ROTEIRO DE ESTUDOS – ATIVIDADES SOBRE O TEXTO “A PRENSA E AS FONTES”

ROTEIRO DE ESTUDOS – ATIVIDADES SOBRE O TEXTO “A PRENSA E AS FONTES”

1) Justifique a afirmativa de Chartier de que, em Cervantes, a presença da oficina de impressão é mais do que uma simples decoração (p. 86).

Em Cervantes a colocação de uma tipografia em cena ultrapassa a simples ideia de apresentação, representação ou mera descrição do ambiente de trabalho onde antigamente (e ainda hoje) se imprimiam os livros.

Também vai além da simples ideia de decoração, isto é, de fazer surgir determinada ação ou conteúdo literário num ambiente decorativo que serve apenas como palco de alguma cena, diálogo ou ação. Se fosse este o caso, os capítulos referentes à tipografia se assemelhariam às cenas de certos filmes de terror onde histórias de mistério e assassinatos são contadas por um indivíduo específico para seus amigos em noites muito escuras e ao redor de uma fogueira.

Cervantes, ao contrário, introduz a tipografia como um dos temas ou assuntos de seu livro. Como num jogo metalinguístico da própria construção da obra, Cervantes nos traz algumas das questões que com certeza andavam atormentando a sua mente (e a de outros escritores também) naquela época: o papel dos compositores e revisores na elaboração do livro, o papel dos tradutores, o livro enquanto fonte de renda e glória, etc.

Cervantes nos apresenta o local onde o livro é materialmente construído e de onde só sairá pronto para a leitura e constrói a discussão sobre o tema fazendo surgir para nós aquele ambiente quase como um dos personagens da própria obra. E – para dizer o mínimo! - personagem dos mais importantes naqueles e nos tempos atuais.

2) DESCREVA os aspectos da oficina tipográfica visitada pelo Quixote, ressaltando aqueles que lhes pareçam aplicáveis às oficinas modernas.

Na oficina tipográfica, o engenhoso fidalgo vai descrevendo e discutindo acerca dos variados passos da produção dos livros. Num dado local, diz ele, “se reproduzia, ali se corrigia, lá se compunha, do outro lado se revisava”.

Comparativamente às gráficas atuais, creio que podemos encontrar nestas basicamente as mesmas tarefas de composição das páginas e de revisão das folhas impressas à título de provas, a retificação dos erros pelos compositores e a impressão dos moldes destinados a ser impressos.

Isso ainda acontece tanto nas gráficas mais antigas quanto naquelas compostas por modernas impressoras digitais e computadores.

3) Em que consistem as dificuldades notadas por D. Quixote acerca da tradução?

Dom Quixote aponta a questão relativa à tradução literal de um texto quando diz que ele apostaria que se traduz “piu” por “mais’ ou “giú” por “abaixo”. Nesse sentido, para ele “a tradução é como olhar pelo avesso as tapeçarias de Flandres: por mais que se distingam suas figuras, essas estão repletas de fios que as envolvem e por isso não se veem lisas e coloridas como do lado direito.

Suponho que Cervantes tenha querido dizer que as traduções sempre se mostrarão imperfeitas perante a obra original, ou, como afirma textualmente, “repletas de fios que as envolvem e por isso não se veem lisas e coloridas como do lado direito”.

Outra dificuldade que é salientada por Dom Quixote é a financeira. Os “tradutores” buscariam imprimir diretamente os livros que traduzem devido ao fato de que se transferirem tal encargo para um editor, este decerto ficaria com a maior parte dos lucros da edição.

Além disso, Cervantes aponta para os casos em que os tradutores/autores são lesados/enganados pelos editores ou livreiros em relação à falsificação dos livros contábeis daqueles ou à quantidade real de livros que teria sido impressa em dada edição. Nesse último caso, o editor imprimiria maior quantidade de livros do que aquela que teria sido informada para o autor/tradutor e quando se desse a venda dos mesmos, o editor estaria vendendo os (seus) livros que não haviam sido contabilizados e não aqueles que pertenceriam de fato ao autor/tradutor.

4) Quanto ao revisor, quais são as questões centrais do texto? Em que elas interferem no trabalho do compositor?

O trabalho do compositor é a composição das páginas do livro para a impressão e o do revisor a revisão das primeiras folhas impressas à titulo de prova a partir da composição.

Segundo o Manual da Arte de Imprimir, de Alonso Victor de Paredes, “o revisor deve identificar os erros dos compositores, seguindo as provas impressas do texto, partindo da leitura em voz alta da cópia original”. Deve também atuar como censor e recusar/proibir a impressão de livros nos quais descubra algo proibido pela inquisição, que contrarie a fé, o rei ou a coisa pública. O revisor é ainda o que dá a forma final ao texto a ser impresso, corrigindo a pontuação necessária e reparando os erros do autor e as negligências do compositor.

O revisor deve conhecer, portanto, de gramática, de ortografia, de etimologia, de pontuação, de acentuação, bem como da caligrafia e da própria intenção e dos desejos do autor ao escrever um livro ou abordar determinado tema, “de modo a transmiti-los adequadamente ao leitor”.

Segundo Joseph Moxon, “todas as decisões tomadas pelo compositor são, todavia, submissas às intervenções do revisor, que está implicado de maneira decisiva no processo de publicação do texto, uma vez que examina a pontuação, os itálicos ou as maiúsculas colocados pelo compositor, assim como toda falta por este cometida, seja por erro ou por imprecisão de julgamento”.

5) JUSTIFIQUE a frase "porque os livros não são compostos na ordem do texto, mas na ordem dos moldes" (p. 91)

Os livros são compostos na ordem dos moldes para que o leitor receba o texto da obra de forma mais organizada, coerente e atraente para a leitura.

Cervantes quis dizer que os livros são escritos pelos autores de modo um tanto confuso, atabalhoadamente, e ao compositor restaria a função de colocar o texto recebido dentro de certas normas, dentro de uma ordem e de uma visão mais linear, pontuando corretamente para que “seja claramente inteligível”, distinguindo as frases e colocando “acentos, parênteses, pontos de interrogação e de exclamação”.

O compositor e o revisor exerceriam neste sentido o papel de intermediário entre o que escreveu o autor e o que será publicado pela tipografia e recebido pelo leitor. Daí a necessidade do conhecimento de todas aquelas ciências da escrita (etimologia, pontuação etc.), da caligrafia e das intenções do autor.

Na composição do molde de um livro, o compositor deve considerar inicialmente “como organizar seu trabalho da melhor maneira possível, desde a página de título até o corpo do livro, ou seja, como distribuir os parágrafos, a pontuação, as quebras de linha, os itálicos, etc., em conformidade, do modo mais preciso possível, com o gênio do autor e, também, com a capacidade do leitor”.

Daí a diferença direta entre o que um autor escreve e o texto que chega efetivamente às mãos do leitor.

6) A analogia entre o corpo humano e o livro ajudam a compreender aspectos materiais e "espirituais" do livro? Em que consistem esses aspectos?

Sim, ajudam.

Vê-se que não se pode nem se deve separar a “materialidade do texto e a textualidade do livro”. O livro (obra material ou corpo) e o texto (obra espiritual ou alma) formam um conjunto: o livro apresenta uma dupla natureza, de forma semelhante à ideia da comunhão e unicidade entre o corpo e a alma dos seres humanos.

A materialidade do livro (sua capa e seu interior, suas páginas) representaria o corpo humano que pode ser visto e tocado. Já o texto e as intenções do autor contidas na obra se assemelhariam à alma invisível que habita tal corpo.

Para Paredes a alma do livro “não é somente o texto tal qual fora composto, ditado e imaginado por seu criador. Ela é esse texto apresentado em uma disposição adequada, um livro perfeitamente acabado... Uma bela impressão sob a prensa, limpa e cuidada, é o que faz que eu possa compará-la a um corpo gracioso e elegante”.

Conclui-se que a beleza e a completude de uma obra advêm não apenas do texto em si criado pelo autor, mas pelo conjunto completo da obra: o texto e o invólucro no qual ele (o texto) se apresenta: o livro enquanto matéria tocável e percebível ao tato, ao olfato e à visão, sendo constituído igualmente por seu conteúdo e por sua forma, por sua substância e seu invólucro.

7) Pensando no tópico "o burrinho de Sancho", o autor aponta contradições na composição da obra D. Quixote. DISCUTA essas contradições à luz dos critérios editoriais e à luz do campo ficcional.

Especificamente em relação à questão do burrinho de Sancho Pança, vemos que em determinado capítulo o burrinho de nome “Cinzento” fora roubado de seu dono. Mais adiante no livro, porém - e sem qualquer explicação por parte do autor ou dos personagens do livro – ele ressurge inesperadamente, sem que Sancho Pança ou Cervantes tivessem demonstrado no texto como se dera a recuperação do animal.

Deve-se primeiramente levar em conta o trabalho conjunto do autor, dos compositores e revisores na construção e na confecção de um livro. Este trabalho é muito útil, por exemplo, quando é utilizado para descobrir no texto erros gramaticais (pontuação, acentuação, etc.) do autor ou criados/constituídos pelo compositor no objetivo de corrigir a obra. Ao mesmo tempo, porém, pode ao contrário ocasionar/produzir seus próprios erros na edição de um livro, erros esses que muitas vezes acabam incorporados na própria obra.

No caso específico do roubo do burrinho de Sancho Pança, podemos pensar duas hipóteses: ou Cervantes de fato teria se esquecido/se enganado ao dar continuidade à presença do burrinho após o mesmo ter sido surrupiado ou teriam sido os próprios editores do livro (os compositores e revisores) que teriam cometido algum tipo de engano em relação ao fato.

Num arroubo de consertar o texto, por exemplo, poderiam ter ocasionado o problema referente à volta do burrico a partir da perda ou da alteração de um capítulo posterior no qual Cervantes teria efetivamente explicado o retorno e a recuperação do animal. Essa é uma ideia possível de ser pensada.

De toda forma, na segunda edição de seu livro Cervantes redige dois capítulos extras para explicar corretamente como se dera o roubo e a recuperação do animal. No entanto – e mais uma vez - ele e seus revisores/compositores deixaram escapar uma frase que fez perder todo o trabalho efetivado na intenção de corrigir o erro anterior.

Em relação ao campo ficcional, essa história do desaparecimento do burrinho de Sancho Pança nos remete ao fato de que “os textos são móveis, instáveis, maleáveis. Suas variantes resultam de uma pluralidade de decisões ou de erros, distribuídos ao longo de seu processo de publicação. Como demonstra o exemplo de Dom Quixote, a negligência do autor, a indiferença dos compositores, a falta de atenção dos revisores, todos estes são elementos que contribuem para os diferentes e sucessivos estados de uma mesma obra”.

Existem duas concepções que relacionam esta questão ao campo ficcional: a primeira afirma que se deve buscar o texto ou a ideia original do autor, sem as intervenções que os compositores e revisores depositaram na obra durante o processo de sua impressão. Tais intervenções muitas vezes subvertem o que o autor realmente quis dizer.

A outra ideia afirma exatamente o contrário: a obra literária só existe ao se tornar materialmente um livro e nesta viagem estão incluídas as intervenções dos revisores e dos compositores. Nesta segunda perspectiva, “as formas sob as quais uma obra foi publicada, por mais estranhas que pareçam, devem ser consideradas em suas diferentes encarnações históricas. Todos os estados do texto, mesmo os mais inconsistentes e bizarros, precisam ser compreendidos e, eventualmente, editados, pois, resultando tanto de gestos de escrita como de práticas da oficina, eles constituem a obra tal como foi transmitida a seus leitores. Essa existe apenas sob as formas materiais, simultâneas ou sucessivas, que lhe dão existência. A busca de um texto puro e primeiro, que existiria antes ou além de suas múltiplas materialidades, é vã”.

8) "Editar uma obra não é reencontrar um ideal copy text, mas explicitar a preferência dada a um ou outro de seus estados..." p. 98-9

JUSTIFIQUE essa afirmativa.

Não se deve imaginar que ao se editar uma obra a estaremos reproduzindo de forma exata e perfeita a partir do texto originário saído da pena e da mente do escrito/autor. As muitas variantes que interferem num texto pronto para a leitura, as correções, as alterações, as revisões e composições posteriores, os erros e acertos do próprio autor, bem como aqueles presentes nas fases de revisão e composição do livro, passam a fazer parte de fato do texto publicado.

É possível, ainda, que aquilo que acaso entendamos como um erro ou engano do autor seja em verdade sua real intenção em determinado momento ou tema da narrativa, ainda que por algum motivo específico consideremos como um erro ou engano.

No caso do Dom Quixote, cabe pensar ainda que o presente texto é mais “escrito” de forma “oral” do que “escrito” verdadeiramente. O fato é que eram muito comuns na época de Cervantes as transmissões de histórias por meio da oralidade e o texto se encontra mais próximo da transmissão oral do que da escrita.

Portanto, não se pode e nem se deve jamais pensar num texto completamente original e puro, livre de todas as possíveis influências externas e internas passiveis de alterá-lo e compô-lo definitivamente.

9) DISCUTA as questões tratadas no subtítulo "A glória e a lucro".

Para Cervantes, um autor não pode querer ter ao mesmo tempo a “glória” e o “lucro”, isto é, não deve acreditar como possível se tornar famoso e ao mesmo tempo se enriquecer a partir dos ganhos financeiros resultantes das obras que compõe.

Para Cervantes isto não é possível. Para ele o autor deve buscar a proteção de um mecenas no objetivo de sobreviver. “Trata-se aqui de uma esperança vã. Os livros não podem dar, ao mesmo tempo, glória e dinheiro. Para todos aqueles que não têm nem posição social nem riqueza, como o próprio Cervantes, somente a generosidade dos protetores – nesse caso, o conde de Lemos, vice-rei de Nápoles, e o bispo de Toledo, Bernardo de Sandoval Y Rojas – pode assegurar uma vida decente”.

São ainda tratadas questões relativas aos livros serem impressos e custeados pelos próprios autores e aquelas nas quais os autores repassam para os editores a possibilidade de publicarem os livros e vendê-los a troco de algum pagamento antecipado.

Aborda-se nesses casos a problemática da honestidade dos livreiros e impressores que muitas vezes ocultam dos autores as suas anotações contábeis relacionadas à venda dos livros e mesmo à quantidade de livros impressos, o que pode levar a que vendam livros impressos a mais em contraposição à não venda dos efetivos livros que dariam lucro de fato ao autor.

Cervantes aborda, finalmente, a questão dos tradutores/autores e sua difícil relação com os referidos editores dos livros.

10) Como se coloca a questão do plágio neste texto?

Cervantes expôs a questão do plágio feito por Alonso Fernández de Avellaneda (a Segunda Parte das Andanças de Dom Quixote de La Mancha) dentro de sua própria obra e teceu suas considerações e críticas diretas ao autor do plágio, expondo ainda o plágio para os seus próprios leitores e tratando a ele e a seu autor algumas vezes de forma cômica e outras de forma mais firme e consistente.

“O fato de que os personagens de Dom Quixote leiam e comentem o livro que conta sua própria história constitui para Borges (Jorge Luiz Borges) uma das magias do romance (de Cervantes). Para ele, esse dispositivo narrativo é um dos instrumentos mais eficazes para que sejam confundidos o mundo do livro e o mundo do leitor”. Vê-se também aí certa discussão metalinguística da própria obra sobre si mesma e as questões que a afetam.

Em seu texto, “Cervantes falsifica a narração de Avellaneda” para seus leitores. Cervantes cria um jogo em relação à obra plagiada e prova para o leitor (de uma maneira um tanto cômica) o plágio efetuado, informando não valer a pena ler aquela obra, mas sim a original dele mesmo.

“Cervantes transforma o plágio de Avellaneda em tema de sua própria ficção”, elaborando literariamente e dentro de sua própria obra temas e assuntos relacionados ao livro que compôs e que certamente muito o incomodaram.

REFERÊNCIA:

CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII). 1ª. Ed. Rio de Janeiro: UNESP, 2007. p. 85-128.