CONTOS DE MACHADO DE ASSIS: A VIÚVA DE SOBRAL e ALMAS AGRADECIDAS

A VIÚVA DE SOBRAL

CAPITULO I

— Explico-me.

— Mas explica-te refrescando a goela. Queres um sorvete? Vá, dois sorvetes. Traga dois sorvetes... Refresquemo-nos, que realmente o calor está insuportável. Estiveste em Petrópolis.

— Não.

— Nem eu.

— Estive no Pati do Alferes, imagina por quê? — Não posso.

— Vou...

— Acaba.

— Vou casar.

Cesário deixou cair o queixo de assombro, enquanto o Brandão saboreava, olhando para ele, o gosto de ter dado uma novidade grossa. Vieram os sorvetes, sem que o primeiro saísse da posição em que a notícia o deixou; era evidente que não lhe dava crédito.

— Casar? repetiu ele afinal, e o Brandão respondeu-lhe com a cabeça que sim, que ia casar. Não, não, é impossível.

Estou que o leitor não sente a mesma incredulidade, desde que considera que o casamento é a tela da vida, e que toda a gente casa, assim como toda a gente morre. Se alguma coisa o enche de assombro é o assombro de Cesário. Tratemos de explicá-lo em cinco ou seis linhas.

Viviam juntos esses dois rapazes desde os onze anos, e mais intimamente desde os dezesseis. Contavam agora vinte e oito. Um era empregado no comércio, outro da alfândega. Tinham uma parte da vida comum, e comuns os sentimentos. Assim é que ambos faziam do casamento a mais deplorável idéia, com ostentação, com excesso, e para afirmá-lo, viviam juntos a mesma vida solta. Não só entre eles deixara de haver segredo, mas até começava a ser impossível que o houvesse, desde que ambos davam os mesmos passos, de um modo uníssono. Começa a entender-se o espanto do Cesário.

— Dá-me a tua palavra que não estás brincando? — Conforme.

— Ah! — Quando eu digo que vou casar, não quero dizer que tenho a dama pedida; quero dizer que o namoro está a caminho, e que desta vez é sério. Resta adivinhar quem é.

— Não sei.

— E foste tu mesmo que me levaste lá.

— Eu? — É a Sobral.

— A viúva? — Sim, a Candinha.

— Mas...? Brandão contou tudo ao amigo. Cerca de algumas semanas antes, Cesário levara-o à casa de um amigo do patrão, um Viegas, comerciante também, para jogar o voltarete; e ali acharam, pouco antes chegada do Norte, uma recente viúva, D. Candinha Sobral. A viúva era bonita, afável, dispondo de uns olhos que os dois concordaram em achar singulares. Os olhos, porém, eram o menos. O mais era a reputação de mau gênio que esta moça trazia. Disseram que ela matara o marido com desgostos, caprichos, exigências; que era um espírito absoluto, absorvente, capaz de deitar fogo aos quatro cantos de um império para aquecer uma xícara de chá. E, como sempre acontece, ambos acharam que, a despeito das maneiras, lia-se-lhe isso mesmo no rosto; Cesário não gostara de um certo jeito da boca, e o Brandão notara-lhe nas narinas o indício da teima e da perversidade. Duas semanas depois tornaram a encontrar-se os três, conversaram, e a opinião radicou-se. Eles chegaram mesmo à familiaridade da expressão: — má rês, alma de poucos amigos, etc.

Agora entende-se, creio eu, o espanto do amigo Cesário, não menos que o prazer do Brandão em dar-lhe a notícia. Entende-se, portanto, que só começassem a tomar os sorvetes para não vê-los derretidos, sem nenhum deles saber o que estava fazendo.

— Juro que há quinze dias não era capaz de cuidar nisto, continuava o Brandão; mas os dois últimos encontros, principalmente o de segunda-feira... Não te digo nada... Creio que acabo casando.

— Ah! crês! — É um modo de falar, é certo que acabo.

Cesário acabou o sorvete, engoliu um cálice de cognac, e fitou o amigo, que raspava o copo, amorosamente. Depois fez um cigarro, acendeu-o, puxou duas ou três fumaças, e disse ao Brandão que ainda esperava vê-lo recuar; em todo caso, aconselhava-lhe que não publicasse desde já o plano; esperasse algum tempo. Talvez viesse a recuar...

— Não, interrompeu Brandão com energia.

— Como, não? — Não recuo.

Cesário levantou os ombros.

— Achas que faço mal? pergunta o outro.

— Acho.

— Por quê? — Não me perguntes por quê.

— Ao contrário, pergunto e insisto. Opões-te por causa de ser casamento.

— Em primeiro lugar.

Brandão sorriu.

— E por causa da noiva, concluiu ele. Já esperava por isso; estás então com a opinião que ambos demos logo que ela chegou da província? Enganas-te. Também eu estava; mas mudei...

— E depois, continuou Cesário, falo por um pouco de egoísmo; vou perder-te...

— Não.

— Sim e sim. Ora tu!... Mas como foi isso? Brandão contou os pormenores do negócio; expôs minuciosamente todos os seus sentimentos. Não a pedira ainda, nem havia tempo para tanto; a própria resolução não estava formulada. Mas tinha por certo o casamento. Naturalmente, louvou as qualidades da namorada, sem convencer ao amigo, que, aliás, entendeu não insistir na opinião e guardá-la consigo.

— São simpatias, dizia ele.

Saíram depois de longo tempo de conversação, e separaram-se na esquina. Cesário mal podia crer que o mesmo homem, que antipatizara com a viúva e dissera dela tantas coisas e tão grotescas, quinze dias depois estivesse apaixonado ao ponto de casar. Puro mistério! E resolvia o caso na cabeça, e não achava explicação, não se tratando de um criançola, nem de uma descomunal beleza. Tudo por querer achar, à força, uma explicação; se não a procurasse, dava com ela, que era justamente nenhuma, coisa nenhuma.

CAPITULO II

Emendemos o Brandão. Contou ele que os dois últimos encontros com a viúva, aqui na corte, é que lhe deram a sensação do amor; mas a verdade pura é que a sensação só o tomou inteiramente no Pati do Alferes, de onde ele acaba de chegar. Antes disso, podia ficar um pouco lisonjeado das maneiras dela, e ter mesmo alguns pensamentos; mas o que se chama sensação amorosa não a teve antes. Foi ali que ele mudou de opinião a respeito dela, e se deixou cair nas graças de uma dama, que diziam ter matado o marido com desgostos.

A viúva Sobral não tinha menos de vinte e sete anos nem mais de trinta; ponhamos vinte e oito. Já vimos o que eram os olhos; — podiam ser singulares, como eles diziam, mas eram também bonitos. Vimos ainda um certo jeito da boca, mal aceito ao Cesário, enquanto as narinas o eram ao Brandão, que achou nelas o indício da teima e da perversidade. Resta mostrar a estatura, que era muito elegante, e as mãos, que nunca estavam paradas. No baile não lhe notou o Brandão esta última circunstância; mas no Pati do Alferes, na casa da prima, familiarmente e a gosto, achou que ela movia as mãos sempre, sempre, sempre. Só não atinou com a causa, se era uma necessidade, um sestro, ou uma intenção de mostrá-las, por serem lindas.

No terceiro dia, começou o Brandão a perguntar onde estava a maldade do gênio de D.

Candinha. Não achava nada que pudesse dar indício dela; via-a alegre, dada, conversada, ouvindo as coisas com muita paciência, e contando anedotas do Norte com muita graça. No quarto dia, os olhos de ambos andaram juntos, não se sabendo unicamente se foram os dele que procuraram os dela, ou vice-versa; mas andaram juntos.

De noite, na cama, o Brandão jurava a si mesmo que era tudo calúnia, e que a viúva tinha mais de anjo que de diabo. Dormiu tarde e mal. Sonhou que um anjo vinha ter com ele e lhe pedia para trepar ao céu; trazia a cara da viúva. Ele aceitou o convite; a meio caminho, o anjo pegou das asas e cravou-as na cabeça, à laia de pontas, e carregou-o para o inferno. Brandão acordou transpirando muito. De manhã, perguntou a si mesmo: — Será um aviso? Evitou os olhos dela, durante as primeiras horas do dia; ela, que o percebeu, recolheu-se ao quarto e não apareceu antes do jantar. Brandão estava desesperado, e deu todos os sinais que podiam exprimir o arrependimento e a súplica do perdão. D. Candinha, que era uma perfeição, não fez caso dele até à sobremesa; à sobremesa começou a mostrar que podia perdoar, mas ainda assim o resto do dia não foi como o anterior. Brandão deu-se a todos os diabos. Chamou-se ridículo. Um sonho? Quem diabo acredita em sonhos? No dia seguinte tratou de recuperar o perdido, que não era muito, como vimos, tãosomente alguns olhares; alcançou-o para a noite. No outro estavam as coisas restabelecidas. Ele lembrou-se então que, durante as horas de frieza, notara nela o mau jeito da boca, o tal, o que lhe dava indício da perversidade da viúva; mas tão depressa o lembrou, como rejeitou a observação. Antes era um aviso, passara a ser uma oportunidade.

Em suma, voltou no princípio da seguinte semana, inteiramente namorado, posto sem nenhuma declaração de parte a parte. Ela pareceu-lhe ficar saudosa. Brandão chegou a lembrar-se que a mão dela, à despedida, estava um pouco trêmula; mas, como a dele também tremia, não se pode afirmar nada.

Só isto. Não havia mais do que isto, no dia em que ele referiu ao Cesário que ia casar.

Que não pensava senão no casamento, era verdade. D. Candinha voltou para a corte daí a duas semanas, e ele estava ansioso por vê-la, para lhe dizer tudo, tudo, e pedi-la, e levá-la à igreja. Chegou a pensar no padrinho: seria o inspetor da alfândega.

Na alfândega, notaram-lhe os companheiros um certo ar distraído, e às vezes, superior; mas ele não disse nada a ninguém. Cesário era o confidente único, e antes não fosse único; ele procurava-o todos os dias para lhe falar da mesma coisa, com as mesmas palavras, e inflexões. Um dia, dois dias, três dias, vá; mas sete, mas quinze, mas todos! Cesário confessava-lhe, rindo, que era demais.

— Realmente, Brandão, tu estás que pareces um namorado de vinte anos...

— O amor nunca é mais velho, redargüiu o outro; e, depois de fazer um cigarro, puxar duas fumaças, e deixá-lo apagar, continuava a repetição das mesmas coisas e palavras, com as mesmíssimas inflexões.

CAPITULO III

Vamos e venhamos: a viúva gostava um pouco do Brandão; não digo muito, digo um pouco, e talvez muito pouco. Não lhe parecia grande coisa, mas sempre era mais que nada. Ele fazia-lhe amiudadas visitas e olhava muito para ela; mas, como era tímido, não lhe dizia nada, não chegava a planear uma linha.

— Em que ponto vamos, em suma? Perguntava-lhe o Cesário um dia, fatigado de só ouvir entusiasmos.

— Vamos devagar.

— Devagar? — Mas com segurança.

Um dia recebeu Cesário um convite da viúva para lá ir a uma reunião familiar: era lembrança do Brandão, que foi ter com ele e pediu-lhe instantemente que não faltasse.

Cesário sacrificou o teatro nessa noite, e foi. A reunião esteve melhor do que ele esperava; divertiu-se muito. Na rua disse ele ao amigo: — Agora, se me permites franqueza, vou chamar-te um nome feio.

— Chama.

— Tu és um palerma.

— Viste como ela olhava para mim? — Vi, sim, e por isso mesmo é que acho que estás botando dinheiro à rua. Pois uma pessoa assim disposta... Realmente és um bobo.

Brandão tirou o chapéu e coçou a cabeça.

— Para falar a verdade, eu mesmo já tenho dito essas coisas, mas não sei que acho em mim, acanho-me, não me atrevo...

— Justamente; um palerma.

Andaram ainda alguns minutos calados.

— E não te parece esplêndida? perguntou o Brandão.

— Não, isso não; mais bonita do que a princípio, é verdade; fez-me melhor impressão; esplêndida é demais.

Quinze dias depois, viu-a o Cesário em casa de terceiro, e pareceu-lhe que ainda era melhor. Daí começou a freqüentar a casa, a pretexto de acompanhar o outro, e ajudá-lo, mas realmente porque começava a olhá-la com olhos menos desinteressados. Já aturava com paciência as longas confissões do amigo; chegava mesmo a procurá-las.

D. Candinha percebeu, em pouco tempo, que em vez de um, tinha dois adoradores. Não era motivo de pôr luto ou deitar fogo à casa; parece mesmo que era caso de vestir galas; e a rigor, se alguma falha havia, era que eles fossem dois, e não três ou quatro. Para conservar os dois, D. Candinha usou de um velho processo: dividindo com o segundo as esperanças do primeiro, e ambos ficavam entusiasmados. Verdade é que o Cesário, posto não fosse tão valente, como dizia, era muito mais que o Brandão. De maneira que, ao cabo de algumas dúzias de olhares, apertou-lhe a mão com muito calor. Ela não a apertou de igual modo, mas também não se deu por zangada, nem por achada.

Continuou a olhar para ele. Mentalmente, comparava-os: Um dia o Brandão descobriu um olhar trocado entre o amigo e a viúva. Naturalmente ficou desconsolado, mas não disse nada; esperou. Daí a dias notou mais dois olhares, e passou mal a noite, dormiu tarde e mal; sonhou que matara ao amigo. Teve a ingenuidade de contá-lo a este, que riu muito, e disse-lhe que fosse tomar juízo.

— Você tem coisas! Pois bem; somos concordes nisto: — deixo de voltar à casa dela...

— Isso nunca! — Então que queres? — Quero que me digas, francamente, se gostas dela, e se vocês se namoram.

Cesário declarou-lhe que era uma simples fantasia dele, e continuou a namorar a viúva, e o Brandão também, e ela aos dois, todos com a maior unanimidade.

Naturalmente as desconfianças reviveram, e assim as explicações, e começaram os azedumes e as brigas. Uma noite, ceando os dois, de volta da casa dela, estiveram a ponto de brigar formalmente. Mais tarde separaram-se por dias; mas como o Cesário teve de ir a Minas, o outro reconciliou-se com ele à volta, e dessa vez não instou para que tornasse a freqüentar a casa da viúva. Esta é que lhe mandou convite para outra reunião; e tal foi o princípio de novas contendas.

As ações de ambos continuavam no mesmo pé. A viúva distribuía as finezas com igualdade prodigiosa, e o Cesário começava a achar que a complacência para com o outro era longa demais.

Nisto apareceu no horizonte uma pequenina mancha branca; era algum navio que se aproximava com as velas abertas. Era navio e de alto bordo; — um viúvo, médico, ainda conservado, que entrou a cortejar a viúva. Chamava-se João Lopes. Já então o Cesário tinha arriscado uma carta, e mesmo duas, sem obter resposta. A viúva foi passar alguns dias fora, depois da segunda; quando voltou, recebeu terceira, em que o Cesário lhe dizia as coisas mais ternas e súplices. Esta carta deu-lha em mão.

— Espero que me não conservará mais tempo na incerteza em que vivo. Peço-lhe que releia as minhas cartas...

— Não as li.

— Nenhuma? — Quatro palavras da primeira apenas. Imaginei o resto e imaginei a segunda.

Cesário refletiu alguns instantes: depois disse com muita discrição: — Bem; não lhe pergunto os motivos, porque sei que me hão de desenganar; mas eu não quero ser desenganado. Peço-lhe uma só coisa.

— Peça.

— Peço-lhe que leia esta terceira carta, disse ele, tirando a carta do bolso; aqui está tudo o que estava nas outras.

— Não... não...

— Perdão; pedi-lhe isto, é um favor último; juro que não tornarei mais.

D. Candinha continuou a recusar; ele deixou a carta no dunkerque, cumprimentou-a e saiu. A viúva não desgostou de ver a obstinação do rapaz, teve curiosidade de ler o papel, e achou que o podia fazer sem perigo. Não transcrevo nada, por que eram as mesmas coisas de todas as cartas de igual gênero. D. Candinha resolveu dar-lhe resposta igual à das primeiras, que era nenhuma.

Cesário teve o desengano verbal, três dias depois, e atribuiu-o ao Brandão. Este aproveitou a circunstância de achar-se só para dar a batalha decisiva. É assim que ele chamava a todas as escaramuças. Escreveu-lhe uma carta a que ela respondeu deste modo: Devolvo o bilhete que me entregou ontem, por engano, e desculpe se li as primeiras palavras; afianço-lhe que não vi o resto.

O pobre-diabo quase teve uma congestão. Meteu-se na cama três dias, e levantou-se resolvido a voltar lá; mas a viúva tornara a sair da cidade Quatro meses depois casava ela com o médico. Quanto ao Brandão e o Cesário, que estavam já brigados, nunca mais se falaram; criaram ódio um ao outro, ódio implacável e mortal. O triste é que ambos começaram por não gostar da mesma mulher, como o leitor sabe, se se lembra do que leu.

Fonte: www.dominiopublico.gov.br

ALMAS AGRADECIDAS

I

Havia representação no Ginásio. A peça da moda era então a célebre Dama das camélias. A casa estava cheia. No fim do quarto ato começou a chover um pouco; do meio do quinto ato em diante, a chuva redobrou de violência.

Quando acabou o espetáculo, cada família entrou no seu carro; as poucas que não tinham esperavam uma estiada, e, mediante os guarda-chuvas, lá saíram com as saias arregaçadas.

.............. aos olhos dando, O que às mãos cobiçosas vão negando.

Os homens abriam os seus guarda-chuvas; outros chamavam tílburis; e pouco a pouco se foi despejando o saguão, até que só ficaram dois rapazes, um dos quais abotoara até o pescoço o paletó, e esperava maior estiada para sair, porque além de não ter guardachuva, não via nenhum tílburi no horizonte.

O outro também abotoara o paletó, mas tinha guarda-chuva; não parecia, entretanto, disposto a abri-lo. Olhava de esguelha para o primeiro, que fumava tranqüilamente um charuto.

Já o porteiro havia fechado as duas portas laterais e ia fazer o mesmo à porta central, quando o rapaz do guarda-chuva dirigiu ao outro estas palavras: — Para que lado vai? O interpelado compreendeu que o companheiro lhe ia oferecer abrigo e respondeu, com palavras de agradecimento, que morava na Glória.

— É muito longe, disse ele, para aceitar o abrigo que naturalmente me quer oferecer. Eu esperarei aqui um tílburi.

— Mas a porta vai fechar-se, observou o outro.

— Não importa, esperarei do lado de fora.

— Não é possível, insistiu o primeiro; a chuva ainda está forte e pode aumentar mais. Não lhe ofereço abrigo até casa porque moro na Prainha, que é justamente do lado oposto; mas posso cobri-lo até ao Rocio, onde encontraremos um tílburi.

— É verdade, respondeu o rapaz que não tinha guarda-chuva; não me havia ocorrido isto, aceito com prazer.

Saíram os dois rapazes e foram até ao Rocio. Nem sombra de tílburi ou caleça.

— Não admira, disse o rapaz do guarda-chuva; foram todos com gente do teatro. Daqui a pouco haverá algum de volta...

— Mas eu não quisera dar-lhe o incômodo de o reter mais tempo aqui à chuva.

— Cinco ou dez minutos, talvez; esperaremos.

A chuva veio contrariar estes bons desejos do rapaz, caindo com furor. Mas o desejo de servir tem mil maneiras de se manifestar. O rapaz do guarda-chuva propôs um meio excelente de escapar à chuva e esperar condução: era ir tomar chá ao hotel que mais à mão lhes ficasse. O convite não era mau; tinha só o inconveniente de vir de um desconhecido. Antes de lhe responder, o rapaz sem guarda-chuva deitou um rápido olhar ao seu companheiro, espécie de exame prévio da condição social da pessoa. Parece que a achou boa, porque aceitou o convite.

— É levar muito longe a sua bondade, disse ele, mas eu não posso deixar de abusar dela; a noite está inclemente.

— Eu também costumo esquecer o guarda-chuva, e amanhã estarei nas suas mesmas circunstâncias.

Foram para o hotel e daí a pouco tinham diante de si um excelente pedaço de rosbife frio, acompanhado de não menos excelente chá.

— Há de desculpar a minha curiosidade, disse o rapaz sem guarda-chuva; mas eu desejaria saber a quem devo a obsequiosidade com que sou tratado há vinte minutos.

— Não somos inteiramente desconhecidos, respondeu o outro; a sua memória é que é menos conservadora do que a minha.

— De onde me conhece? — Do colégio. Andamos juntos no colégio Rosa...

— Andei lá, é verdade, mas...

— Não se lembra do 0liveira? Aquele que trocava as réguas por laranjas? Aquele que desenhava com giz o retrato do mestre nas costas dos outros meninos? — Que me diz? É o senhor? — De carne e osso; eu mesmo. Acha-me mudado, não? — Oh! muito! — Não admira; eu era naquele tempo uma criança rechonchuda e vermelha; hoje como vê, estou quase tão magro como D. Quixote; e não foram trabalhos, porque eu não os tenho tido; nem desgostos, que eu ainda não os experimentei. O senhor, porém, é que não mudou; se não fosse esse pequeno bigode, pareceria o mesmo daquele tempo.

— E todavia não me hão faltado desgostos, acudiu o outro; minha vida tem sido atribulada. A natureza tem destas coisas.

— Casou? — Não; e o senhor? — Também não.

A pouco e pouco começaram as confidências pessoais; cada um narrou aquilo que podia narrar, por maneira que, ao fim da ceia, pareciam tão íntimos como no tempo do colégio.

Sabemos destas revelações mútuas, que Oliveira era bacharel em direito, e começava a advogar com pouco êxito. Herdara alguma coisa da avó, última parenta que conservara até então, tendo-lhe morrido os pais antes de entrar na adolescência. Estava com certo desejo de entrar na vida política e contava com a proteção de alguns amigos de seu pai, para ser eleito deputado à Assembléia Provincial fluminense.

Magalhães era o nome do outro; não herdara de seus pais dinheiro, nem amigos políticos.

Aos 16 anos, achou-se só no mundo; exercera vários empregos de caráter particular, até que conseguira obter uma nomeação para o Arsenal de Guerra, onde estava atualmente.

Confessou que esteve a ponto de enriquecer, casando com uma viúva rica; mas não revelou as causas que lhe impediram essa mudança de fortuna.

A chuva cessara de todo. Já uma parte do céu se havia descoberto deixando aparecer o rosto da lua cheia, cujos raios pálidos e frios brincavam nas pedras e nos telhados úmidos.

Saíram os nossos dois amigos.

Magalhães declarou que iria a pé.

— Não chove mais, disse ele; ou, pelo menos, nesta meia hora; vou a pé até à Glória.

— Pois bem, respondeu Oliveira; já lhe disse o número da minha casa e do meu escritório; apareça lá algumas vezes; folgarei de reatar as nossas relações da meninice.

— Também eu; até breve.

Despediram-se na esquina da Rua do Lavradio, e Oliveira enfiou pela de S. Jorge. Ambos foram pensando um no outro.

— Parece ser um excelente rapaz este Magalhães, dizia o jovem advogado consigo; no colégio, foi sempre um menino sério. Ainda o é agora, e até parece um pouco reservado, mas é natural porque sofreu.

II

Três dias depois, apareceu Magalhães no escritório de Oliveira; falou na sala a um porteiro que lhe pediu o cartão.

— Não tenho cartão, respondeu Magalhães envergonhado; esqueci-me de o trazer; digalhe que é o Magalhães.

— Queira esperar alguns minutos, tornou o porteiro; ele está conversando com uma pessoa.

Magalhães assentou-se numa cadeira de braços, enquanto o porteiro assoava silenciosamente o nariz e tomava uma pitada de rapé, que lhe não ofereceu. Magalhães examinou detidamente as cadeiras, as estantes, os quadros de gravuras, os capachos e as escarradeiras. A sua curiosidade era minuciosa e sagaz; parecia estar avaliando o gosto ou a riqueza de seu ex-colega.

Minutos depois, ouviu-se um rumor de cadeiras, e não tardou que viesse da sala do fundo um velho alto e empertigado, vestido com certo apuro, a quem o porteiro fez largos cumprimentos até o patamar da escada.

Magalhães não esperou que o porteiro fosse avisar Oliveira; atravessou o corredor que separava as duas salas e foi ter com o amigo.

— Ora, viva! disse este apenas o viu entrar. Estimo que não lhe houvesse esquecido a promessa. Sente-se; chegou a casa com chuva? — Começou a chuviscar, quando eu me achava a dois passos da porta, respondeu Magalhães.

— Que horas são? — Pouco mais de duas, creio eu.

— O meu relógio está parado, disse Oliveira, lançando o olhar de esguelha para o colete de Magalhães, que não tinha relógio. Naturalmente, ninguém mais me procurará hoje; e ainda que venham, quero descansar.

Oliveira tocou a campainha apenas acabou de proferir estas palavras. Veio o porteiro.

— Se vier alguém, disse Oliveira, não estou cá.

O porteiro inclinou-se e saiu.

— Estamos livres de importunos, disse o advogado, apenas o porteiro virou as costas.

Todas estas maneiras e palavras de simpatia e cordialidade foram angariando a confiança de Magalhães, que começou a parecer alegre e franco com o seu ex-colega.

Longa foi a conversa, que durou até às 4 horas da tarde. As 5 jantava Oliveira; mas o outro jantava às 3, e se o não disse, era talvez por deferência, se não fosse por cálculo.

Um jantar copioso e escolhido não era melhor que o ramerrão culinário de Magalhães? Fosse uma ou outra coisa, Magalhães suportou a fome com admirável denodo. Eram 4 horas da tarde, quando Oliveira deu acordo de si.

— Quatro horas! exclamou ele, ouvindo as badaladas de um sino próximo. Naturalmente, já você perdeu a hora do jantar.

— Assim é, respondeu Magalhães; eu costumo jantar às 3 horas. Não importa; adeus.

— Isso é que não; há de ir jantar comigo — Não; obrigado...

— Ande cá, jantaremos no hotel mais próximo, porque a minha casa é longe. Eu ando com idéia de mudar de casa; estou muito fora do centro da cidade. Vamos aqui ao Hotel de Europa.

Os vinhos eram bons; Magalhães gostava de vinhos bons. No meio do jantar, tinha-se-lhe desenvolvido completamente a língua. Oliveira fazia quanto podia para tirar ao amigo da infância toda espécie de acanhamento. Isto e o vinho deram excelente resultado.

Desta ocasião em diante foi que Oliveira começou a apreciar o ex-colega. Era Magalhães um rapaz de agudo espírito, boa observação, conversador ameno, um pouco lido em obras fúteis e correntes. Tinha, além disso, o dom de ser naturalmente insinuante. Com estas prendas juntas não era difícil, era antes facílimo angariar as boas graças de Oliveira, que, à sua extrema bondade, reunia uma natural confiança, ainda não diminuída pelos cálculos da vida madura. Demais Magalhães tinha sido infeliz; esta circunstância era aos olhos de Oliveira um realce. Finalmente, o seu ex-colega já lhe confiara no trajeto do escritório ao hotel, que não contava um amigo debaixo do sol. Oliveira queria ser esse amigo.

Qual importa mais à vida, ser Dom Quixote ou Sancho Pança? O ideal ou o prático? A generosidade ou a prudência? Oliveira não hesitava entre esses dois opostos papéis; nem sequer pensara neles. Estava no período do coração.

Apertaram-se os laços da amizade entre os dois colegas. Oliveira mudou-se para a cidade, o que deu azo a que os dois amigos se encontrassem mais vezes. A freqüência veio a uni-los ainda mais.

Oliveira apresentou Magalhães a todos os seus amigos; levou-o à casa de alguns. A sua palavra afiançava o hóspede que, dentro em pouco tempo, captava as simpatias de todos.

Nisto era Magalhães superior a Oliveira. Não faltava ao advogado inteligência, nem maneiras, nem dom para se fazer estimado. Mas os dotes de Magalhães superavam os dele. A conversa de Magalhães era mais picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira a amizade de um homem sarcástico, e Magalhães tinha seus longes de sarcástico.

Não se magoava com isto Oliveira, antes parecia ter certa glória em ver que seu amigo obtinha por seu mérito a estima dos outros.

Facilmente acreditará o leitor que estes dois amigos se fizessem confidentes de todas as coisas, principalmente de coisas de amores. Nada esconderam a este respeito um ao outro, com a diferença de que Magalhães, não tendo amores atuais, confiou ao amigo apenas algumas proezas antigas, ao passo que Oliveira, a braços com algumas aventuras, não dissimulou nenhuma delas, e tudo contou a Magalhães.

E foi bem que o fizesse, porque Magalhães era homem de bom conselho, dava ao amigo pareceres sensatos, que ele ouvia e aceitava com grande proveito seu e para maior glória da recíproca amizade.

A dedicação de Magalhães ainda se manifestava por outro modo. Não era raro vê-lo desempenhar um papel de conciliador, auxiliar uma inocente mentira, ajudar o amigo em todas as dificuldades que o amor depara aos seus alunos.

III

Um dia de manhã, leu Oliveira, ainda na cama, a notícia da demissão de Magalhães, impressa no Jornal do Commercio. Grande foi a sua mágoa, mas ainda maior que a mágoa foi a raiva que esta notícia lhe causou. Demitir Magalhães! Oliveira mal podia compreender este ato do ministro. O ministro era necessariamente tolo ou tratante.

Havia patronato naquilo. Não seria pagamento a algum eleitor solícito? Estas e outras conjecturas preocuparam o advogado até à hora do almoço. Almoçou pouco. O estômago acompanhava a dor do coração.

Magalhães devia ir nesse dia ao escritório de Oliveira. Com que ansiedade esperou este a hora marcada! Esteve a ponto de faltar a um depoimento de testemunhas. Mas a hora chegou e Magalhães não apareceu. Oliveira estava sobre brasas. Qual a razão da falta? Não atinava com ela.

Eram quatro horas, quando saiu do escritório, e sua resolução imediata foi meter-se num tílburi e seguir para a Glória.

Assim o fez.

Quando lá chegou, estava Magalhães lendo um romance. Não parecia abatido pelo golpe ministerial. Todavia, não estava alegre. Fechou o livro lentamente e abraçou o amigo.

Oliveira não podia conter a sua cólera.

— Lá vi hoje, disse ele, a notícia da tua demissão. É uma patifaria sem nome...

— Por quê? — Ainda o perguntas? — Sim; por quê? O ministro é senhor dos seus atos e responsável por eles; podia demitirme e fê-lo.

— Mas fez mal, disse Oliveira.

Magalhães sorriu tristemente.

— Não podia deixar de o fazer, disse ele; um ministro é muitas vezes um amanuense do destino, que só parece ocupar-se em me perturbar a vida e multiplicar todos os esforços.

Que queres? Eu já estou acostumado, não resisto; dia virá em que estes golpes terão um termo. Dia virá em que eu possa vencer a má fortuna de uma vez para sempre. Tenho o remédio nas mãos.

— Deixa-te de tolices, Magalhães.

— Tolices? — Mais que tolices; sê forte! Magalhães abanou a cabeça.

— Não custa aconselhar fortaleza, murmurou ele; mas quem tem sofrido como eu...

— Já não contas com os amigos? — Os amigos não podem tudo.

— Muito obrigado! Eu te mostrarei, se podem.

— Não te iludas, Oliveira; não te esforces a favor de um homem que a sorte condenou.

— Histórias! — Sou um condenado.

— És um fracalhão.

— Acreditas que eu...

— Acredito que és um fracalhão, e que não pareces aquele mesmo Magalhães que sabe conservar o sangue frio em todas as ocasiões graves. Descansa, eu tirarei desforra brilhante. Antes de quinze dias estarás empregado.

— Não creias...

— Desafias-me? — Não; bem conheço de que é capaz teu coração nobre e generoso... mas...

— Mas o quê? Receio que a má fortuna seja mais forte do que eu.

— Verás.

Oliveira deu um passo para a porta.

— Nada disso impede que venhas jantar comigo, disse ele, voltando-se para Magalhães.

— Obrigado; já jantei.

— Anda ao menos comigo para ver se te distrais.

Magalhães recusou; mas Oliveira insistiu com tão boa vontade que não havia recusar.

Durante a noite seguinte meditou Oliveira acerca do negócio de Magalhães. Tinha amigos importantes, os mesmos que forcejavam por lhe abrir carreira política. Oliveira pensou neles como os mais próprios para levar a cabo a obra de seus desejos. O grande caso para ele era empregar Magalhães, em cargo tal que despicasse da prepotência ministerial. O substantivo prepotência era a exata expressão de Oliveira.

Não lhe ocultaram os amigos que o caso não era fácil; mas prometeram que a dificuldade seria vencida. Não se dirigiram ao ministro da Guerra, mas a outro; Oliveira pôs em campo o recurso feminino. Duas senhoras de seu conhecimento foram em pessoa falar ao ministro, em favor do feliz candidato.

Não negou o digno membro do poder executivo a dificuldade de criar um lugar para dar ao pretendente. Seria cometer a injustiça de tirar o pão a empregados úteis ao país.

Instavam, porém, os padrinhos, audiências e cartas, pedidos de toda sorte; nada ficou por empregar em favor de Magalhães.

Depois de cinco dias de lutas e solicitações diárias, declarou o ministro que poderia dar um bom emprego a Magalhães na Alfândega de Corumbá. Já era boa vontade da parte do ministro, mas os protetores de Magalhães recusaram a graça.

— O que se deseja de V. Excia., disse um deles, é que o nosso afilhado seja empregado aqui mesmo na corte. Vai nisso uma questão de honra, e uma questão de comodidade.

Tinha boa vontade o ministro, e entrou a cogitar no meio de acomodar o pretendente.

Havia em uma das repartições a seu cargo um empregado que durante o ano faltava muitas vezes ao ponto, e na última peleja eleitoral votara contra o ministro. Caiu-lhe uma demissão em casa, e para evitar empenhos mais fortes, no mesmo dia em que apareceu a demissão do empregado vadio, apareceu a nomeação de Magalhães.

Foi o próprio Oliveira que levou a Magalhães o desejado decreto.

— Dá-me cá um abraço, disse ele, e reza aí um mea culpa. Venci o destino. Estás nomeado.

— Quê! será possível? — Aqui tens o decreto! Magalhães caiu nos braços de Oliveira.

A gratidão de quem recebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele que o faz.

Magalhães exprimia todo seu reconhecimento pela dedicação e perseverança de Oliveira; mas a alegria de Oliveira não tinha limites. A explicação desta diferença está talvez neste fundo de egoísmo que há em todos nós.

Em todo caso, a amizade dos dois ex-colegas ganhou com isso maior solidez.

IV

O novo emprego de Magalhães era muito melhor que o primeiro em categoria e lucro, de maneira que a demissão, longe de lhe ser um golpe funesto do destino, foi um lance de melhor fortuna.

Passou Magalhães a ter melhor casa e a alargar um pouco mais a bolsa, pois que a tinha agora mais farta que dantes; Oliveira observava esta mudança e regozijava-se com a idéia de que contribuíra para ela.

A vida de ambos continuaria por este teor, plácida e indiferente, se um acontecimento não a viesse perturbar de repente.

Um dia, achou Magalhães que Oliveira parecia preocupado. Perguntou-lhe francamente o que era.

— Que há de ser? disse Oliveira. Eu sou um miserável nessas coisas de amores; estou apaixonado.

— Queres que te diga uma coisa? — O quê? — Acho que fazes mal em diluir o teu coração com essas mulheres.

— Que mulheres? — Essas.

— Não me compreendes, Magalhães; a minha atual paixão é séria; amo uma menina honesta.

— Que mágoas então são essas? Casa com ela.

— Esse é o ponto. Creio que ela não me ama.

— Ah! Houve um silêncio.

— Mas não te resta esperança nenhuma? perguntou Magalhães.

— Não posso dizer isso; não penso que ela seja sempre esquiva ao meu sentimento; mas por ora nada há entre nós.

Magalhães entrou a rir.

— Pareces-me calouro, homem! disse ele. Quantos anos tem ela? — Dezessete.

— A idade da inocência; suspiras em silêncio e queres que ela te adivinhe. Nunca chegarás ao cabo. Tem-se comparado o amor à guerra. Assim é. No amor, querem-se atos de bravura como na guerra. Avança afoitamente e vencerás.

Oliveira ouvia estas palavras com a atenção de um homem sem iniciativa, a quem todo conselho serve. Confiava no juízo de Magalhães e o parecer dele era razoável.

— Parece-te então que eu devo expor-me? — Sem dúvida.

O advogado referiu depois todas as circunstâncias do seu encontro com a moça em questão. Pertencia a uma família com quem esteve em casa de terceiro; o pai era um excelente homem, que o convidou a freqüentar a casa, e a mãe uma excelente senhora, que ratificou o convite do marido. Oliveira não tinha ido lá depois disso, porque, segundo imaginava, a moça não correspondia à sua afeição.

— És um tolo, disse Magalhães quando o amigo acabou a narração. Vês a rapariga num baile, ficas gostando dela, e só porque ela não te caiu logo nos braços, desistes de lhe freqüentar a casa. Oliveira, tem juízo: vai à casa dela, e dir-me-ás daqui a pouco tempo se te não aproveita o conselho. Queres casar, não? — Oh! podias pôr em dúvida?...

— Não; é uma pergunta. Não é casamento romântico? — Que queres dizer com isso? — Ela é rica? Oliveira franziu a testa.

— Não te zangues, disse MagaLhães. Eu não sou nenhum espírito rasteiro; também, conheço as delicadezas do coração. Nada vale mais que um amor verdadeiro e desinteressado. Não se me há de censurar, porém, que eu procure ver o lado prático das coisas; um coração de ouro vale muito; mas um coração de ouro com ouro vale mais.

— Cecília é rica.

— Pois tanto melhor! — Afianço-te, porém, que essa consideração...

— Não precisas afiançar nada; eu bem sei o que vales, disse Magalhães apertando as mãos de Oliveira. Anda, meu amigo, não te detenho; procura a tua felicidade.

Animado por estes conselhos, tratou Oliveira de sondar o terreno para declarar a sua paixão. Omiti de propósito a descrição de Cecília feita por Oliveira ao seu amigo Nagalhães. Não desejava exagerar aos olhos dos leitores a beleza da moça, que a um namorado parece sempre maior do que realmente é. Mas Cecília era realmente formosa.

Era uma beleza, uma flor em toda a extensão da palavra. Todas as forças e fulgores da mocidade estavam nela, que apenas saía da adolescência e parecia anunciar longa e esplêndida juventude. Não era alta, mas também não era baixa. Era acima de meã. Era muito corada e viva; tinha uns olhos brilhantes e buliçosos, olhos de namorada ou namoradeira; era talvez um pouco afetada, mas deliciosa; tinha certas exclamações que lhe ficavam bem nos seus lábios finos e úmidos.

Oliveira não viu logo todas estas coisas na noite em que lhe falou; mas não tardou que ela se lhe revelasse assim, desde que começou a freqüentar a casa dela.

Nisto, era Cecília ainda um pouco criança; não sabia dissimular, nem era difícil captar-lhe a confiança. Mas, através das aparências de frivolidade e volubilidade, descobria-lhe Oliveira sólidas qualidades de coração. O contacto redobrou o seu amor. No fim de um mês, Oliveira parecia perdido por ela.

Magalhães continuava a ser o conselheiro de Oliveira e o seu único confidente. Um dia, pediu-lhe o namorado que fosse com ele à casa de Cecília.

— Tenho medo, disse Magalhães.

— Por quê? — Sou capaz: de precipitar tudo, e isso não sei se será conveniente antes de conhecer bem o terreno. Em qualquer caso, não é mau que eu vá examinar por mim mesmo as coisas. Irei quando quiseres.

— Amanhã? — Seja amanhã.

No dia seguinte, Oliveira apresentou Magalhães em casa do comendador Vasconcelos.

— É o meu melhor amigo, disse Oliveira.

Na casa de Vasconcelos, já estimavam o advogado; esta apresentação bastava para recomendar Magalhães.

V

O comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos tinha um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível compreender aquele velho sem aquele estouvamento.

Contava já seus cinqüenta e oito anos, e andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga que, desde os quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a sra. D. Mariana houvesse casado com ele.

D. Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casamento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo. Pelo que, rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas qualidades, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo.

Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara alternadamente com os conservadores e os liberais para contentar os amigos que tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades.

Quando a acusavam deste ceticismo político, respondia com uma frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o seu patriotismo: — Somos todos brasileiros.

Quadrava o gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimidade não tardou muito.

Já sabemos que o amigo de Oliveira tinha a grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D.

Mariana chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador.

Para os fins de Oliveira era excelente.

Não se descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança. Parece-me ser, disse ela, um excelente coração.

— Afirmo que o é, disse Magalhães; conheço-o há muito tempo.

Quando Oliveira soube destas palavras, que não eram muita coisa, ficou muito animado.

— Creio que posso ter esperanças, disse ele.

— Nunca te disse outra coisa, respondeu Magalhães.

Magalhães nem sempre podia servir aos interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem caíra em graça, confiscava-o horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão.

Um dia, Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar uma carta.

— Ainda não, deixa-me preparar a coisa.

Oliveira acedeu.

A quem ler estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um cicerone.

Não é.

Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se conservava ignorante do que se passava dentro dele; e se assim praticava, era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com mulheres de outra classe.

Nada intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete anos.

Acresce que, se Magalhães era de opinião que ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era melhor não arriscar golpe sem certeza do resultado.

A dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira amizade? Na primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de perscrutar o coração da moça.

Era de noite; havia gente em casa. 0liveira estava ausente. Magalhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com que uma senhora idosa entrara na sala.

Magalhães fazia a respeito do chapéu mil conjecturas burlescas.

— Aquele chapéu, dizia ele, parece-me um ressuscitado. Houve naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu aquele, acompanhado de outros seus irmãos.

Aquele ressuscitou, para vir dizer a este mundo o que é o paraíso dos chapéus.

Cecília reprimia uma risada.

Magalhães continuava: — Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e como raridade.

Isto era mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília.

Repentinamente, Magalhães ficou sério e consultou o relógio.

— Já se vai embora? perguntou a moça.

— Não, senhora, disse Magalhães.

— Guarde então o relógio.

— Admira-me que Oliveira ainda não viesse.

— Virá mais tarde. Os senhores são muito amigos? — Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma.

Houve um silêncio.

Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e disse: — Feliz aquela que o possuir.

A moça não revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam horas de tomar chá.

— Já amou, D. Cecília? perguntou Magalhães.

— Que pergunta é essa? — É uma curiosidade.

— Nunca amei.

— Por quê? — Sou muito criança.

— Criança! Outro silêncio.

— Conheço alguém que a ama muito.

Cecília estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se levantou. Para sair, porém, da situação em que as palavras de Magalhães a deixara, disse rindo: — Essa pessoa... quem é? — Quer saber o nome? — Quero. É seu amigo? — É.

— Diga o nome.

Outro silêncio.

— Promete não ficar zangada comigo? — Prometo.

— Sou eu.

Cecília esperava ouvir outra coisa; esperava ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, havia percebido naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela.

Da parte de Magalhães, não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de cólera, apenas surpresa.

A verdade é que ela não amava nenhum deles.

Não tendo a moça respondido logo, Magalhães disse com um sorriso benévolo: — Já sei que ama outro.

— Que outro? — Oliveira.

— Não.

Era a primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave; penalizada com a idéia de que lhe houvesse com o silêncio causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse, Cecília disse ao fim de alguns minutos: — O senhor está brincando comigo? — Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto quiser, menos isso; não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo; responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança.

A moça não respondia.

— Não poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora remota.

O papá é quem decide de mim, disse ela desviando a conversa.

— Pensa que eu sou desses corações que se contentam com o consentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu coração. Diga-me: posso esperar essa fortuna? — Talvez, murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa singela palavra.

VI

Era a primeira declaração que Cecília ouvia da boca de um homem. Não estava preparada para ela. Tudo o que ouvira lhe causara um inexplicável alvoroço.

Posto que não amasse nenhum dos dois, apreciava ambos os rapazes, e não seria difícil que cedesse ao pedido de um deles e viesse a amá-lo apaixonadamente.

Dos dois rapazes, o que mais depressa conseguiria vencer, dado o caso que se declarassem ao mesmo tempo, era sem dúvida Magalhães, cujo espírito galhofeiro e presença insinuante deviam influir mais no espírito da moça.

Minutos depois da cena narrada no capítulo anterior, já os olhos de Cecília procuravam os de Magalhães, mas rapidamente, sem se demorar neles; todos os sintomas de um coração que não se demorará em ceder.

Magalhães tinha a vantagem de conservar todo o sangue frio no meio da situação que se lhe apresentava, e isso era excelente para não descobrir aos olhos estranhos o segredo que ele tinha interesse em conservar.

Pouco depois, entrou Oliveira. Magalhães deu-se pressa em o chamar de parte.

— Que há? perguntou Oliveira.

— Boas notícias.

— Falaste-lhe? — Positivamente não; mas encaminhei o negócio de maneira que talvez em poucos dias tenha a tua situação mudado completamente.

— Mas que houve? — Falei-lhe de amores; ela pareceu indiferente a essas idéias; disse-lhe então gracejando que a amava...

— Tu? — Sim. De que te admiras? — E que disse ela? — Riu-se. Então perguntei-lhe velhacamente se amava alguém. E ela a isto respondeu que não, mas por modo que me parecia uma afirmativa. Deixa o caso por minha conta.

Amanhã, desfaço a meada; digo-lhe que eu estava brincando... Mas paremos aqui, que aí vem o comendador.

Efetivamente, Vasconcelos chegara à janela onde os dois estavam. Uma das manias de Vasconcelos era comentar durante o dia todas as notícias que os jornais publicavam de manhã. Os jornais daquele dia falavam de um casal encontrado morto num quarto da casa em que residia. Vasconcelos desejava saber se os dois amigos optavam pelo suicídio, circunstância esta que o levaria a adotar a hipótese do assassínio.

Foi esta conversa uma completa diversão ao assunto amoroso, e Magalhães aproveitou o debate entre Oliveira e Vasconcelos para ir conversar com Cecília.

Falaram de coisas indiferentes, mas Cecília estava menos expansiva; Magalhães supôs a princípio que fosse um sintoma de esquivança; não era. Bem o notou ele quando, ao sair, Cecília correspondeu energicamente ao seu apertado aperto de mão.

— Pensas que serei feliz, Magalhães? perguntou Oliveira apenas se acharam na rua.

— Penso.

— Não imaginas que dia passei hoje.

— Não hei de imaginar! — Olha, nunca pensei que esta paixão pudesse dominar tanto a minha vida.

Magalhães animou o rapaz, que o convidou a cear, não porque o amor lhe deixasse largo campo às exigências do estômago, senão porque havia jantado pouco.

Eu peço perdão aos meus leitores, se entro nestas explicações a respeito da comida.

Quer-se um herói romântico, acima das necessidades vulgares da vida humana; mas não posso deixar de as mencionar, não por sistema, mas por ser fiel à história que estou contando.

A ceia foi alegre, porque Magalhães e a tristeza eram incompatíveis. Oliveira, apesar de tudo, comeu pouco, Magalhães largamente. Entendia que lhe cumpria pagar a ceia; mas o amigo não consentiu nisso.

— Olha, Magalhães, disse Oliveira ao despedir-se dele. A minha felicidade está nas tuas mãos; és capaz de dar conta dela? — Não se devem prometer coisas tais; o que eu te afirmo é que não pouparei esforços.

— E pensas que serei feliz? — Quantas vezes queres que to diga? — Adeus.

— Adeus.

No dia seguinte, Oliveira mandou dizer a Magalhães que estava um pouco incomodado.

Magalhães foi visitá-lo.

Achou-o de cama.

— Estou com alguma febre, disse o advogado; dize isto mesmo ao comendador, a quem eu prometi de ir lá hoje.

Magalhães cumpriu o pedido.

Era a ocasião de se manifestar a dedicação de Magalhães. Não faltou este moço a tão sagrado dever. Passava com Oliveira a tarde e as noites e só se separava dele para ir, às vezes, à casa de Vasconcelos, que era isso mesmo o que Oliveira lhe pedia.

— Fala-lhe sempre de mim, dizia Oliveira.

— Não faço outra coisa.

E assim era. Magalhães não cessava de dizer que vinha ou ia para casa de Oliveira, cuja doença ia tomando um aspecto grave.

— Que amigo! murmurava consigo D. Mariana.

— O senhor é um bom coração, dizia Vasconcelos apertando as mãos de Magalhães.

— O sr. Oliveira deve querer-lhe muito, dizia Cecília.

— Como a um irmão.

A doença de Oliveira era grave; durante todo o tempo que durou, não se desmentiu nunca a dedicação de Magalhães.

Oliveira admirava-o. Via que o benefício que lhe fizera não caíra em má terra. Grande foi a sua alegria quando, ao começar a convalescença, Magalhães lhe pediu duzentos milréis, com promessa de os pagar no fim do mês.

— Quanto quiseres, meu amigo. Tira-os ali da secretária.

— Acredita que isto me vexa imensamente, disse Magalhães, metendo na algibeira duas notas de cem mil-réis. Nunca te pedi dinheiro; agora, menos que nunca, devia pedir-to.

Oliveira compreendeu o pensamento do amigo.

— Não sejas tolo; a nossa bolsa é comum.

— Oxalá que esse belo princípio possa ser realizado literalmente, disse Magalhães rindo.

Oliveira não lhe falou nesse dia a respeito de Cecília. Foi o próprio Magalhães que encetou a respeito dela uma conversa.

— Queres ouvir uma coisa? disse ele. Apenas saíres, manda-lhe uma carta.

— Por quê? Crês que...

— Creio que é a hora do golpe.

— Só para a semana poderei sair.

— Não importa, virá a tempo.

Para compreender bem a situação singular em que se achavam estes personagens todos, é mister transcrever aqui as palavras com que nessa mesma noite se despediram Magalhães e Cecília à janela da casa desta: — Até amanhã, disse Magalhães.

— Virás cedo? — Venho às 8 horas.

— Não faltes.

— Queres que te jure? — Não precisa; adeus.

VII

Quando entrou a semana seguinte, já na véspera do dia em que Oliveira se dispunha a sair e visitar o comendador, recebeu uma carta de Magalhães.

Leu-a com pasmo: Meu querido amigo, dizia Magalhães; desde ontem tenho a cabeça fora de mim.

Aconteceu-me a maior desgraça que podia cair sobre nós. Com mágoa e vergonha to anuncio, meu prezadíssimo amigo, a quem tanto devo.

Prepara o teu coração para receber o golpe que já me feriu, e por muito que ele te faça sofrer, não sofrerás mais do que eu já sofri...

Saltaram duas lágrimas dos olhos de Oliveira.

Adivinhava mais ou menos o que seria. Cobrou forças e continuou a leitura: Descobri, meu querido amigo, que Cecília (como direi?), que Cecília me ama! Não imaginas como me fulminou esta notícia. Que ela não te amasse, como ambos desejávamos, era já doloroso; mas que se lembrasse de consagrar os seus afetos ao último homem que ousaria opor-se ao seu coração, é uma ironia da fatalidade. Não te contarei meu procedimento; facilmente o adivinharás. Prometi não voltar lá mais.

Queria ir eu mesmo comunicar-te isto; mas não ouso contemplar a tua dor, nem te quero dar o espetáculo da minha.

Adeus, Oliveira. Se a fatalidade ainda consentir que nos vejamos (impossível!), até um dia; se não... Adeus! Adivinha o leitor o golpe que esta carta descarregou no coração de Oliveira. Mas é nas grandes crises que o espírito do homem se mostra grande. A dor do apaixonado superada pela dor do amigo. O final da carta de Magalhães aludia vagamente a um suicídio; Oliveira deu-se pressa em ir impedir esse ato de nobre abnegação. Demais, que coração tinha ele, a quem confiasse todos os seus desesperos? Vestiu-se apressadamente e correu à casa de Magalhães.

Disseram-lhe que não estava em casa.

Oliveira ia subindo: — Perdão, disse o criado; eu tenho ordem de não deixar subir ninguém.

— Razão demais para eu subir, respondeu Oliveira, afastando o criado.

— Mas...

— Trata-se de uma grande desgraça! E subiu apressadamente a escada.

Na sala, não havia ninguém. Oliveira entrou afoitamente no gabinete. Achou Magalhães sentado à secretária inutilizando alguns papéis.

Perto dele, havia um copo com um líquido vermelho.

— Oliveira! exclamou ele, quando o viu entrar.

— Sim, Oliveira, que vem salvar a tua vida, e dizer-te quanto és grande! — Salvar-me a vida? murmurou Magalhães; quem te disse que eu?...

— Tu, na tua carta, respondeu Oliveira. Veneno! continuou ele, vendo o copo. Oh! nunca! E despejou o copo na escarradeira.

Magalhães parecia atônito.

— Eia! disse Oliveira; dá cá um abraço! Este amor infeliz foi ainda um lance de felicidade, porque conheci bem que coração de ouro é esse que te bate no peito.

Magalhães estava de pé; caíram nos braços um do outro. O abraço comoveu Oliveira, que só então deu largas à sua dor. O amigo consolou-o como pôde.

— Bem, disse Oliveira, tu que foste causa indireta da minha desgraça, deves ser agora o remédio que me há de curar. Sê eternamente meu amigo.

Magalhães suspirou.

— Eternamente! disse ele.

— Sim.

— Minha vida é curta, Oliveira; eu devo morrer; se não for hoje, sê-lo-á amanhã.

— Mas isso é uma loucura.

— Não é: eu não te disse tudo na carta. Falei-te do amor que Cecília me tem; não te falei do amor que lhe tenho eu, amor que me nasceu sem eu pensar. Brinquei com fogo; queimei-me.

Oliveira curvou a cabeça.

Houve um longo silêncio entre os dois amigos.

Ao cabo de um longo quarto de hora, Oliveira ergueu os olhos vermelhos de lágrimas e disse a Magalhães, estendendo-lhe a mão: — Sê feliz, que o mereces; não tens culpa disto. Procedeste honradamente; compreendo que era difícil estar ao pé dela sem sentir o fogo da paixão. Casa com Cecília, pois que se amam, e fica certo de que serei sempre o mesmo amigo.

— Oh! tu és imenso! Magalhães não ajuntou nenhum substantivo a este adjetivo. Não nos é dado perscrutar o seu pensamento interior. Caíram os dois amigos nos braços um do outro com grandes exclamações e protestos.

Uma hora depois de ali haver entrado, saía Oliveira triste mas consolado.

— Perdi um amor, dizia ele consigo, mas ganhei um verdadeiro amigo, que já o era antes.

Magalhães veio logo atrás dele.

— Oliveira, disse ele, passaremos o dia juntos; receio que faças alguma loucura.

— Não! o que me ampara nesta queda és tu.

— Não importa; passaremos o dia juntos.

Assim aconteceu.

Neste dia, não foi Magalhães à casa do comendador.

No dia seguinte, apenas lá apareceu, disse-lhe Cecília: — Estou zangada contigo; por que não vieste ontem? — Tive de sair da cidade em serviço público e por lá fiquei a noite.

— Como passaste? — Bem.

Seis semanas depois uniam eles os seus destinos. Oliveira não compareceu à festa com grande admiração de Vasconcelos e de D. Mariana, que não compreendiam essa indiferença da parte de um amigo.

Nunca houve a menor sombra de dúvida entre Magalhães e Oliveira.

Foram amigos até à morte, posto que Oliveira não freqüentasse a casa de Magalhães.

Fonte: www.dominiopublico.gov.br