O Foco Narrativo no Romance
CEFET - Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
CURSO: Letras - Departamento de Linguagem e Tecnologia
DISCIPLINA: Teoria da Literatura II - PERÍODO: 2º
PROFESSOR: Roniere Menezes
GRUPO: Jaqueline Teixeira Gomes
Luís Antônio Matias Soares
Paulo Alexandre de Freitas
Seminário:
O Foco Narrativo no Romance
Uma Vida em Segredo
A prosa de Autran Dourado no livro Uma vida em Segredo mescla variados elementos da estrutura de uma narrativa.
Percebe-se inicialmente a presença do narrador onisciente e onipresente, na 3ª pessoa do singular. Ele tem conhecimento tanto dos fatos e eventos do enredo quanto dos processos físicos, emocionais e psíquicos que habitam o corpo e a alma das personagens em suas relações interpessoais.
Sabe-se que o narrador é o elemento que estrutura qualquer história. Mas - conforme Gancho (s/data) - deve-se atentar que este “não é o autor, mas uma entidade de ficção, isto é, uma criação linguística do autor”.
Tem-se, pois, em Uma Vida em Segredo, um narrador onisciente (que possui o conhecimento completo de todos os fatos do enredo) e onipresente (que está em todos os lugares ao mesmo tempo) que sabe mais coisas que qualquer uma das personagens da história.
Ele tem ciência de tudo o que se passa no íntimo das personagens. Sabe acerca de suas emoções e pensamentos e conhece igualmente a totalidade da trama e da ação constante na narrativa, seus antecedentes e suas possíveis consequências.
É o que Jean Pouillion (2011) chama de “a visão por trás”, na qual o narrador domina tanto o saber da vida das personagens quanto aquele referente a qualquer acontecimento no enredo da obra, como um Deus que tudo sabe e vê.
O narrador é também uma entidade imparcial: mostra todos os detalhes sem interferir neles pessoalmente, seja em relação ao encaminhamento da história, seja nas relações que as personagens entabulam entre si. Age como se em verdade não estivesse presente narrando os fatos, mas como se a história se contasse a si mesma.
Um aspecto peculiar que se pode perceber durante a leitura da obra é a “encarnação” do narrador como se fosse um habitante da cidade na qual Biela vai morar. Isto pode ser captado, por exemplo, em trechos e momentos onde o comportamento da personagem principal é julgado pela sociedade na qual vive.
No livro de Dourado são utilizados basicamente dois tipos de técnicas de discurso: a primeira delas é a do discurso indireto (quando o narrador faz uso de suas próprias palavras para reproduzir a fala das personagens. Nesse caso a fala não vem precedida de travessão ou entre aspas, mas é simplesmente inserida no discurso do narrador, eliminando-se os sinais de pontuação e usando-se as conjunções que, se e como, precedidas dos verbos de elocução dizer, afirmar, ponderar).
Exemplo: “Quem deu a ideia de trazer prima Biela para a cidade foi Constança. Deixa, Conrado, traz ela cá para casa, disse”; ou “Constança, que não percebeu que o marido estava apenas pensando, ou fez que não percebeu, ponderou, não ia dar certo, Biela não tinha...”
A outra técnica é a do discurso indireto livre (tipo de discurso misto no qual se associam as características do discurso direto e indireto. Retrata a fala interior das personagens, sendo suas emoções, ideias e reflexões inseridas sutilmente em meio à fala do próprio narrador, dando muitas vezes no leitor a sensação de mistura entre elas).
Exemplo:
Realmente, não só as meninas, mas Constança esperava uma coisa diferente. A primeira impressão foi péssima, prima Biela parecia mesmo pancada. Tomara que seja só impressão, coisa de primeiro dia. Tem gente que não se mostra logo, guarda tempo pra se mostrar. Vai ver até depois se mostra falante, sirigaita. Às vezes isso acontece, um se mostra esquisitão, depois se acostuma, vai ver até é uma moça bem boa e dada.
No caso do discurso indireto livre não se usa os verbos de elocução, o travessão ou os dois pontos. E é habitual que este tipo de discurso esteja ligado ao monólogo interior no qual o narrador revela as vozes íntimas das personagens. O monologo interior é, portanto, uma forma de apresentação direta dos pensamentos e sentimentos das personagens. Ele registra as emoções, as motivações e os desabafos, enfim, tudo aquilo que elas não ousam declarar de forma clara no convívio social, mas a respeito de que pensam, sonham ou desejam.
Neste caso, o discurso indireto livre corresponde ao monólogo interior. Ele é representado em Uma Vida em Segredo, por exemplo, na passagem em que a personagem Conrado raciocina sobre os prós e os contras de trazer Biela para morar com a família em sua casa; ou quando Constança, a esposa de Conrado, reflete sobre suas várias tentativas no objetivo de modificar o comportamento da prima para melhor integrá-la na sociedade; ou, por fim, nas próprias falas e pensamentos da protagonista em múltiplos momentos da obra: ela - que se mostra sempre tão simplória e apática - é interiormente rica, revelando uma série de processos reflexivos ao longo da narrativa que buscam fazer frente e responder aos estímulos vivenciados a partir de sua ida para a cidade.
Outro importante elemento da narrativa na obra de Dourado será o do fluxo de consciência. Este elemento se apresenta ao leitor como um desenrolar ininterrupto de pensamentos, ideias e/ou sentimentos por parte das personagens. Nestas passagens as falas costumam se apresentar de modo bastante desarticulado ou sem qualquer sequência lógica, demonstrando assim a manifestação do inconsciente das personagens.
Têm-se um bom exemplo de fluxo de consciência na passagem que ocorre pouco antes de Biela se levantar da canastra onde estivera sentada para se dirigir até o espelho de seu quarto. Naquele momento ela decide recuperar o modo de vida que havia renegado por tanto tempo desde que se mudara para a cidade. Então ela se põe primeiramente a relembrar todos os principais conflitos emocionais pelos quais passara no decorrer da vida (2000):
E começou de novo a se lembrar dos primeiros dias naquela casa que agora era a casa em que teria de viver para o resto da vida, não podia fugir, não, disso tinha certeza. Se lembrou novamente como tinham sido duros aqueles dias. Ela no seu cavalo pampa ronceiro seguindo primo Conrado, desde o principinho procurando adivinhar como seria a nova vida que ia viver. A entrada na cidade, a chegada, o espanto dos meninos. A sala, os móveis, o grande armário preto que depois veio a saber que se chamava piano. A figura de prima Constança, tão rica figura, a mesa comprida da sala de jantar, as humilhações na mesa. Mazília a seu lado se levantou para ajeitar-lhe o cabelo. O riso de Alfeu, o pigarro que primo Conrado puxou. Os vestidos, dona Marieta, cosendo na máquina, os alfinetes na boca de dona Marieta provando os vestidos. A cara de Alfeu, o nariz achatado na vidraça. As coisas boas, as conversas de prima Constança, prima Constança no quarto do oratório, Santana com o Menino, a bondade que ela vestiu em prima Constança. Depois tudo sumiu para aparecer Mazília no piano. Mazília agora tocava o harmonium da igreja...
Um último exemplo de fluxo de consciência surgirá nos parágrafos finais do livro e da existência da protagonista quando ela (já meio inconsciente em decorrência da morte que se aproxima) rememora sobre acontecimentos e pessoas que tiveram importância crucial em sua vida e no seu passado, tudo surgindo numa forma mesclada que culminará na belíssima imagem final da obra (p.114, 2000):
Viu não mais com os olhos, esses estavam para ela fechados, umas manchas brancas deslizando rápidas. Um pasto muito verde onde as manchas se mudavam em figuras quase fluidas. E essas figuras pairavam sobre o verde, sustentadas em nada, contra um céu azul onde voavam pássaros em círculo. Começou a ouvir uma música de harmonium, um latido alegre de cachorro. E, num rápido instante, passaram por ela Mazília toda vestida de branco no seu vestido de noiva, a mãe sem rosto cantando a sua cantiga. O último a se fundir no azul foi Vismundo, que ainda perseguia os derradeiros pássaros do céu.
REFERÊNCIAS
- CANDIDO, Antônio et all. A personagem do romance. In:____. A Personagem de Ficção. p.53/80. Editora Perspectiva.
- DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. Rio de Janeiro. Rocco. 9ª edição: 2000. 131p.
- GANCHO, Cândida Vilares. Elementos da Narrativa. In:____. Como analisar Narrativas. p. 11/33. Editora Ática.
- RICARDO, Sérgio. O discurso indireto e o indireto livre. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/405071>. Acesso em 23 fev. 2013.
- RICARDO, Sérgio. O monólogo interior direto e indireto. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/404995>. Acesso em 24 fev. 2013.
- SANTANA, Wilder Kleber Fernandes de. Fichamento de “O Foco Narrativo” de Lígia Chiappini. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/3096879>. Acesso em 22 fev. 2013.
- SANTOS, Luís Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeitos ficcionais. In:____. Sujeito, Tempo e Espaço Ficcionais: Introdução à Teoria da Literatura. p. 01/40. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2001.
- SILVA, Pedro Alcântara Lima e. Verbos de elocução: vamos ver o que são e quais são. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/992698>. Acesso em 24 fev. 2013.