CONTOS DE MACHADO DE ASSIS: A PIANISTA e A ÚLTIMA RECEITA

A PIANISTA

Tinha vinte e dois anos e era professora de piano. Era alta, formosa, morena e modesta.

Fascinava e impunha respeito; mas através do recato que ela sabia manter sem cair na afetação ridícula de muitas mulheres, via-se que era uma alma ardente e apaixonada, capaz de atirar-se ao mar, como Safo ou de enterrar-se com o seu amante, como Cleópatra.

Ensinava piano. Era esse o único recurso que tinha para sustentar-se e a sua mãe, pobre velha a quem os anos e a fadiga de uma vida trabalhosa não permitiam já tomar parte nos labores de sua filha.

Malvina (era o nome da pianista) era estimada onde quer que fosse exercer a sua profissão. A distinção de suas maneiras, a delicadeza de sua linguagem, a beleza rara e fascinante, e mais do que isso, a boa fama de mulher honesta acima de toda a insinuação, tinha-lhe granjeado a estima de todas as famílias.

Era admitida nos saraus e jantares de família, não só como pianista, mas ainda como conviva elegante e simpática, sendo que ela sabia pagar com a mais perfeita distinção as atenções de que era objeto.

Nunca se lhe desmentira a estima que em todas as famílias encontrava. Essa estima estendia-se até à pobre Teresa, sua mãe, que participava igualmente dos convites que faziam a Malvina.

O pai de Malvina morrera pobre, deixando à família a lembrança honrosa de uma vida honrada. Era um pobre advogado sem carta, que, à custa de longa prática, conseguira poder exercer as funções da advocacia com tanto sucesso como se houvera cursado os estudos acadêmicos. O mealheiro do pobre homem foi sempre um tonel das Danaides, escoando-se por um lado o que entrava por outro, graças às necessidades de honra que o mau destino lhe deparava. Quando pretendia começar a fazer pecúlio para garantir o futuro da viúva e da órfã que deixasse, deu a alma a Deus.

Tinha, além de Malvina, um filho, principal causa dos danos pecuniários que sofreu; mas esse, mal faleceu o pai, abandonou a família, e vivia, na época desta narrativa, uma vida de opróbrio.

Era Malvina o único amparo de sua velha mãe, a quem amava com um amor de adoração.

* * * Ora, entre as famílias onde Malvina exercia as suas funções de pianista, contava-se, em 1850, a família de Tibério Gonçalves Valença.

Tenho necessidade de dizer em duas palavras quem era Tibério Gonçalves Valença para melhor compreensão da minha narrativa.

Tibério Gonçalves Valença nascera com o século, isto é, contava na época em que se passam estes acontecimentos, cinqüenta anos, e na época em que a família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro, oito anos.

Era filho de Basílio Gonçalves Valença, natural do interior da província do Rio de Janeiro, homem de certa influência na capital, nos fins do último século. Tinha exercido, a contento do governo, certos cargos administrativos, em virtude dos quais teve ocasião de praticar com alguns altos funcionários e adquirir por isso duas coisas: a simpatia dos referidos funcionários e uma decidida vocação para adorar tudo quanto respirava nobreza de duzentos anos para cima.

A família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro em 1808. Nessa época Basílio Valença estava retirado da vida pública, em virtude de várias moléstias graves, das quais, todavia, já se achava restabelecido naquela época. Tomou parte ativa na alegria geral e sincera com que o príncipe regente foi recebido pela população da cidade, e por uma anomalia que muita gente não compreendeu, admirava menos o representante da real nobreza bragantina do que os diferentes figurões que faziam parte da comitiva que acompanhava a monarquia portuguesa.

Tinha queda especial para os estudos nobiliários; dispunha de uma memória prodigiosa e era capaz de repetir sem vacilar todos os graus de ascendência fidalga deste ou daquele solar. Quando a ascendência se perdia na noite dos tempos, Basílio Valença parava a narração e dizia com entusiasmo que dali só para onde Deus sabia.

E este entusiasmo era tão espontâneo, e esta admiração tão sincera, que uma vez julgou dever romper as relações de amizade com um compadre só porque este lhe objetou que muito longe que fosse certa fidalguia nunca podia ir além de Adão e Eva.

Darei uma prova da admiração de Basílio Valença pelas coisas fidalgas. Para alojar os nobres que acompanhavam o príncipe regente foi preciso, por ordem do intendente de polícia, que muitos moradores das boas casas as despejassem incontinente. Basílio Valença nem esperou que esta ordem lhe fosse comunicada; mal soube das diligências policiais a que se procedia foi de moto próprio oferecer a sua casa, que era das melhores, e mudou-se para outra de muito menor valia e de mesquinho aspecto.

E mais. Muitos dos fidalgos alojados violentamente tarde deixaram as casas. e tarde satisfizeram os aluguéis respectivos. Basílio Valença não só impôs a condição de que não se lhe devolveria a casa enquanto fosse necessária, senão que declarou peremptoriamente não aceitar do fidalgo alojado o mínimo real.

Esta admiração que se traduziu por fatos era efetivamente sincera, e até morrer nunca Basílio deixou de ser o que sempre foi.

Tibério Valença foi educado nestas tradições. O pai inspirou-lhe as mesmas idéias e as mesmas simpatias. Com elas cresceu, crescendo-lhes entretanto outras idéias que o andar do tempo lhe foi inspirando. Imaginou que a longa e tradicional afeição de sua família pelas famílias afidalgadas dava-lhe um direito de penetrar no círculo fechado dos velhos brasões, e nesse sentido tratou de educar os filhos e avisar o mundo.

Tibério Valença não era lógico neste procedimento. Se não queria admitir em sua família um indivíduo que na sua opinião estava abaixo dela, como pretendia entrar nas famílias nobres de que ele se achava evidentemente muito mais baixo? Isto, que saltava aos olhos de qualquer, não era compreendido por Tibério Valença, a quem a vaidade de ver misturar o sangue vermelho das suas veias com o sangue azul das veias fidalgas era para ele o único e exclusivo cuidado.

Finalmente o tempo trouxe as necessárias modificações às pretensões nobiliárias de Tibério Valença, e em 1850 já não exigia uma linha de avós puros e incontestáveis, exigia simplesmente uma fortuna regular.

Eu não me atrevo a dizer o que penso destas preocupações de um homem que a natureza fizera pai. Indico-as simplesmente. E acrescento que Tibério Valença cuidava destes arranjos dos filhos como cuidava do arranjo de umas fábricas que possuía. Eram para ele a mesma operação.

Ora, apesar de toda a vigilância, o filho de Tibério Valença, Tomás Valença, não comungou com as idéias do pai, nem assinou os seus projetos secretos. Era moço, recebia a influência de outras idéias e de outros tempos, e podia recebê-la em virtude da liberdade plena que gozava e da companhia que escolheu. Elisa Valença, sua irmã, não estava, talvez, no mesmo caso, e muitas vezes teve de comprimir os impulsos do coração para não contrariar as idéias acanhadas que Tibério Valença lhe introduzira na cabeça.

Mas fossem ambos com as suas idéias ou não fossem absolutamente, era o que Tibério Valença não cuidava de saber. Ele tinha a respeito da paternidade umas idéias especiais; entendia que estava na sua mão regular, não só o futuro, o que era justo, mas ainda o coração dos seus filhos. Nisto enganava-se Tibério Valença.

* * * Malvina ensinava piano a Elisa. Ali, como nas outras casas, era estimada e respeitada.

Havia já três meses que contava a filha de Tibério Valença entre as suas discípulas e já a família Valença prestava-lhe um culto de simpatia e afeição.

A afeição de Elisa por ela foi mesmo muito longe. A discípula confiava à professora os segredos mais íntimos do seu coração, e para isso era levada pela confiança que lhe inspirava a mocidade e os modos sérios de Malvina.

Elisa não tinha mãe nem irmãs. A pianista era a única pessoa do seu sexo com quem a moça tinha ocasião de conversar mais freqüentemente.

Assistia às lições de piano o filho de Tibério Valença. Da conversa ao namoro, do namoro ao amor decidido não mediou muito tempo. Um dia Tomás levantou-se da cama com a convicção de que amava Malvina. A beleza, a castidade da moça obravam este milagre.

Malvina, que até então se conservara isenta de paixões, não pôde resistir a esta. Amou perdidamente o rapaz.

Elisa entrava no amor de ambos como confidente. Estimava o irmão, estimava a professora, e esta estima dupla fez esquecer-lhe por algum tempo os preconceitos inspirados por seu pai.

Mas o amor tem o grande inconveniente de não guardar a discrição necessária para que os estranhos não percebam. Quando dois olhares andam a falar entre si todo o mundo fica aniquilado para os olhos que os desferem; parece-lhes que têm o direito e a necessidade de viverem de si e por si.

Ora, um dia em que Tibério Valença voltou mais cedo, e a pianista demorou a lição até mais tarde, foi obrigado o sisudo pai a assistir aos progressos de sua filha. Tentado pelo que ouviu Elisa tocar, exigiu mais, e mais, e mais, até que veio notícia de que o jantar estava na mesa. Tibério Valença convidou a moça a jantar, e esta aceitou.

Foi para o fim do jantar que Tibério Valença descobriu os olhares menos indiferentes que se trocavam entre Malvina e Tomás.

Apanhando um olhar por acaso não deixou de prestar atenção mais séria aos outros, e com tanta infelicidade para os dois namorados, que desde então não perdeu um só.

Quando se levantou da mesa era outro homem, ou antes era o mesmo homem, o verdadeiro Tibério, um Tibério indignado e já desonrado só com os preliminares de um amor que existia.

Despediu a moça com alguma incivilidade, e retirando-se para o seu quarto, mandou chamar Tomás. Este acudiu pressuroso ao chamado do pai, sem cuidar, nem por sombras, do que se ia tratar.

— Sente-se, disse Tibério Valença.

Tomás sentou-se.

— Possuo uma fortuna redonda que pretendo deixar aos meus dois filhos, se eles forem dignos de mim e da minha fortuna. Tenho um nome que, se se não recomenda por uma linha ininterrompida de avós preclaros, todavia pertence a um homem que mereceu a confiança do rei dos tempos coloniais e foi tratado sempre com distinção pelos fidalgos do seu tempo. Tudo isto impõe aos meus filhos uma discrição e um respeito de si mesmo, única tábua de salvação da honra e da fortuna. Creio que me expliquei e me compreendeu.

Tomás estava aturdido. As palavras do pai eram grego para ele. Olhou fixamente para Tibério Valença, e quando este com um gesto de patrício romano mandou-o embora, Tomás deixou escapar estas palavras em tom humilde e suplicante: — Explique-se, meu pai; não o compreendo.

— Não compreende? — Não.

Os olhos de Tibério Valença faiscavam. Parecia-lhe que tinha falado claro, não querendo sobretudo falar mais claro, e Tomás, sem procurar a oportunidade daquelas observações, perguntava-lhe o sentido das suas palavras, no tom da mais sincera surpresa.

Era preciso dar a Tomás a explicação pedida.

Tibério Valença continuou — As explicações que lhe tenho a dar são mui resumidas. Quem lhe deu o direito de me andar namorando a filha de um rábula? — Não compreendo ainda, disse Tomás.

— Não compreende? — Quem é a filha do rábula? — É essa pianista, cuja modéstia todos são unânimes em celebrar, mas que eu descubro agora ser apenas uma rede que ela arma para apanhar um casamento rico.

Tomás compreendeu enfim de que se tratava. Tudo estava descoberto. Não compreendeu nem como nem desde quando, mas compreendeu que o seu amor, tão cuidadosamente velado, já não era segredo.

Todavia, ao lado da surpresa que lhe causaram as palavras do pai, sentiu um desgosto pela insinuação brutal de que vinha acompanhada a explicação: e, sem responder nada, levantou-se, curvou a cabeça e encaminhou-se para a porta.

Tibério Valença fê-lo parar dizendo: — Então que é isso? — Meu pai...

— Retirava-se sem mais nem menos? Que me diz em resposta às minhas observações? Veja lá. Ou a pianista sem a fortuna, ou a fortuna sem a pianista: é escolher. Eu não ajuntei dinheiro nem o criei com tanto trabalho para realizar os projetos atrevidos de uma mulher de pouco mais ou menos...

— Meu pai, se o que me retivesse na casa paterna fosse simplesmente a fortuna, minha escolha estava feita: o amor de uma mulher honesta bastava-me para amparar minha vida: eu saberei trabalhar por ela. Mas eu sei que acompanhando essa moça perco a afeição de meu pai, e prefiro perder a mulher a perder o pai: fico.

Esta resposta de Tomás desconcertou Tibério Valença. O pobre homem passou a mão pela cabeça, fechou os olhos, franziu a testa, e depois de dois minutos, disse, levantandose: — Pois sim, de um ou de outro modo, estimo que fique. Poupo-lhe um arrependimento.

E fez um gesto a Tomás para que saísse. Tomás saiu, de cabeça baixa, e dirigiu-se para o seu quarto, onde ficou encerrado até o dia seguinte.

* * * No dia seguinte, na ocasião em que Malvina ia sair para dar as suas lições, recebeu um bilhete de Tibério Valença. O pai de Tomás dava o ensino de Elisa por acabado e mandava-lhe o saldo de contas.

Malvina não compreendeu esta despedida tão positiva e tão humilhante. A que podia atribuí-la? Em vão indagou se a memória lhe apresentava um fato que pudesse justificar ou explicar o bilhete, e não achou.

Resolveu ir à casa de Tibério Valença e ouvir da própria boca dele as causas que faziam dispensar tão bruscamente as suas lições à menina Elisa.

Tibério Valença não estava em casa. Estava só Elisa. Tomás estava, mas encerrara-se no quarto, de onde só saíra à hora do almoço por instâncias do pai.

Elisa recebeu a pianista com certa frieza que bem se via ser estudada. O coração pedialhe outra coisa.

À primeira reclamação de Malvina acerca do estranho bilhete que recebera, Elisa respondeu que não sabia. Mas tão mal fingiu a ignorância, tão difícil e doloroso lhe foi a resposta, que Malvina, compreendendo que alguma coisa havia no fundo com que não queria contrariá-la, pediu positivamente a Elisa que o dissesse, prometendo nada referir.

Elisa disse à pianista que o amor de Tomás por ela estava descoberto, e que o pai levava a mal esse amor, tendo lançado mão do meio da despedida para afastá-la da casa e da convivência de Tomás.

Malvina, que amava sincera e apaixonadamente o irmão de Elisa, chorou ao ouvir esta notícia.

Mas as lágrimas que faziam? O ato estava consumado; a despedida estava feita; só havia uma coisa a fazer: sair e não pôr mais os pés na casa de Tibério Valença.

Foi o que Malvina resolveu fazer.

Levantou-se e despediu-se de Elisa.

Esta, que, apesar de tudo, tinha um fundo de afeição pela pianista, perguntou-lhe se não ficava mal com ela.

— Mal por quê? perguntou a pianista. Não, não fico.

E saiu enxugando as lágrimas.

* * * Estava desfeita a situação que podia continuar a avassalar o coração de Tomás. O pai não parou, e procedeu, no ponto de vista em que se colocava, com uma lógica cruel.

Tratou primeiramente de afastar o filho da corte por alguns meses, de maneira que a ação do tempo pudesse apagar no coração e na memória do rapaz o amor e a imagem de Malvina.

— É isto, dizia consigo Tibério Valença, não há outro meio. Longe esquece-lhe tudo. A tal pianista não é lá essas belezas que impressionem muito.

O narrador protesta contra esta última reflexão de Tibério Valença, que, de certo, na idade que contava, já se esquecera dos predicados da beleza e dos milagres da simpatia que fazem amar às feias. E até quando as feias se fazem amar, é sempre doida e perdidamente, diz La Bruyère, porque foi de certo por filtros poderosos e vínculos desconhecidos que elas souberam atrair e prender.

Tibério Valença não admitia a hipótese de amar a uma feia, nem de amar muito tempo uma bonita. Era desta negação que ele partia, como homem sensual e positivo que era.

Resolveu, portanto, mandar o filho para fora, e comunicou-lhe o projeto oito dias depois das cenas que acima narrei.

Tomás recebeu a notícia com aparente indiferença. O pai ia armado de objeções para responder às que lhe dispensasse o rapaz, e ficou muito admirado quando este curvou-se submisso à ordem de partir.

Entretanto aproveitou a ocasião para usar de alguma cordura e generosidade.

— Fazes gosto em ir? perguntou-lhe.

— Faço, meu pai, foi a resposta de Tomás.

Era à Bahia que devia ir o filho de Tibério.

Desde o dia desta conferência Tomás mostrou-se mais e mais triste, sem todavia manifestar a ninguém com que sentimento recebera a notícia de deixar o Rio de Janeiro.

Tomás e Malvina só se tinham encontrado duas vezes depois do dia em que esta foi despedida da casa de Tibério. A primeira foi à porta da casa dela. Tomás passava na ocasião em que Malvina ia entrar. Falaram-se. Não era preciso nenhum deles perguntar se sentiam saudades com a ausência e a separação. O ar de ambos dizia tudo. Tomás, às interrogações de Malvina, disse que passava ali sempre, e sempre via as janelas fechadas. Cuidou um dia que ela estivesse doente.

— Não estive doente: é preciso que nos esqueçamos um do outro. Se eu não puder, seja...

— Eu? interrompeu Tomás.

— É preciso, respondeu a pianista suspirando.

— Nunca, disse Tomás.

A segunda vez que se viram foi em casa de um amigo cuja irmã recebia lições de Malvina. Estava lá o moço na ocasião em que a pianista entrou. Malvina pretextou doença, e disse que só para não ser esperada em vão tinha ido lá. Depois do que, retirouse.

Tomás resolveu ir despedir-se de Malvina. Seus esforços, porém, foram inúteis. Em casa sempre lhe diziam que ela tinha saído, e as janelas constantemente fechadas pareciam as portas do túmulo do amor dos dois.

Na véspera de partir Tomás convenceu-se de que era impossível despedir-se da moça.

Desistiu de procurá-la e resolveu-se, com mágoa, a sair do Rio de Janeiro sem dar-lhe o adeus de despedida.

— Nobre moça! dizia ele consigo; não quer que do nosso encontro resulte atear-se o amor que me prende a ela.

Enfim Tomás partiu.

Tibério deu-lhe todas as cartas e ordens necessárias para que nada lhe faltasse na Bahia, e soltou do peito um suspiro de consolação quando o filho saiu à barra.

* * * Malvina soube da partida de Tomás logo no dia seguinte. Chorou amargamente. Por que sairia? Ela acreditou que dois motivos seriam: ou resolução corajosa para esquecer um amor que lhe trouxera o desgosto do pai; ou uma intimação cruel do pai. De um ou outro modo Malvina, estimava esta separação. Se ela não esquecia o rapaz, tinha esperanças de que o rapaz a esquecesse, e então não sofria com esse amor que só podia trazer desgraças ao filho de Tibério Valença.

Este nobre pensamento denota claramente o caráter elevado e desinteressado e o amor profundo e corajoso da pianista. Tanto bastava para que ela merecesse casar com o rapaz.

Quanto a Tomás, partiu com o coração apertado e o ânimo abatido. À última hora foi que ele sentiu quanto amava a moça e como nesta separação lhe sangrava o coração. Mas devia partir. Afogou a dor em lágrimas e partiu.

* * * Correram dois meses.

Durante os primeiros dias de sua residência na Bahia, Tomás sentiu as grandes saudades do grande amor que nutria por Malvina. Fez-se-lhe em torno maior solidão ainda que a que já tinha. Parecia-lhe que ia morrer naquele desterro, sem a luz e o calor que lhe dava vida. Estando, por assim dizer, a dois passos do Rio de Janeiro, afigurava-se-lhe achar-se no cabo do mundo, longe, eternamente longe, infinitamente longe de Malvina.

O correspondente de Tibério Valença, previamente informado por este, procurou todos os meios de distrair o espírito de Tomás. Tudo foi em vão. Tomás olhava para tudo com indiferença, isto mesmo quando lhe era dado olhar, porque quase sempre passava os dias encerrado em casa, recusando toda a espécie de distração.

Esta mágoa tão profunda tinha eco em Malvina. A pianista sentia do mesmo modo a ausência de Tomás; não é que tivesse ocasião ou procurasse vê-lo, na época em que se achava na corte, mas é que, separados pelo mar, parecia que estavam separados pela morte, e que nunca mais tinham de ver-se.

Ora, Malvina desejava ver Tomás amando outra, estimado pelo pai, mas queria vê-lo.

Este amor de Malvina, que se apascentava com a felicidade da outra, e só com a vista do objeto amado, este amor não diminuiu, cresceu na ausência, e cresceu muito. A moça nem já podia conter as suas lágrimas; vertia-as insensivelmente todos os dias.

* * * Um dia Tomás recebeu uma carta de seu pai participando-lhe que Elisa se ia casar com um jovem deputado. Tibério Valença fazia do futuro genro a pintura mais lisonjeira. Era a todos os respeitos um homem distinto e digno da estima de Elisa.

Tomás aproveitou a ocasião, e na resposta que deu a essa carta apresentou a Tibério Valença a idéia de fazê-lo voltar para assistir ao casamento de sua irmã. E procurou lembrar isto no tom mais indiferente e frio deste mundo.

Tibério Valença quis responder positivamente que não; mas, forçado a dar minuciosamente as razões da negativa, e não querendo tocar no assunto, tomou a resolução de não responder senão depois de concluído o casamento, a fim de lhe tirar o pretexto de novo pedido da mesma natureza.

Tomás estranhou o silêncio do pai. Não escreveu outra carta pela razão de que a insistência fá-lo-ia desconfiar. Demais, o silêncio de Tibério Valença, que ao princípio lhe pareceu estranho, tinha uma explicação própria e natural. Essa explicação foi a verdadeira causa do silêncio. Tomás compreendeu e calou-se.

Mas, passados os dois meses, nas vésperas do casamento de Elisa, apareceu Tomás no Rio de Janeiro. Saíra da Bahia inopinadamente, sem que o correspondente de Tibério Valença pudesse obstar.

Chegando ao Rio de Janeiro foi o seu primeiro cuidado ir à casa de Malvina.

Naturalmente não lhe podiam negar a entrada, visto não haver ordem neste sentido por saber-se que ele estava na Bahia.

Tomás, que dificilmente se pudera conter nas saudades que sentiu por Malvina, chegara ao estado de lhe ser impossível continuar ausente. Procurou iludir a vigilância do correspondente de seu pai, e na primeira ocasião pôs em execução o projeto concebido.

Durante a viagem, à proporção que se aproximava do porto desejado, expandia-se o coração do rapaz e nasciam-lhe ânsias cada vez maiores de pôr o pé em terra.

Como já disse, a primeira casa a que Tomás se dirigiu foi a de Malvina. O fâmulo disse que esta se achava em casa, e Tomás entrou. Quando a pianista soube que Tomás estava na sala soltou um grito de alegria, manifestação espontânea do coração, e correu ao encontro dele.

O encontro foi como devia ser o de dois corações que se amam e que tornam a ver-se depois de longa ausência. Pouco disseram, na santa efusão das almas, que falavam em silêncio e se comunicavam por esses meios simpáticos e secretos do amor.

Depois, vieram as indagações sobre as saudades de cada um. Era aquela a primeira vez que tinham ocasião de dizerem francamente o que sentiam um pelo outro.

A pergunta natural de Malvina foi esta: — Abrandou-se a crueldade de seu pai? — Não, respondeu Tomás.

— Como, não? — Não. Vim sem ele saber.

— Ah! — Não podia mais estar naquele desterro. Era necessidade para o coração e para a vida...

— Oh! fez mal...

— Fiz o que devia.

— Mas, seu pai...

— Meu pai ralhará comigo; mas paciência; acho-me disposto a afrontar tudo. Depois de consumado o fato, meu pai é sempre pai, e nos perdoará...

— Oh! nunca! — Como, nunca? Recusa ser minha mulher? — Essa seria a minha felicidade; mas quisera sê-lo com honra.

- Que mais honra? — Um casamento clandestino não nos ficaria bem. Se ambos fôssemos pobres ou ricos, sim; mas a desigualdade das nossas fortunas...

— Oh! não faças essa consideração.

— É essencial.

— Não, não digas isso... Há de ser minha mulher ante Deus e ante os homens. Que valem as fortunas neste caso? Uma coisa nos iguala: é a nobreza moral, é o amor que nos liga. Não entremos nessas miseráveis considerações do cálculo e do egoísmo. Sim? — Isto é o fogo da paixão... Dirás sempre o mesmo? — Oh! sempre! Tomás ajoelhou aos pés de Malvina. Tomou-lhe as mãos entre as dele e beijou-as com beijos de ternura...

Teresa entrou na sala, justamente na ocasião em que Tomás se levantava. Uns minutos antes que fosse encontraria aquele quadro de amor.

Malvina apresentou Tomás a sua mãe. Parece que Teresa já alguma coisa sabia dos amores da filha. Na conversa com Tomás deixou escapar palavras equívocas que deram lugar a que o filho de Tibério Valença expusesse à velha os seus projetos e os seus amores.

As objeções da velha foram idênticas às da filha. Também ela via na situação esquerda do rapaz em relação ao pai uma razão de impossibilidade para o casamento.

Desta primeira entrevista saiu Tomás, alegre por ver Malvina, triste pela singular oposição de Malvina e de Teresa.

* * * Em casa de Tibério Valença faziam-se preparativos para o casamento de Elisa.

O noivo era um jovem deputado de província, se do Norte ou do Sul, não sei, mas deputado cujo talento supria os anos de prática, e que começava a influir na situação.

Acrescia que era dono de uma boa fortuna pela recente morte do pai.

Tais considerações decidiram Tibério Valença. Ter por genro um homem abastado, gozando de uma certa posição política, talvez ministro dentro de pouco tempo, era um partido de grande valor. Neste ponto a alegria de Tibério Valença era legítima. E como os noivos se amavam deveras, condição que Tibério Valença dispensaria se necessário fosse, esta união tornou-se aos olhos de todos uma união natural e propícia.

A alegria de Tibério Valença não podia ser maior. Tudo lhe corria às mil maravilhas.

Casava a filha ao sabor dos seus desejos, e tinha longe o filho desnaturado, que talvez aquela hora já começasse a arrepender-se das veleidades amorosas que tivera.

Preparava-se enxoval, faziam-se convites, compravam-se mil coisas necessárias à casa do pai e à da filha, e tudo esperava ansioso o dia aprazado para o casamento de Elisa.

Ora, no meio dessa satisfação plena e geral, caiu subitamente como um raio o filho desterrado, conviva que se não contara para a festa.

A alegria de Tibério Valença ficou assim um tanto aguada. Apesar de tudo não quis romper absolutamente com o filho, e, sinceramente ou não, o primeiro que falou a Tomás não foi o algoz, foi o pai.

Tomás disse que viera para assistir ao casamento da irmã e conhecer o cunhado.

Apesar desta declaração Tibério Valença determinou sondar o espírito do filho no capítulo dos amores. Guardou-se para o dia seguinte.

E no dia seguinte, logo depois do almoço, Tibério Valença deu familiarmente o braço ao filho e levou-o para uma sala retirada. Aí, depois de fazê-lo sentar, perguntou-lhe se o casamento, se outro motivo o trouxera tão inopinadamente ao Rio de Janeiro.

Tomás hesitou.

— Fala, disse o pai, fala com franqueza.

— Pois bem, vim por dois motivos: pelo casamento e por outro...

— O outro é o mesmo? — Quer franqueza, meu pai? — Exijo.

— É...

— Está bem. Lavo as mãos. Casa-te, consinto; mas nada mais terás de mim. Nada, ouviste? E dizendo isto Tibério Valença saiu.

Tomás ficou pensativo.

Era um consentimento aquilo. Mas de que natureza? Tibério Valença dizia que, em se casando, o filho não esperasse nada do pai. Que não esperasse os bens da fortuna, pouco ou nada era para Tomás. Mas aquele nada estendia-se a tudo, talvez à proteção paterna, talvez ao amor paterno. Esta consideração de que perderia a afeição do pai calava muito no espírito do filho.

A esperança nunca abandonou os homens. Tomás concebeu a esperança de convencer o pai com o andar dos tempos.

Entretanto, passaram-se os dias e concluiu-se o casamento da filha de Tibério Valença.

No dia do casamento, como nos outros, Tibério Valença tratou o filho com uma sequidão nada paternal. Tomás sentia-se por isso, mas a vista de Malvina, a cuja casa ia regularmente três vezes por semana, dissipava as aflições para dar-lhe novas esperanças, e novos desejos de completar a ventura que procurava.

O casamento de Elisa coincidiu com a retirada do deputado para a província natal. A mulher acompanhou o marido, e, a instâncias do pai, ficou convencionado que no ano seguinte viriam estabelecer-se definitivamente no Rio de Janeiro.

O tratamento de Tibério Valença em relação a Tomás continuou a ser o mesmo: frio e reservado. Em vão procurava o moço um ensejo para tocar de frente a questão e trazer o pai a sentimentos mais compassivos; o pai esquivava-se sempre.

Mas se era assim por um lado, por outro os desejos legítimos do amor de Tomás por Malvina cresciam mais e mais, dia por dia. A luta que se dava no coração de Tomás, entre o amor de Malvina e o respeito aos desejos de seu pai, foi fraqueando, cabendo o triunfo ao amor. Os esforços do moço eram inúteis, e finalmente um dia chegou em que foi-lhe necessário decidir entre as determinações do pai e o amor pela pianista.

E a pianista? Essa era mulher e amava perdidamente o filho de Tibério Valença. Também uma luta interna se dava no espírito dela, mas à força do amor que alimentava ligavam-se as instâncias continuadas de Tomás. Este objetava-lhe que, uma vez casados, a clemência do pai reapareceria, e tudo se terminaria em bem. Tal estado de coisas prolongou-se até um dia em que não foi mais possível a ambos recuar. Sentiram que a existência dependia do casamento.

Tomás encarregou-se de falar a Tibério. Era o ultimatum.

Uma noite em que Tibério Valença pareceu mais alegre que de ordinário, Tomás deu um passo afoitamente para a questão, dizendo-lhe que, depois de vãos esforços, reconhecera que a paz da sua existência dependia do casamento com Malvina.

— Então casas-te? perguntou Tibério Valença.

— Venho pedir-lhe...

— Já disse o que devias esperar de mim se desses semelhante passo. Não passarás por ignorante. Casa-te; mas quando te arrependeres ou a necessidade te bater à porta, escusas de voltar o rosto para teu pai. Supõe que ele está pobre e nada te pode dar.

Esta resposta de Tibério Valença agradou em parte a Tomás. Não entrava nas palavras do pai a consideração do afeto que lhe negaria, mas o auxílio que lhe não havia de prestar em caso de necessidade. Ora, este auxilio era o que Tomás dispensava, uma vez que se pudesse unir a Malvina. Contava com algum dinheiro que possuía e tinha esperanças de arranjar dentro de pouco tempo um emprego público.

Não deu outra resposta a Tibério Valença senão a de que estava determinado a realizar o casamento.

Diga-se em honra de Tomás, não foi sem algum remorso que ele tomou uma determinação que parecia contrariar os desejos e os sentimentos do pai. É certo que a linguagem deste excluía toda a consideração de ordem moral para valer-se de uns preconceitos miseráveis, mas ao filho não competia, de certo, apreciá-los e julgá-los.

Tomás hesitou mesmo depois da entrevista com Tibério Valença, mas a presença de Malvina, a cuja casa foi logo, dissipou todos os receios e pôs termo a todas as hesitações.

O casamento efetuou-se pouco tempo depois, sem comparecimento do pai, nem de parente algum de Tomás.

* * * O fim do ano de 1850 não trouxe incidente algum à situação da família Valença.

Tomás e Malvina viviam no gozo da mais deliciosa felicidade. Unidos depois de tanto tropeço e hesitação, entraram na estância da bem-aventurança conjugal coroados de mirto e de rosas. Eram moços e ardentes; amavam-se no mesmo grau; tinham chorado saudades e ausências. Que melhores condições para que aquelas duas almas, no momento do consórcio legal, achassem uma ternura elevada e celeste, e se confundissem no ósculo santo do casamento? Todas as luas-de-mel se parecem. A diferença está na duração. Dizem que a lua-de-mel não pode ser perpétua, e para desmentir este ponto não tenho o direito da experiência.

Todavia, creio que a asserção é arriscada demais. Que a intensidade do amor do primeiro tempo diminua com a ação do mesmo tempo, isso creio: é da própria condição humana.

Mas essa diminuição não é de certo tamanha como se afigura a muitos, se o amor subsiste à lua-de-mel, menos intenso é verdade, mas ainda bastante claro para dar luz ao lar doméstico.

A lua-de-mel de Tomás e Malvina tinha certo caráter de perpetuidade.

* * * No princípio do ano de 1851 adoeceu Tibério Valença.

Foi ao princípio moléstia passageira, em aparência ao menos; mas surgiram complicações novas, e ao cabo de quinze dias declarou-se Tibério Valença gravemente enfermo.

Um excelente médico, que era de muito tempo o médico da casa, começou a tratá-lo no meio dos maiores cuidados. Não hesitou, no fim de alguns dias, em declarar que nutria receios pela vida do doente.

Apenas soube da moléstia do pai, Tomás foi visitá-lo. Era a terceira vez, depois do casamento. Nas duas primeiras Tibério Valença tratou-o com tal frieza e reserva que Tomás julgou dever deixar que o tempo, remédio a tudo, modificasse um tanto os sentimentos do pai.

Mas agora o caso era diferente. Tratava-se de uma moléstia grave e do perigo de vida de Tibério Valença. Tudo desaparecera diante deste dever.

Quando Tibério Valença viu Tomás ao pé do leito de dor em que jazia manifestou certa expressão que era sinceramente de pai. Tomás chegou-se a ele e beijou-lhe a mão.

Tibério mostrou-se satisfeito com esta visita do filho.

Os dias correram e a moléstia de Tibério Valença, em vez de diminuir, lavrava e começava a destruir-lhe a vida. Houve consultas de facultativos. Tomás indagou deles sobre o estado real de seu pai, e a resposta que teve foi que se não era desesperado, era ao menos gravíssimo.

Tomás pôs em atividade tudo quanto podia tornar à vida o autor dos seus dias.

Dias e dias passava junto do leito do velho, muitas vezes sem comer e sem dormir.

Um dia, em que voltava para casa, após longas horas de insônia, veio Malvina saindo-lhe ao encontro e abraçá-lo, como de costume, mas com ar de ter alguma coisa a pedir-lhe.

Com efeito, depois de abraçá-lo, e indagar do estado de Tibério Valença, pediu-lhe que desejava ir, poucas horas que fossem, cuidar como enfermeira do sogro.

Tomás acedeu a esse pedido.

No dia seguinte Tomás disse ao pai quais eram os desejos de Malvina. Tibério Valença ouviu com sinais de satisfação as palavras do filho, e, depois de este concluir, respondeulhe que aceitava contente a oferta dos serviços da nora.

Malvina foi no mesmo dia começar os seus serviços de enfermeira.

Tudo em casa mudou como por encanto.

A doce e discreta influência da mulher deu nova direção aos arranjos necessários à casa e à aplicação dos medicamentos.

Tinha crescido a gravidade da moléstia de Tibério Valença. Era uma febre que o trazia constantemente, ou delirante, ou sonolento.

Por isso durante os primeiros dias da estada de Malvina em casa do doente, este de nada pôde saber.

Foi só depois que a força da ciência conseguiu restituir a Tibério Valença as esperanças de vida e alguma tranqüilidade, que o pai de Tomás descobriu a presença da nova enfermeira.

Em tais circunstâncias os preconceitos só dominam os espíritos inteiramente pervertidos.

Tibério Valença, apesar da exageração dos seus sentimentos, não estava ainda no caso.

Acolheu a nora com um sorriso de benevolência e de gratidão.

— Muito obrigado, disse ele.

— Está melhor? — Estou.

— Ainda bem.

— Há muitos dias que está aqui? — Há alguns.

— Nada sei do que se tem passado. Parece que acordo de um longo sono. Que tive eu? — Delírios e constantes sonolências.

— Sim? — É verdade.

— Mas estou melhor, estou salvo? — Está.

— Dizem os médicos? — Dizem e vê-se logo.

— Ah! graças a Deus.

Tibério Valença respirou como um homem que aprecia a vida no grau máximo. Depois, acrescentou: — Ora, quanto trabalho teve comigo!...

— Nenhum...

— Como nenhum? — Era preciso haver alguém que dirigisse a casa. Bem sabe que as mulheres são essencialmente donas de casa. Não quero encarecer o que fiz; eu pouco fiz, fi-lo por dever. Mas quero ser leal declarando qual foi o pensamento que me trouxe aqui.

— A senhora tem bom coração.

Tomás entrou neste momento.

— Oh! meu pai! disse ele.

— Adeus, Tomás.

— Está melhor? Estou. Sinto e dizem os médicos que estou melhor.

— Está, sim.

— Estava a agradecer à tua mulher...

Malvina acudiu logo: — Deixemos isso para depois.

Desde o dia em que Tibério Valença teve este diálogo com a nora e o filho a cura foi-se operando gradualmente. No fim de um mês entrou Tibério Valença em convalescença.

Estava excessivamente magro e fraco. Só podia andar apoiado a uma bengala e ao ombro de um criado. Tomás substituiu muitas vezes o criado a chamado do próprio pai.

Neste ínterim foi Tomás contemplado na pretensão que tinha a um emprego público.

Progrediu a convalescença do velho, e os facultativos aconselharam uma mudança para o campo.

Faziam-se os preparativos da mudança quando Tomás e Malvina anunciaram a Tibério Valença que, dispensando-se agora os seus cuidados, e devendo Tomás entrar no exercício do emprego que obtivera, tornava-se necessária a separação.

— Então não me acompanham? perguntou o velho.

Ambos repetiram as razões que tinham, procurando do melhor modo não ofender a suscetibilidade do pai e do enfermo.

Pai e enfermo cederam às razões e efetuou-se a separação no meio dos protestos reiterados de Tibério Valença que agradecia d’alma os serviços que os dois lhe haviam prestado.

Tomás e Malvina seguiram para casa, e o convalescente partiu para o campo.

* * * A convalescença de Tibério Valença não teve incidente algum.

No fim de quarenta dias estava pronto para outra, como se diz popularmente, e o velho com toda a criadagem voltou para a cidade.

Não fiz menção de visita alguma da parte dos parentes de Tibério Valença durante a moléstia deste, não porque eles não tivessem visitado o parente enfermo, mas porque essas visitas não trazem circunstância alguma nova no caso.

Todavia pede a fidelidade histórica que eu as mencione agora. Os parentes, últimos que restavam à família Valença, reduziam-se a dois velhos primos, uma prima e um sobrinho, filho desta. Estas criaturas foram algum tanto assíduas durante o perigo da moléstia, mas escassearam as visitas desde que tiveram ciência de que a vida de Tibério não corria risco.

Convalescente, Tibério Valença não recebeu uma só visita desses parentes. O único que o visitou algumas vezes foi Tomás, mas sem a mulher.

Estando completamente restabelecido e tendo voltado à cidade, a vida da família continuou a mesma que anteriormente à moléstia.

Esta circunstância foi observada por Tibério Valença. Apesar da sincera gratidão com que ele acolheu a nora apenas tornara a si, Tibério Valença não pôde afugentar do espírito um pensamento desonroso para a mulher do seu filho. Dava o desconto necessário às qualidades morais de Malvina, mas interiormente acreditava que o procedimento dela não fosse isento de cálculo.

Este pensamento era lógico no espírito de Tibério Valença. No fundo do enfermo agradecido havia o homem calculista, o pai interesseiro, que olhava tudo pelo prisma estreito e falso do interesse e do cálculo, e a quem parecia que não se podia fazer uma boa ação sem laivos de intenções menos confessáveis.

Menos confessáveis é paráfrase do narrador; no fundo, Tibério Valença admitia como legítimo o cálculo dos dois filhos.

Tibério Valença imaginava que Tomás e Malvina, procedendo como procederam, tinham tido mais de um motivo que os determinasse. Não eram só, no espírito de Tibério Valença, o amor e a dedicação filial; era ainda um meio de ver se lhe abrandavam os rancores, se lhe armavam à fortuna.

Nesta convicção estava, e com ela esperava a continuação dos cuidados oficiosos de Malvina. Imagine-se qual não foi a surpresa do velho, vendo que cessada a causa das visitas dos dois, causa real que ele tinha por aparente, nenhum deles apresentou o mesmo procedimento anterior. A confirmação seria se, pilhada a aberta, Malvina aproveitasse para fazer da sua presença em casa de Tibério Valença uma necessidade.

Isto pensava o pai de Tomás, e pensava, neste caso, com acerto.

* * * Correram dias e dias, e a situação não mudou.

Tomás lembrara uma vez a necessidade de visitar com Malvina a casa paterna. Malvina, porém, recusou, e quando as instâncias de Tomás a obrigaram a uma declaração mais peremptória, declarou ela positivamente que a continuação das suas visitas poderia parecer a Tibério Valença uma pretensão ao esquecimento do passado e aos conchegos do futuro.

— Melhor é, disse ela, não irmos; antes passemos por descuidados que por ávidos ao dinheiro de teu pai.

— Meu pai não pensará isso, disse Tomás.

— Pode pensar...

— Creio que não... Meu pai está mudado: é outro. Ele já te reconhece; não te fará injustiça.

— Está bom, veremos depois.

E depois desta conversa nunca mais se falou nisso, sendo que Tomás não encontrou na resistência de Malvina senão um motivo mais para amá-la e respeitá-la.

* * * Tibério Valença, desenganado a respeito da expectativa em que estava, resolveu ir um dia em pessoa visitar a nora.

Era isto nem mais nem menos o reconhecimento solene de um casamento que desaprovara. Esta consideração, tão intuitiva em si, não se apresentou ao espírito de Tibério Valença.

Malvina estava só quando à porta parou o carro de Tibério Valença.

Esta visita inesperada causou-lhe verdadeira surpresa.

Tibério Valença entrou com um sorriso nos lábios, sintoma de bonança do espírito, que não escapou à ex-professora de piano.

— Não me querem ir ver, venho eu vê-los. Onde está meu filho? — Na repartição.

— Quando volta? — Às três e meia.

— Já não posso vê-lo. Há muitos dias que ele não vai. Quanto à senhora, creio que decididamente nunca mais lá volta...

— Não tenho podido...

— Por quê? — Ora, isso não se pergunta a uma dona-de-casa.

— Então tem muito que fazer?...

— Muito.

— Oh! mas nem meia hora pode dispensar? E que tanto trabalho é esse? Malvina sorriu-se.

— Como lhe hei de explicar? Há tanta coisa miúda, tanto trabalho que não aparece, enfim coisas de casa. E se nem sempre estou ocupada, estou muitas vezes preocupada, e outras simplesmente cansada...

— Creio que um bocadinho mais de vontade...

— Falta de vontade? Não creia nisso...

— É ao menos o que parece.

Houve um momento de silêncio. Malvina, para mudar o rumo da conversação, perguntou a Tibério como se achava e se não tinha receios da recaída.

Tibério Valença respondeu, com ar de preocupação, que se achava bom e que não tinha receios de nada, antes se achava esperançado de gozar ainda longa vida e boa saúde.

— Tanto melhor, disse Malvina.

Tibério Valença, sempre que Malvina se distraía, corria os olhos em redor da sala para examinar o valor dos móveis e avaliar por eles a posição do filho.

Os móveis eram singelos e sem essa profusão e multiplicidade dos móveis das salas abastadas. O chão tinha um palmo de palhinha ou uma fibra de tapete. O que se destacava era um rico piano, presente de alguns discípulos, feito a Malvina no dia em que esta se casou.

Tibério Valença, contemplando a modéstia dos móveis da casa de seu filho, era levado a uma comparação forçada entre eles e os de sua casa, onde o luxo e o gosto davam as mãos.

Depois deste exame minucioso, interrompido pela conversação que continuava sempre, Tibério Valença deixou cair um olhar sobre uma pequena mesa ao pé da qual se achava Malvina.

Sobre essa mesa estavam umas roupas de criança.

— Cose para fora? perguntou Tibério Valença.

— Não, por que pergunta? — Vejo ali aquela roupa...

Malvina olhou para o lugar indicado pelo sogro.

— Ah! disse ela.

— Que roupa é aquela? — É de meu filho.

— De seu filho? — Ou filha; não sei.

— Ah! Tibério Valença olhou fixamente para Malvina, e quis falar. Mas causou-lhe tal impressão a serenidade daquela mulher cuja família se ia aumentar e que olhava tão impavidamente para o futuro, que a voz se lhe embargou e não pôde pronunciar palavra.

— Efetivamente, pensava ele, aqui há alguma coisa especial, alguma força sobre-humana que sustenta estas almas. Será isto o amor? Tibério Valença dirigiu algumas palavras à nora e saiu deixando lembranças para o filho e instando para que ambos fossem visitá-lo.

Poucos dias depois da cena que acabamos de contar chegaram ao Rio de Janeiro Elisa e seu marido.

Vinham estabelecer-se definitivamente na corte.

A primeira visita foi para o pai, de cuja moléstia tinham sabido na província.

Tibério Valença recebeu-os com grande alvoroço. Beijou a filha, abraçou o genro, com uma alegria infantil.

* * * Nesse dia houve em casa grande jantar, para o qual não se convidou ninguém além dos que habitualmente freqüentavam a casa.

O marido de Elisa, antes de pôr casa, devia ficar em casa do sogro, e quando comunicou este projeto a Tibério Valença, este acrescentou que não se iriam mesmo sem aceitar um baile.

O aditamento foi aceito.

O baile foi marcado para o sábado próximo, isto é, exatamente oito dias depois.

Tibério Valença estava contentíssimo.

Tudo andou logo na maior azáfama. Tibério Valença queria provar com o esplendor da festa o grau de estima em que tinha a filha e o genro.

Desde então filha e genro, genro e filha, tais foram os dois pólos em que volteava a imaginação de Tibério Valença.

Enfim o dia de sábado chegou.

À tarde houve um jantar dado a alguns poucos amigos, os mais íntimos, mas jantar esplêndido, porque Tibério Valença não quis que um só ponto da festa desdissesse do resto.

Entre os convidados para o jantar veio um que informou o dono da casa de que outro convidado não vinha, por ter grande soma de trabalho a dirigir.

Era exatamente um dos mais íntimos e melhores convivas.

Tibério Valença não se deu por convencido com o recado, e resolveu escrever-lhe uma carta exigindo a presença dele no jantar e no baile.

Em virtude disto foi ao gabinete, abriu a gaveta, tirou papel e escreveu uma carta que mandou incontinenti.

Mas, no momento de guardar de novo o papel que tirara da gaveta, reparou que entre duas folhas se resvalara uma cartinha por letra de Tomás.

Estava aberta. Era uma carta, já antiga, que Tibério Valença recebera e atirara para dentro da gaveta. Foi a carta em que Tomás participava ao pai o dia do seu casamento com Malvina.

Essa carta, que em mil outras ocasiões lhe estivera debaixo dos olhos sem maior comoção, desta vez não deixou de impressioná-lo.

Abriu a carta e leu-a. Era de redação humilde e afetuosa.

Veio à mente de Tibério Valença a visita que fizera à mulher de Tomás.

O quadro da vida modesta e pobre daquele jovem casal apresentou-se-lhe de novo aos olhos. Comparou esse quadro mesquinho com o quadro esplêndido que apresentava a casa dele, onde um jantar e um baile iam reunir amigos e parentes.

Depois viu a doce resignação da moça que vivia contente no meio da parcimônia, só porque tinha o amor e a felicidade do marido. Esta resignação afigurou-se-lhe um exemplo raro, tanto lhe parecia impossível sacrificar o gozo e o supérfluo às santas afeições do coração.

Enfim o neto que lhe aparecia no horizonte, e para o qual Malvina já confeccionava o enxoval, tomou mais viva e decisiva ainda a impressão de Tibério Valença.

Uma espécie de remorso fez-lhe doer a consciência. A nobre moça, a quem ele tratara tão desabridamente, o filho, para quem ele fora um pai tão cruel, tinham cuidado com verdadeiro carinho o mesmo homem de quem receberam a ofensa e o desagrado.

Tibério Valença refletia tudo isto passeando no gabinete. Dali ouvia o rumor dos fâmulos que preparavam o lauto jantar. Enquanto ele e os seus amigos e parentes iam apreciar os mais delicados manjares, que comeriam naquele dia Malvina e Tomás? Tibério Valença estremeceu diante desta pergunta que lhe fazia a consciência. Aqueles dois filhos que ele expelira tão desamorosamente e que com tanta generosidade lhe haviam pago não tinham naquele dia nem a milésima parte do supérfluo da casa paterna. Mas esse pouco que tivessem era, com certeza, comido em paz, na branda e doce alegria do lar doméstico.

As idéias dolorosas que assaltaram o espírito de Tibério Valença fizeram com que ele esquecesse inteiramente os convivas que se achavam nas salas.

Isto que se operava em Tibério Valença era uma nesga da natureza, ainda não tocada pelos preconceitos, e bem assim o remorso de uma ação má que havia cometido.

Isto e mais a influência da felicidade de que atualmente era objeto Tibério Valença produziram o melhor resultado. O pai de Tomás tomou uma resolução definitiva; mandou aprontar o carro e saiu.

Foi direito à casa de Tomás.

Este sabia da grande festa que se preparava em casa do pai para celebrar a chegada de Elisa e seu marido.

Assim que a entrada de Tibério Valença em casa de Tomás causou a este grande expectação.

— Por aqui, meu pai? — É verdade. Passei, entrei.

— Como está a mana? — Está boa. Ainda não foste vê-la? — Contava ir amanhã, que é dia livre.

— Ora, se eu lhes propusesse uma coisa...

— Ordene, meu pai.

Tibério Valença dirigiu-se a Malvina e tomou-lhe as mãos.

— Escute, disse ele. Vejo que há na sua alma grande nobreza, e se nem a riqueza, nem os antepassados ilustram o seu nome, vejo que resgata estas faltas por outras virtudes.

Abrace-me como pai.

Tibério, Malvina e Tomás abraçaram-se em um só grupo.

— É preciso, acrescentou o pai, que vão hoje lá a casa. E já.

— Já? perguntou Malvina.

— Já.

Daí a meia hora apeavam os três à porta da casa de Tibério Valença.

O pai arrependido apresentava aos amigos e aos parentes, aqueles dois filhos que tão cruelmente quisera excluir da comunhão da família.

Este ato de Tibério Valença veio a tempo de reparar o mal, e assegurar a paz futura dos seus velhos anos. A conduta generosa e honrada de Tomás e de Malvina valeram esta reparação.

Isto prova que a natureza pode comover a natureza, e que uma boa ação tem a faculdade muitas vezes de destruir o preconceito e restabelecer a verdade do dever.

Não pareça improvável ou violenta esta mudança no espírito de Tibério. As circunstâncias favoreceram essa mudança, para a qual o principal motivo foi a resignação de Malvina e de Tomás.

Fibra paternal, mais desvencilhada, naquele dia, dos liames de uma consideração social mal entendida, pôde palpitar livremente e mostrar em Tibério Valença um fundo melhor do que as suas aparências cruéis. Tanto é verdade que, se a educação modifica a natureza, a natureza pode em suas exigências mais absolutas readquirir os seus direitos e manifestar a sua força.

Com a declaração de que foram sempre felizes os heróis deste conto deita-se-lhe um ponto final.

Fonte: www.dominiopublico.gov.br

A ÚLTIMA RECEITA

A viúva Lemos adoecera; uns dizem que dos nervos, outros que de saudades do marido.

Fosse o que fosse, a verdade é que adoecera, em certa noite de setembro, ao regressar de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia surda e devota. A doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que coisa seria? Na opinião da tia um cozimento de altéia e um rosário a não sei que santo do céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava a eficácia dos remédios da tia, mas opinava por um médico.

Chamou-se um médico.

Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel.

O dr. Avelar limitou-se a torcer o nariz quando examinou a enferma, e a receitar dois ou três remédios, dos quais só um era útil; o resto figurava no fundo do quadro.

D. Paula tomou os remédios como quem não queria deixar a vida. Havia razão. Apenas dois anos fora casada, e contava apenas vinte e quatro anos. Havia já treze meses que lhe morrera o marido. Apenas entrara no pórtico do matrimônio.

A esta circunstância é justo acrescentar mais duas; era bonita e tinha alguma coisa de seu. Três razões para agarrar-se à vida como o náufrago a uma tábua de salvação.

Uma única razão haveria para que ela aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente saudades do marido. Mas não tinha. O casamento fora um arranjo de família e dele próprio; Paula aceitou o arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não deu ao marido nem estima nem amor. Viúva dois anos depois, e ainda moça, é claro que a vida para ela começava apenas. A idéia de morrer seria para ela não só a maior de todas as calamidades, mas também a mais desastrada de todas as tolices.

Não quis morrer nem o caso era de morte.

Os remédios foram tomados pontualmente; o médico mostrou-se assíduo; dentro de poucos dias, três a quatro, estava restabelecida a interessante enferma.

De todo? Não.

Quando o médico voltou no quinto dia, achou-a sentada na sala, envolvida em grande roupão, com os pés numa almofada, o rosto extremamente pálido, e muito mais ainda por causa da pouca luz.

O estado era natural em quem se levantava da cama; mas a viuvinha alegou ainda umas dores de cabeça, a que o médico chamou nevralgia, e uns tremores, que foram classificados no capítulo dos nervos.

— Serão graves moléstias? perguntou ela.

— Oh! não, minha senhora, respondeu Avelar, são achaques aborrecidos, mas não graves, e geralmente próprios de doentes formosas.

Paula sorriu com um ar tão triste que fazia duvidar do prazer com que ouviu estas palavras do médico.

— Dá-me porém remédios, não? perguntou ela.

— Sem dúvida.

Avelar receitou efetivamente alguma coisa e prometeu voltar no dia seguinte.

A tia era surda, como sabemos, não ouvia nada da conversa entre os dois. Mas não era tola; começou a reparar que a sobrinha ficava mais doente quando se aproximava a chegada do médico. Além disso nutria dúvidas sérias acerca da aplicação exata dos remédios. O certo é porém que Paula, tão amiga de bailes e passeios, parecia realmente doente porque não saía de casa.

Notou igualmente a tia que, pouco antes da hora do médico, a sobrinha fazia uma aplicação mais copiosa de pó-de-arroz. Paula era morena; ficava muito branca. A meia luz da sala, os xales, o ar mórbido tornavam-lhe a palidez extremamente verossímil.

A tia não parou nesse ponto; foi ainda além. Não era médico o Avelar? Naturalmente devia saber se realmente estava enferma a viúva. Interrogado o médico, asseverou que a viúva estava muito mal, e prescreveu-lhe o mais absoluto repouso.

Tal era a situação da enferma e do facultativo.

Um dia em que este entrou achou-a folheando um livro. Estava com a palidez de costume e o mesmo ar abatido.

— Como vai a minha doente? disse familiarmente o dr. Avelar.

— Mal.

— Mal? — Horrorosamente mal... Que lhe parece o pulso? Avelar examinou-lhe o pulso.

— Regular, disse ele. A tez está um tanto pálida, mas os olhos parecem bons... Houve algum ataque? — Não; mas sinto-me desfalecida.

— Deu o passeio que lhe aconselhei? — Não tive ânimo.

— Fez mal. Não passeou e está lendo...

— Um livro inocente.

— Inocente? O médico pegou no livro e examinou-lhe a lombada.

— Um livro diabólico! disse ele atirando-o para cima da mesa.

— Por quê? — Livro de poeta, livro para namorados, minha senhora, que é uma casta de doentes terríveis. Não se curam eles; ou raramente se curam; mas há pior, que é adoecerem os sãos. Peço-lhe licença para confiscar o livro.

— Uma distração! murmurou Paula com uma doçura capaz de vencer um tirano.

Mas o médico mostrou-se firme.

— Uma perversão, minha senhora! Em ficando boa pode ler se quiser todos os poetas do século; antes, não.

Paula ouviu esta palavra com singular, mas disfarçada alegria.

— Parece-lhe então que estou muito doente? disse ela.

— Muito, não digo; tem ainda um resto de abalo que só pode desaparecer com o tempo e um regime severo.

— Severo demais.

— Mas necessário...

— Duas coisas lastimo sobre todas.

— Quais? — A pimenta e o café.

— Oh! — É o que lhe digo. Não tomar café nem pimenta é o limite da paciência humana. Quinze dias mais deste regime ou desobedeço ou expiro.

— Nesse caso, expire, disse Avelar sorrindo.

— Acha melhor? — Acho igualmente mau. O remorso, porém, será meu só, enquanto que se V. Excia.

desobedecer terá os seus últimos instantes amargurados por um tardio arrependimento.

Melhor é morrer vítima que culpada.

— Melhor é não morrer nem culpada nem vítima.

— Nesse caso não tome pimenta nem café.

A leitora que acaba de ler esta conversa, admirar-se-ia muito se visse a nossa doente nesse mesmo dia ao jantar: teve pimenta à farta e bebeu excelente café no fim. Não admira porque era o seu costume. A tia admirava-se com razão de uma doença que consentia tais liberdades; a sobrinha não se explicava cabalmente a este respeito.

Choviam convites de jantares e bailes. A viuvinha recusava-os todos por causa do seu mau estado de saúde.

Foi uma verdadeira calamidade.

Entraram a chover as visitas e bilhetes. Muitas pessoas achavam que a doença devia ser interna, muito interna, profundamente interna, visto que lhe não apareciam sinais no rosto.

Os nervos (eternos caluniados!) foram a explicação que geralmente se deu à singular moléstia da moça.

Três meses correram assim, sem que a doença de Paula cedesse uma linha aos esforços do médico. Os esforços do médico não podiam ser maiores; de dois em dois dias uma receita. Se a doente se esquecia do seu estado e entrava a falar e a corar como quem tinha saúde, o médico era o primeiro a lembrar-lhe o perigo, e ela obedecia logo entregando-se à mais prudente inação.

Às vezes zangava-se.

— Todos os senhores são uns bárbaros, dizia ela.

— Uns bárbaros... necessários, respondia Avelar sorrindo.

E acrescentava: — Eu não direi o que são as doentes.

— Diga sempre.

— Não digo.

— Caprichosas? — Mais.

— Rebeldes? — Menos.

— Impertinentes? — Sim. Algumas são impertinentes e amáveis.

— Como eu.

— Naturalmente.

— Já o esperava, dizia a viúva Lemos sorrindo. Sabe por que razão lhe perdôo tudo? É porque é médico. Um médico tem carta branca para gracejar conosco; isso mesmo nos dá saúde.

Neste ponto levantou-se.

— Parece-me até que já estou melhor.

— Parece e está... quero dizer, está muito mal.

— Muito mal? — Não, muito mal, não; não está boa...

— Meteu-me um susto! Seria realmente zombar do leitor o explicar-lhe que a doente e o médico estavam a pender um para o outro; que a doente sofria tanto como o Corcovado, e que o médico conhecia cabalmente a sua perfeita saúde. Gostavam um do outro sem se atreverem a dizer a verdade, simplesmente pelo receio de se enganarem. O meio de se falarem todos os dias era aquele.

Mas gostavam eles já antes da fatal constipação do baile? Não. Até então ignoravam a existência um do outro. A doença favoreceu o encontro; o encontro o coração; o coração favorecia desde logo o casamento, se tivessem caminhado em linha reta, em vez dos rodeios em que andavam.

Quando Paula ficou boa da constipação adoeceu do coração; não tendo outro recurso fingiu-se doente. O médico, que pela sua parte desejava isso mesmo, exagerou ainda as invenções da suposta enferma.

A tia, sendo surda, assistia inutilmente aos diálogos da doente com o médico. Um dia escreveu a este pedindo-lhe que apressasse a cura da sobrinha. Avelar desconfiou da carta a princípio. Seria uma despedida? Podia ser pelo menos uma desconfiança.

Respondeu que a moléstia de D. Paula era aparentemente insignificante, mas podia tornar-se grave sem um regime severo, que ele lhe recomendava sempre.

A situação, entretanto, prolongava-se. A doente estava cansada da doença, e o médico da medicina. Ambos eles começaram a desconfiar que não eram mal aceitos. O negócio entretanto não caminhava muito.

Um dia Avelar entrou triste em casa da viúva.

— Jesus! exclamou sorrindo a viúva; ninguém dirá que é o médico. Parece o doente.

— Doente de lástima, disse Avelar abanando a cabeça; por outros termos, é a lástima que me dá este ar enfermo.

— Lástima de quê? — De V. Excia.

— De mim? — É verdade.

A moça riu-se consigo mesma; todavia esperou a explicação.

Houve um silêncio.

No fim dele: — Sabe, disse o médico, sabe que está muito mal? — Eu? Avelar fez um gesto afirmativo.

— Já o sabia, suspirou a doente.

— Não digo que tudo esteja perdido, continuou o médico, mas nada se perde em prevenir.

— Então...

— Coragem! — Fale.

— Mande chamar o padre.

— Aconselha-me a confissão? — É indispensável.

— Perderam-se todas as esperanças? — Todas. Confissão e banhos.

A viúva soltou uma risada.

— E banhos? — Banhos de igreja.

Outra risada.

— Aconselha-me então o casamento.

— Justo.

— Imagino que está gracejando.

— Estou falando muito sério. O remédio não é novo nem desprezível. Todas as semanas lá vão muitos enfermos, e dão-se bem alguns deles. É um específico inventado desde muitos séculos e que provavelmente só acabará no último dia do mundo. Pela minha parte nada mais tenho que fazer.

Quando a viuvinha menos esperava, Avelar levantou-se e saiu. Falava sério ou gracejava? Dois dias se passaram sem que o médico voltasse. A doente estava triste; a tia aflita; houve idéia de mandar chamar outro médico. Recusou-a a doente.

— Então só um médico acertou com a tua moléstia? — Talvez.

No fim de três dias recebeu a viúva Lemos uma carta do médico.

Abriu-a.

Dizia assim: É absolutamente impossível esconder por mais tempo o que sinto por V. Excia. Amo-a.

Sua moléstia precisa de uma última receita, verdadeiro remédio para quem ama — sim, porque V. Excia. também me ama. Que razão obrigaria a negá-lo? Se a sua resposta for afirmativa haverá mais dois entes felizes neste mundo.

Se negativa...

Adeus! A carta foi lida com explosão de entusiasmo; o médico foi chamado a toda a pressa, para receber e dar saúde. Casaram-se os dois daí a quarenta dias.

Tal é a história da Última receita.

Fonte: www.dominiopublico.gov.br