e abandonada no fim de um mês pelo tratante, que embarcou para Buenos Aires.
A moça achou-se só um dia de manhã, sem arrimo nenhum, nem esperança dele. A primeira idéia que teve foi matar-se; nessa resolução entrou por muito o amor que ainda tinha pelo rapaz. Mas o medo, a educação religiosa que lhe haviam dado depressa lhe arredaram do espírito semelhante idéia.
No meio da sua aflição lembrou-se de Vicente, que lá fora à casa dela, uma vez, em companhia do fugitivo Enéas. Mandou-o chamar e contou-lhe a sua situação. Vicente ainda não sabia da fuga do amigo, e ficou admirado que ele houvesse cometido semelhante ato de covardia. Mas, sabendo que pelo lado da justiça o raptor nada temia, admirou-se da fuga sem outro motivo aparente além da questão do rapto, motivo que não era motivo, porque um homem que furta uma moça tem sempre ânimo para conservá-la durante algum tempo, até que possa a fuga completar a obra do rapto: a audácia coroada pela covardia.
Ora, esse tempo nunca é simplesmente um mês.
Outra causa devia haver, e Vicente tratou de indagar nesse mesmo dia sem nada obter; no dia seguinte, porém, a gazetilha do Jornal do Commercio tirou todas as dúvidas: noticiava a fuga do homem com alguns contos de réis.
Para acabar já com a história deste sujeito, acrescentarei que, depois de longos trabalhos do mesmo gênero, em Buenos Aires, fugiu ele para o Chile, onde consta que é atualmente empregado em umas obras das estradas.
A moça contou a Vicente qual era a sua posição, e pediu-lhe por esmola o seu auxílio.
Vicente tinha bom coração; achou que naquele estado não devia fazer à moça um discurso inútil sobre o seu ato; cumpria-lhe socorrê-la. Tirou, portanto, um conto de réis do pecúlio que tinha e deu a Clara os primeiros auxílios necessários; alugou-lhe casa e uma criada; preparou-lhe uma mobília e despediu-se.
Clara recebeu agradecida e envergonhada os auxílios de Vicente; mas ao mesmo tempo não via nos atos do rapaz mais do que um sentimento de interesse.
No fim de quinze dias, Vicente foi à casa de Clara e disse-lhe que, não podendo adiantar-lhe tudo quanto ela precisasse e não devendo ela ficar exposta aos perigos da sua situação, era conveniente que procurasse trabalhar, e para isso escolhesse o que mais lhe conviesse.
Clara achou justas as observações de Vicente, e ficou assentado que a moça trabalharia de costureira em casa de alguma modista.
Daí a dias estava a moça empregada.
Entretanto, Vicente não voltou lá mais; de quando em quando recebia um recado de Clara, mas era sempre em assunto que lhe dispensava uma visita pessoal.
O procedimento do moço não deixou de influir na rapariga, que já se arrependia do seu primeiro juízo.
Um dia adoeceu Vicente, e Clara apenas o soube, obteve licença da modista e foi tratar do enfermo com a dedicação e zelo de uma irmã. A doença de Vicente durou dez ou doze dias; durante esse tempo não se desmentiu a solicitude da moça.
— Obrigado, disse Vicente à rapariga, quando se levantou da cama.
— Por quê? Sou eu quem lhe deve.
— Já pagou de sobra.
— Oh! nunca! disse Clara. O senhor livrou-me a vida, é verdade; mas não fez só isto, livrou-me de entrar numa carreira fatal... e mais...
— E mais nada, disse Vicente.
A moça voltou o rosto e enxugou uma lágrima.
— Por que chora? perguntou Vicente.
Clara não respondeu, mas levantou os olhos para ele rasos d’alma quando não vinha doutra parte.
— Meu caro genro, disse o capitão sentenciosamente, guardado está o bocado para quem o há de comer. Vim à corte para que Delfina casasse com Vicente, e vou para a roça com o genro que não esperava nem conhecia. Digo isto porque eu volto para a roça e não posso separar-me de Delfina.
— Acompanhá-lo-ei, respondeu Correia.
O capitão achou conveniente participar a Vicente o casamento da filha, mas desde logo viu o que havia de delicado naquilo, não porque cuidasse ferir-lhe o coração, já livre de uma momentânea impressão, mas porque sempre lhe seria ferir o amor-próprio.
Havia três dias que Vicente não aparecia.
— Ia escrever-te, disse o capitão.
— Por quê?
— Dar-te uma notícia de que te vais admirar.
— Qual?
— Delfina casa-se.
— A prima?
— Sim.
Houve um pequeno silêncio; a notícia abalou o rapaz, que ainda gostava da moça, apesar dos ciúmes por Clara.
O velho esperou alguma observação por parte de Vicente, e vendo que ela não aparecia, continuou:
— É verdade, casa-se daqui a dois meses.
— Com quem? perguntou Vicente.
— Com o Correia.
Quando Vicente perguntou pelo noivo de Delfina, já o desconfiara, por se lembrar de que uma noite reparara em certos olhares trocados entre os dois.
Mas a declaração do tio não deixou de o abalar profundamente; um pouco de amor e um pouco de despeito causaram essa impressão.
A conversa ficou neste ponto; Vicente saiu.
Compreende-se a situação do rapaz.
Quando saiu da casa do tio, mil idéias lhe tumultuavam na cabeça. Queria ir brigar com o rival, reclamar de Delfina a promessa tácita que lhe fizera, mil projetos, todos mais extravagantes uns que outros.
Na posição em que se achava, o silêncio era a melhor solução. Tudo mais era ridículo.
Mas o despeito é um mau conselheiro.
Agitado por esses sentimentos, entrou Vicente em casa, onde não encontrava ao menos o amor de Clara.
A moça com efeito estava cada vez mais fria e indiferente ao amor de Vicente. Não se alegrava com as suas alegrias, nem se entristecia com as suas tristezas.
Vicente passou uma noite de desespero.
Preparava-se, entretanto, o casamento.
Vicente achou que não devia voltar à casa do tio, nem procurar o feliz rival. Mas oito dias depois de saber oficialmente do casamento de Delfina, recebeu ele de Correia a seguinte carta:
Meu Vicente,
Tenho hesitado em participar-te uma notícia de que aliás já estás inteirado; caso-me com tua prima. Eu nunca teria pensado em semelhante coisa, se não visse que tu, depois de um ligeiro namoro, ficaste indiferente ao destino da moça.
É claro que já te não importas com ela.
O fato de não a amares abriu a porta ao meu coração, que desde muito se sentia impressionado.
Amamo-nos ambos, e o casamento será daqui a cinqüenta dias.
Espero que o aproves.
Já era teu amigo; agora fico sendo teu parente.
Não precisava isto para apertar os laços de amizade que nos unem. — Teu Correia.
Vicente leu pasmado esta carta em que a audácia da hipocrisia não podia ir mais longe.
Não respondeu.
— Deste modo, pensou Vicente, ele compreenderá que o desprezo e virá talvez pedir-me uma explicação.
Nisto enganou-se o rapaz.
Correia não pedira explicações, nem esperava resposta à carta. A carta era mais um ato de insolência que de hipocrisia. O rapaz queria machucar completamente o amigo.
Vicente esperou debalde uma visita de Correia.
A indiferença exasperou-o ainda mais.
Acrescente-se a isto a situação dele em relação a Clara, que era cada vez pior. Dos arrufos tinham passado às grandes rixas, e a última fora revestida de graves circunstâncias.
Chegou finalmente o dia do casamento de Delfina.
Júlia escolheu também esse dia para casar-se.
Os dois casamentos se fizeram na mesma igreja.
Estas circunstâncias, além de outras, aproximaram Correia de Castrioto. Os dois noivos trataram juntos dos preparativos da festa dupla em que eles eram heróis.
Na véspera do casamento, Castrioto foi dormir em casa de Correia.
— Conversemos das nossas noivas, disse Correia ao romancista.
— Apoiado, respondeu este.
Com efeito, lá se apresentou às dez horas, depois de sair da casa de Alvarenga, onde se despedira da namorada pela última vez, para cumprimentá-la no dia seguinte como noiva.
— Com que então amanhã, disse Correia, estamos casados.
— É verdade, respondeu Castrioto.
— Ainda me parece um sonho.
— E a mim! Pois há seis meses que namoro esta moça sem esperança de conseguir nada. O senhor é que andou depressa. Tão feliz não fui eu, apesar dos meus esforços.
— É verdade; amamo-nos depressa; e muito. Quer que lhe diga? E um pouco esquisito isto de dormir solteiro e acordar noivo. Que lhe parece?
— É verdade, respondeu Castrioto, em voz surda.
— Que tem, amigo? Parece que isso lhe traz idéias sombrias... Vejo-o pensativo... Que tem?
Depois de algum silêncio Castrioto respondeu:
— Eu lhe digo. Minha noiva casa-se comigo mediante uma condição.
— Uma condição?
— Dolorosa.
— Meu Deus! que será?
— A de não escrever mais romances.
— Oh! mas parece que a noiva vale a condição, disse Correia sustando uma gargalhada.
— Vale, respondeu Castrioto, e por isso aceitei-a.
— E depois lá para diante...
— Não; aceitei a condição, hei de cumpri-la. E é por isso que eu, nesta hora solene em que me despeço da vida de solteiro, quero ler-lhe o meu último romance.
Dizendo isto, Castrioto tirou do bolso um formidável rolo de papel, cujo aspecto fez empalidecer o hóspede.
Batiam onze horas.
A leitura do rolo não levava menos de duas horas.
Correia achou-se num destes momentos supremos em que toda a coragem é necessária ao homem.
Mas de que valia a maior coragem deste mundo contra um mau escritor que está disposto a ler uma obra?
Castrioto desenrolou o romance, dizendo:
— O título deste é: Os perigos do amor ou a casa misteriosa.
Correia não podia escapar ao perigo da leitura.
Entretanto, para servi-lo, pediu licença a Castrioto para pôr-se à fresca e deitar-se no sofá.
Feito isto, deu sinal a Castrioto para começar.
O romancista tossiu e entrou a ler o romance.
Quando acabou o primeiro capítulo, voltou-se para Correia e perguntou-lhe:
— Que lhe parece este capítulo?
— Excelente, respondeu Correia.
Começou o segundo capítulo com entusiasmo.
— Que lhe parece este capítulo?
Nenhuma resposta.
Castrioto aproximou-se do hóspede; dormia a sono solto.
— Miserável! disse o romancista, indo deitar-se na cama de Correia.
IX
O dia seguinte era o grande dia.
Para os noivos levantou-se o sol como nunca; para Vicente jamais a luz do sol lhe pareceu tão irônica e zombeteira.
A felicidade de Correia aumentava o despeito do rapaz e dava maiores proporções ao desdém com que o rival o tratava.
Por compensação, aliás fraca em tais circunstâncias — Clara mostrava-se nesse dia mais solícita e amável que nunca. Acordou cantando e rindo. Com o humor da rapariga diminuiu um pouco o aborrecimento de Vicente.
Vicente resolveu não sair nesse dia, e entregar-se todo à companhia de Clara. Mas, de repente, pareceu-lhe que a alegria da moça era um insulto ao seu despeito, imaginou que ela zombara dele.
Disse-lho.
Clara ouviu a censura com altivez e silêncio.
Depois sorrindo desdenhosamente:
— És um extravagante...
Vicente arrependeu-se; quis pedir perdão à moça da suspeita, mas isso seria complicar o ridículo da situação.
Preferiu calar-se.
— Afinal de contas, disse ele, que me importa a mim o casamento? Não casei porque não quis...
E atirou-se a um livro para ler.
Não leu; folheou páginas conduzindo os olhos maquinalmente.
Fechou o livro.
Acendeu dois charutos e apagou-os logo.
Pegou em outro livro e acendeu outro charuto, e repetiria a cena se não viesse o almoço dar-lhe uma distração.
Ao almoço mostrou-se alegre.
— Sabes que estou com grande apetite? disse ele a Clara.
— Sim?
— É verdade!
— Por quê?
— Feliz, continuou Vicente, porque depois de tantos trabalhos estou ao pé de ti, e só a ti pertenço.
A moça sorriu.
— Duvidas? perguntou ele.
— Não duvido.
Vicente continuou:
— Confesso-te que durante algum tempo estive quase obedecendo ao tio, tais eram as insistências dele para que eu me casasse com a deslambida da prima. Felizmente ela namorou-se do outro; estou livre.
— Olha que rompes o guardanapo...
Vicente com efeito dera grande puxão no guardanapo...
A tranqüilidade de Clara contrastava com a agitação de Vicente, e era essa tranqüilidade um pouco cômica, que o despeitava ainda mais.
O dia passou-se do mesmo modo.
Depois de jantar Vicente dispôs-se a dormir.
— Dormir! exclamou Clara. Há de fazer-te mal.
— Qual!
— Olha, vai dar um passeio; é melhor...
— Queres ver-me pelas costas?
— Se cuidas que é isso, fica.
— Estou brincando.
Vicente estava morto por sair.
Ao chegar à rua fez mil projetos. O primeiro foi ir à casa do tio; mas arrependeu-se logo, antevendo o ridículo da cena.
Achou melhor ir a Botafogo.
Já ia entrar num tílburi, quando o projeto lhe pareceu insuficiente.
— Nada; é melhor ir à igreja; assistirei ao casamento, e ameaçarei o Correia; porque aquele patife há de pagar-me!
Encaminhou-se para a freguesia de Santo Antônio, mas parou no caminho.
— Que irei lá fazer?
Nestas alternativas escoou-se a hora.
À noite encaminhou-se para a Rua dos Inválidos, onde morava e logo de longe viu a casa iluminada.
Vicente teve um movimento de furor; levantou o punho fechado e atirou à rua o chapéu de um sujeito que passava.
— Maluco!
Vicente, que estava desesperado por descarregar em alguém a raiva que tinha dentro de si, voltou-se para o sujeito e perguntou-lhe a quem dirigia aquele epíteto.
— Ao senhor! respondeu o indivíduo.
Vicente agarrou-lhe a gola da casaca, e já fervia o soco quando algumas pessoas intervieram e os separaram.
Apaziguado o conflito e dadas as explicações, seguiu Vicente pela rua adiante e deu acordo de si em frente da casa de tio.
A casa estava cheia.
De longe viu sentados em um sofá Correia e Delfina. A moça estava radiante de beleza.
Vicente mordeu o lábio até deitar sangue.
Contemplou aquela cena durante alguns instantes e seguiu adiante absorto em suas meditações.
Justamente na ocasião em que principiou ele a andar, bateu-lhe em cheio a luz de um lampião, e Correia disse baixinho à noiva:
— O primo passou agora ali.
— Deveras? perguntou ela.
— Veio ver-nos.
— Vê um par feliz, disse a moça.
— Felicíssimo! exclamou Correia.
A festa do casamento foi esplêndida; durou até alta noite.
Vicente não quis saber mais nada; dirigiu-se para casa.
Ia triste, abatido, envergonhado. O pior mal era não poder atirar a culpa para cima de ninguém: o culpado era ele.
Entrou em casa pelas dez horas da noite.
Contra o costume, Clara não o esperava na sala, posto houvesse luz. Vicente vinha morto por cair-lhe aos pés e dizer-lhe:
— Sou teu eternamente, porque tu és a única mulher que me tiveste amor!
Não a encontrando na sala, foi à alcova e não a viu. Chamou e ninguém lhe apareceu.
Andou a casa toda e não viu ninguém.
Voltou à sala de visitas e achou um bilhete, assim concebido:
Meu caro, não sirvo para irmã de caridade de corações aflitos. Viva!
Deixo ao espírito do leitor o cuidado de imaginar o furor de Vicente; de um só lance perdera tudo.
Um ano depois as situações dos personagens deste romance eram as seguintes:
Correia, a mulher e o sogro estavam na fazenda; todos felizes. O capitão por ver a filha casada; a filha por amar o marido; e Correia porque, tendo alcançado a desejada fortuna pagara-a com ser bom marido.
Júlia e Castrioto também eram felizes; neste casal o marido era governado pela mulher que se tornara uma rainha em casa. O único desafogo que o marido tinha era escrever furtivamente alguns romances e colaborar num jornalzinho literário que se chamava: O Girassol.
Quanto a Vicente, julgando a regra pelas exceções, e lançando à conta de todos as culpas suas, não queria mais amigos nem amores. Escrevia numa casa comercial, e vivia como um anacoreta. Ultimamente consta que tenciona casar com uma velha... de duzentos contos.
Um amigo, que o encontrou, interrogou-o a esse respeito.
— É verdade, respondeu ele, creio que se efetua o casamento.
— Mas uma velha...
— É melhor; é a hipótese de ser feliz, porque as velhas têm uma fidelidade incomparável e sem exemplo.
— Qual?
— A fidelidade da ruína.
Fonte: alecrim.inf.ufsc.br
O ASTRÓLOGO
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1876
Nunca houve talvez nesta boa cidade quem melhor empunhasse a vara de almotacé que o ativo e sagaz Custódio Marques, morador defronte da sacristia da Sé durante o curto vice-reinado do conde de Azambuja. Era homem de seus quarenta e cinco anos, cheio de corpo e de alma — a julgar pela atenção e fervor com que desempenhava o cargo, imposto pela vereança da terra e pelas leis do Estado. Os mercadores não tinham mais figadal inimigo do que esse olho da autoridade pública. As ruas não conheciam maior vigilante. Assim como uns nascem pastores e outros príncipes, Custódio Marques nascera almotacé; era a sua vocação e apostolado.
Infelizmente, como todo o excesso é vicioso, Custódio Marques, ou por natureza, ou por hábito, transpôs a fronteira de suas atribuições, e passou do exame das medidas ao das vidas alheias, e tanto curava de pesos como de costumes. Dentro de poucos meses, tornou-se o maior indagador e sabedor do que se passava nas casas particulares com tanta exação e individuação, que, uma sua comadre, assídua devota do Rosário, apesar da fama longamente adquirida, teve de lhe ceder a primazia.
— Mas, senhor compadre — dizia ela trespassando no alvo seio volumoso o seu lenço de algodão do tear de José Luís, à Rua da Vala; não, senhor compadre, justiça, justiça. Eu tinha presunção de me não escapar nada ou pouca coisa; mas confesso que você é muito mais fino do que eu.
— E ainda não sei tudo o que queria, comadre Engrácia, replicou ele com modéstia; há, por exemplo, uma coisa que me quebra a cabeça há quinze dias. Pois olhe que não tenho perdido tempo!
— O que é, compadre? — disse ela piscando-lhe os olhos de curiosidade e impaciência. Não é certamente o namoro do sargento-mor Fagundes com a irmã daquele mercador da Rua da Quitanda...
— Isso é coisa velha e revelha, respondeu Custódio levantando os ombros com desdém. Se até o irmão da sujeita já deu pela coisa, e mandou dizer ao Fagundes que fosse cuidar dos filhos, se não queria apanhar uma sova de pau. Afinal, são lérias do mercador. Quem não sabe que a irmã vivia, ainda há pouco tempo... Cala-te, boca!
— Diga, compadre!
— Nada, não digo. É quase meio-dia, e o feijão lá está à minha espera.
A razão dada pelo almotacé tinha só de verdadeira a coincidência cronológica. Era exato estar próxima a hora do jantar. Mas o verdadeiro motivo de interromper a conversa, que se passava à porta da casa da sra. Engrácia foi ter visto o nosso almotacé, ao longe, a esbelta figura do juiz de fora. Custódio Marques despediu-se da comadre e seguiu no encalço do juiz. Logo que se achou a umas oito braças dele, afrouxou o passo a assumiu o ar distraído que até então ninguém pudera imitar. Olhava para o chão, para o interior das lojas, para trás, para todos os lados, menos para a pessoa que era objeto da espionagem e contudo não a perdia de vista, não lhe escapava um único movimento.
O juiz, entretanto, dirigia-se pela Rua da Mãe dos Homens abaixo até à Rua Direita, que era onde morava. Custódio Marques viu-o entrar em casa e retrocedeu para a rua.
— Diabo! dizia ele consigo. Naturalmente, vinha de lá... se é que lá vai de dia... Mas onde?... Ficará para outra vez.
O almotacé seguiu a passo rápido para casa, não sem parar alguns minutos nas esquinas, a varrer a rua transversal com o seu par de olhos de lince. Ali chegando, achou efetivamente o jantar na mesa, um jantar corretamente nacional, puro dos deliciosos galicismos que nos trouxe a civilização.
Vieram para a mesa D. Esperança, filha do almotacé, e D. Joana da Purificação, sua irmã, a quem, por morte da mulher de Custódio Marques, coube a honra de reger a casa. Esperança possuía os mais belos olhos negros da cidade. Haveria cabelos mais lindos, boca mais graciosa, tez mais pura. Olhos, não; nesse particular, podia Esperança medir-se com os mais afamados da colônia. Eram pretos, grandes, rasgados; sobretudo tinham um certo jeito de despedir as setas, capaz de deitar abaixo o mais destro guerreiro. A tia, que a amava em extremo, trazia-a muito abençoada e coberta de mimos; servia-lhe de mãe, camareira e mestra; levava-a às igrejas e procissões, a todas as festas, quando porventura o irmão, por motivo do cargo oficial ou do cargo oficioso, não as podia acompanhar.
Esperança beijou a mão do pai, que a contemplou com olhos cheios de ternura e projetos. Eram estes casá-la, e casá-la nada menos que com um sobrinho do juiz de fora, homem da nobreza da terra, e noivo muito ambicionado de solteiras e viúvas. O almotacé não alcançara até então enredar o moço nas graças da filha; mas forcejava por isso. Uma coisa o tranqüilizava: é que de suas pesquisas não colhera notícia de nenhuma pretensão amorosa da parte do rapaz. Era já muito não ter adversários que combater.
Esperança, entretanto, fazia cálculos muito diferentes, e tratava igualmente de os pôr em execução. Seu coração, ao passo que se não rendia à nobreza do sobrinho do juiz, sentia notável inclinação para o filho do boticário José Mendes — o jovem Gervásio Mendes, com quem se carteava e palestrava à noite, à janela, quando o pai andava em suas indagações por fora, e a tia jogava a bisca com o sacristão da Sé. Esse namoro de uns quatro meses não tinha ares de ceder aos planos de Custódio Marques.
Abençoada a filha, e comido o jantar, foi Custódio Marques cochilar a sesta durante meia hora. A tarde gastou-a ao gamão, na botica vizinha, cujo dono, mais insigne naquele jogo que no preparo das drogas, estatelava igualmente os parceiros e os fregueses. A diferença entre os dois é que para o boticário o gamão era um fim, e para o almotacé um meio. Os dedos corriam e o almotacé ia misturando os remoques próprios do jogo com mil perguntas, ora claras, ora disfarçadas, acerca das coisas que lhe convinha saber; o boticário não hesitava em lhe dar conta das novidades.
Naquela tarde não havia nenhuma. Em compensação, havia um pedido.
— Você, sr. Custódio, é que me podia fazer um grande favor, disse o boticário.
— Qual?
— Aquele negócio dos chãos da Lagoa. Sabe que o senado da Câmara embirra em os tomar para si, quando é positivo que pertencem a meu filho José. Se o juiz de fora quisesse, podia fazer muito neste negócio; e você que é tão íntimo dele...
— Homem, amigo sou, disse Custódio Marques lisonjeado com as palavras do boticário; mas seu filho, deixe-me que lhe diga... sei tudo.
— Tudo o quê?
— Ora! Sei que quando o conde da Cunha tinha de organizar os terços de infantaria auxiliar, seu filho José, não alcançando a nomeação de oficial que desejava, e vendo-se ameaçado de ser alistado na tropa, foi lançar-se aos pés daquela mulher espanhola, que morou na Rua dos Ourives... Pois deveras não sabe?
— Diga, diga sr. Custódio.
— Lançou-se-lhe aos pés para lhe pedir proteção. A sujeita namorou-se dele; e, não lhe digo nada, foi ela quem lhe emprestou o dinheiro com que ele comprou um privilégio da redenção dos cativos, mediante o qual seu filho livrou-se da farda.
— Que peralta! A mim disse-me ele que o cônego Vargas..
— Isto, sr. José Mendes, foi muito malvisto pelos poucos que o souberam. Um deles é o juiz de fora, que é homem severo, apesar...
Custódio Marques engoliu o resto da frase, concluiu-a por outro modo, e saiu prometendo que, em todo caso, iria falar ao juiz. Efetivamente ao anoitecer lá estava em casa deste. O juiz de fora tratava o almotacé com particular distinção. Era ele o melhor remédio das suas melancolias, o mais serviçal sujeito para tudo quanto fosse de seu agrado. Logo que ele entrou, disse-lhe o dono da casa:
— Ora, venha cá, sr. espião, porque me andou você hoje a acompanhar um longo pedaço de tempo?
Custódio Marques empalideceu; mas foi rápida a impressão.
— O que havia de ser? disse ele sorrindo. Aquilo... aquilo que eu lhe disse uma vez, há dias..
— Há dias?
— Sim, senhor. Ando a ver se descubro uma coisa. V. S., que sempre gostou tanto de moças, é impossível que não tenha por aí alguma aventura...
— Deveras? perguntou rindo o juiz de fora.
— Há de haver alguma coisa; e eu hei de descobri-la. V. S. sabe se eu tenho faro para tais empresas. Só se me jurar que...
— Não juro, que não é caso disso; mas posso tirar-te o trabalho da pesquisa. Vivo com recato, como todos sabem; tenho deveres de família...
— Qual! tudo isso é nada quando um rosto bonito... que ele há de ser bonito por força; nem V. S. é pessoa que se deixe aí levar por qualquer figura... Eu verei o que há. Olhe, o que eu posso afiançar é que o que descobrir cá vai comigo para a sepultura. Nunca fui homem de dar com a língua nos dentes.
O juiz de fora riu muito, e Custódio Marques passou daquele assunto para o do filho do boticário, mais por descargo de consciência que por verdadeiro interesse. Contudo, é força confessar que a vaidade de mostrar ao vizinho José Mendes que ele podia influir alguma coisa, sempre lhe afiou a língua um pouco mais do que queria. A conversa foi interrompida por um oficial que trazia ao juiz de fora um recado do conde de Azambuja. O magistrado leu a cartinha do vice-rei e empalideceu um pouco. Não escapou esta circunstância ao almotacé, cuja atenção encarapitou-se toda nos seus olhinhos vivos e perspicazes, enquanto o juiz dizia ao oficial que não tardaria em obedecer às ordens de S. Excia.
— Alguma importunação, naturalmente, disse Custódio Marques com ar de quem queria ser discreto. São as obrigações do cargo; ninguém foge a elas. V. S. precisa de mim?
— Não, sr. Custódio.
— Se precisa, não tenha cerimônia. Bem sabe que eu nunca estou melhor do que ao seu serviço. Se quiser um recado qualquer...
— Um recado? repetiu o magistrado como quem efetivamente precisava de mandar algum.
— O que quiser; fale V. S., que há de ser logo obedecido.
O juiz de fora refletiu um instante, e recusou. O almotacé não teve outro remédio senão deixar a companhia de seu amigo e protetor. Eram nove horas dadas. O juiz de fora preparou-se para acudir ao chamado do vice-rei; dois escravos, com lanternas, o precederam na rua, enquanto Custódio Marques volvia para casa, sem lanterna, apesar das instâncias do magistrado para que aceitasse uma.
A lanterna era um obstáculo para o funcionário municipal. Se a iluminação pública, que só começou no vice-reinado do conde de Resende, fosse naquele tempo sujeita ao voto do povo, pode-se afirmar que o almotacé lhe seria contrário. A escuridão era uma das vantagens de Custódio Marques. Ele a aproveitava em escutar às portas ou surpreender as entrevistas dos namorados às janelas. Naquela noite, porém, mais que tudo o preocupava o chamado do vice-rei e a impressão que ele fez ao juiz de fora. Que seria? Custódio Marques ia cogitando nisso e pouco no resto da cidade. Ainda assim, pôde ouvir alguma coisa da conspiração de vários devotos do Rosário, em casa do barbeiro Matos, para derribar a atual mesa da Irmandade, e viu sair cinco ou seis indivíduos da casa de D. Emerenciana, à Rua da Quitanda, onde ele já havia descoberto que se jogava todas as noites. Um deles, pela fala, pareceu-lhe que era o filho de José Mendes.
— Nisso é que se ocupa aquele peralta! dizia ele consigo.
Mas enganava-se o almotacé. Justamente à hora em que da casa de D. Emerenciana saíam os tais sujeitos, despedia-se Gervásio Mendes da formosa Esperança, com que conversava à janela, desde às sete horas e meia. Gervásio queria prolongar a conversa, mas a filha do almotacé pediu-lhe instantemente que fosse, visto ser hora de voltar o pai. Além disso, a tia de Esperança, irritada com cinco ou seis capotes que lhe dera o sacristão, jurava pelas bentas setas do mártir padroeiro nunca mais pegar em cartas. Verdade é que o sacristão, filósofo e prático, baralhava as cartas com exemplar modéstia, e vencia o despeito de D. Joana, à força de lhe dizer que a fortuna anda e desanda, e que a partida seguinte bem lhe podia ser adversa. D. Joana entre as cartas e as setas escolheu o que lhe parecia ser menos mortífero.
Gervásio cedeu também às rogativas de Esperança.
— Sobretudo, dizia esta, não fiques zangado com papai por ele haver dito...
— Oh! se tu souberes o que foi! interrompeu o filho do boticário. Foi uma calúnia, mas tão torpe que não te posso repetir. Estou certo de que o sr. Custódio Marques não a inventou; repetiu-a somente e fez mal. E foi por culpa dele que meu pai me ameaçou hoje com uma sova de pau. Pau, a mim! E por causa do sr. Custódio Marques!
— Mas ele não te quer mal...
— Eu sei lá!
— Não quer, não, insistiu a moça com meiguice.
— Pode ser que não; mas com os projetos que tem a teu respeito, se vier a saber que tu gostas de mim... E daí pode ser que tu mesma cedas e cases com o...
— Eu! Nunca! Antes meter-me freira.
— Juras?
— Gervásio!
Estalou um beijo que fez levantar a cabeça à tia Joana, e o sacristão explicou dizendo que lhe parecia o chiar de um grilo. O grilo arrancou-se, enfim, à companhia da gentil Esperança, e tinha já tempo de estar acomodado na sua alcova, quando Custódio Marques chegou à casa. Achou tudo em paz. D. Joana levantava a banca do jogo, o sacristão despedia-se, Esperança recolhera-se ao seu quarto. O almotacé encomendou-se aos santos de sua devoção, e dormiu na paz do Senhor.
A palidez do juiz de fora não saiu, talvez, da cabeça do leitor; e, tanto como o almotacé, está ele curioso de saber a causa do fenômeno. A carta do vice-rei dizia respeito a negócio do Estado. Era lacônica; mas terminava com uma frase mortal para o magistrado: “ Se o juiz de fora fosse obrigado ao serviço extraordinário de que lhe falava o conde de Azambuja, interrompia-se um romance, começado cerca de dois meses antes, em que era protagonista uma interessante viuvinha de vinte e seis estios. Esta viuvinha era da província de Minas Gerais; descera da terra natal para entregar em mão do vice-rei uns papéis que queria submeter a Sua Majestade, e ficou presa nas maneiras obsequiosas do juiz de fora.
Alugou casa perto do convento da Ajuda, e ali estava morando, a título de ver a Capital. O romance assumiu proporções grandes, complicou-se o enredo, avultaram as descrições e as peripécias, e a obra ameaçava estender-se a muitos volumes. Nestas circunstâncias exigir do magistrado que se alongasse da Capital algumas semanas, era exigir o mais difícil e aspérrimo. Imagine-se com que alma saiu dali o magistrado.
Qual fosse o negócio de Estado que obrigou aquele chamado noturno, não sei eu, nem importa sabê-lo. O essencial é que durante três dias ninguém arrancou um sorriso aos lábios do magistrado, e que no terceiro dia volveu-lhe a alegria mais espontânea e viva, que até ali tivera. Adivinha-se que a necessidade da jornada desapareceu e que o romance não ficava truncado.
O almotacé foi dos primeiros que viram esta mudança. Preocupado com a tristeza do juiz de fora, não menos o ficou ao vê-lo novamente satisfeito.
— Não sei qual foi o motivo da tristeza de V. S., disse ele, mas espero mostrar-lhe quanto me alegro com vê-lo tornado às suas usuais venturas.
Efetivamente, o almotacé tinha dito à filha que era necessário dar um mimo qualquer, de suas mãos, ao juiz de fora, com quem, se a fortuna a ajudasse, viria a ser aparentada. Custódio Marques não viu o golpe que a filha recebeu com esta palavra; exigia o cargo municipal que ele fosse dali a serviço, e foi, deixando a alma da menina doente de maior aflição.
Entretanto, a alegria do juiz de fora era tal, e tão agudo se ia tornando o romance, que já o feliz magistrado observava menos as costumadas cautelas. Um dia, cerca das seis horas da tarde, passando o almotacé pela Rua da Ajuda, viu sair de uma casa, de nobre aparência, a venturosa figura do magistrado. Sua atenção encrespou as orelhas; e os olhos perspicazes faiscaram de contentamento. Haveria ali um fio? Logo que viu longe o juiz de fora, aproximou-se da casa, como farejando; dali foi à loja mais próxima, onde soube que na dita casa morava a interessante viúva mineira. A eleição de vereador ou um presente de quatrocentos africanos, não o contentaria mais.
— Tenho o fio! dizia ele consigo. Resta-me ir ao fundo do labirinto.
Daí em diante, não houve assunto que distraísse o espírito investigador do almotacé. De dia e de noite, vigiava a casa da Rua da Ajuda, com pertinácia e dissimulação raras; e tão feliz foi que, no fim de cinco dias, tinha certeza de tudo. Auxiliou-o nisso a indiscrição de alguns escravos. Uma vez sabedor da aventura, deu-se pressa em correr à casa do juiz de fora.
— Ainda agora aparece! exclamou este logo que o viu entrar.
— V. S. fez-me a honra de mandar chamar?
— Há meia hora que andam dois emissários em sua procura.
— Eu estava em serviço de V. S.
— Como?
— Não lhe dizia eu que havia de descobrir alguma coisa? perguntou o almotacé piscando os olhos.
— Alguma coisa!
— Sim, aquilo... V. S. sabe a que me refiro... Meteu-se-me em cabeça que V. S. não podia escapar-me.
— Não compreendo.
— Não compreende V. S. outra coisa, disse Custódio Marques deliciando-se com o repassar do ferro na curiosidade do protetor.
— Mas, sr. Custódio, trata-se...
— Trate-se do que se tratar; declaro a V. S. que sou de segredo, e por isso nada direi a ninguém. Que havia de haver algum bico d’ obra, era verdade; andei à espreita, e afinal descobri a moça ... a moça da Rua da Ajuda.
—
— Sim?
—
— É verdade. Fiz a descoberta há dois dias; mas não vim logo porque queria certificar-me bem. Agora, posso dizer-lh que ... sim, senhor ... aprovo. É muito bonita.
—
— Andou então na investigação dos meus passos?
—
— V. S. compreende que não há outra intenção...
—
— Pois, senhor Custodio Marques, madei-o chamar por toda a parte, visto que há cerca de três quartos de hora tive notícia de que sua filha fugiu de casa...
—
O almotacé deu um pulo; seus dois olhinhos cresceram desmesuradamente; a boca, aberta, não ousava proferir uma só palavra.
— Fugiu de casa, continuou o magistrado, segundo notícia que tenho, e creio que ...
—
— Mas com quem? com quem? para onde? Articulou, enfim o almotacé.
—
— Fugiu com o Gervásio Mendes. Vão na direção da Lagoa da Sentinela...
—
— Sr. dr. Peço-lhe perdão, mas, bem sabe ... bem sabe ...
—
— Vá, vá ...
—
Custódio Marques não atinava com o chapéu. Deu-lho o juiz de fora.
— Corra...
—
— Olhe a bengala!
O almotacé recebeu a bengala.
— Obrigado! Quem tal diria! Ah! nunca pensei... que minha filha, e aquele peralta... Deixe-os comigo...
— Não perca tempo.
— Vou... vou.
— Mas, olhe cá, antes de ir. Um astrólogo contemplava os astros, com tamanha atenção, que caiu num poço. Uma velha da Trácia vendo-o cair, soltou esta exclamação: “Se ele não via o que lhe estava aos pés, para que havia de investigar o que lá fica tão em cima!”
O almotacé compreenderia o apólogo, se pudesse ouvi-lo. Mas não ouviu nada. Desceu as escadas a quatro e quatro bufando como um touro.
Il court encore.
Fonte: alecrim.inf.ufsc.br