IDENTIFICANDO O POEMA - PARTE 2

O artigo de Teoria Literária a seguir surgiu de um desafio proposto pela coordenadora do site: A voz da Poesia - www.avozdapoesia.com.br - Sereníssima - pedindo que fizesse um material de estudo sobre Poesia. Elaborei então um esquema com os temas principais e estou escrevendo o material. A primeira parte do estudo buscou diferenciar Poesia e poema, esta segunda parte busca caminhos para identificar se estamos diante de um poema ou estamos diante um texto em prosa. Estou produzindo uma terceira parte (sobre elementos constituintes do poema - sua estrutura física).

PARTE 2

IDENTIFICANDO O POEMA

Buscando elementos para identificar quando lemos ou realizamos um poema.

Quais os elementos da “Língua Portuguesa” - relacionados à linguagem poética.

Os tópicos a seguir mostrarão a diferença entre poema e outros gêneros literários relacionados ao texto em prosa.

3 - a) POEMA X DESCRIÇÃO

A definição básica para poema seria: um conjunto de versos.

Claro que somente esta definição não seria o suficiente para se aventurar na criação de um poema.

Escrever algumas poucas palavras em uma sequência, pular para a linha seguinte, escrever mais algumas poucas palavras, pular, novamente, para a linha seguinte, escrever mais algumas palavras, pular novamente de linha e assim por diante não nos garante que estamos diante de um poema.

Ex:

DESCRIÇÃO DA CASA AMARELA

A casa é amarela

E tem uma janela,

Uma passagem na lateral

E no fundo um quintal.

O simples fato de não colocar estas orações coordenadas numa mesma linha e o fato de criar os pares de rimas: amarela/janela, lateral/quintal, também, não garante que estamos diante de um/ou construindo um poema.

A linguagem do poema requer um trabalho diverso do texto em prosa, como é o que acima lemos. Se fosse uma descrição, o texto da casa amarela estaria correto, como poema não.

Se observarmos, todo o texto se encontra num tempo verbal do indicativo, aqui, no presente do indicativo. Não há nada de pessoal (vindo d´alma), subjetivo, imaginário e criativo. A inspiração e a transpiração (burilamento da inspiração primeira) não se fazem presentes.

E corretamente poderíamos escrevê-lo e lê-lo em um único parágrafo. Vejamos:

A casa é amarela e tem uma janela, uma passagem na lateral e no fundo um quintal.

O que foi feito na descrição da casa amarela foi, tão somente, uma separação de um texto em prosa que ocupa um pouco mais de uma linha do editor de textos em quatro linhas.

3 - b) O que falta no texto da casa amarela para se ter a Poesia e nascer o poema?

Faltam três coisas essenciais, ao menos:

a) A predominância do subjetivismo, que mostra a presença de um Eu-lírico: o sujeito do poema, aquele que vivencia uma situação***1 e a expressa por meio de sentimentos. (E não, apenas um indivíduo que descreve as partes constituintes da casa, como no texto da descrição da casa amarela - aqui a linguagem denotativa se faz presente, porque o sentido empregado nas palavras da descrição é idêntico ao sentido encontrado no dicionário).

b) A presença da linguagem conotativa (quando as palavras ou frases utilizadas no texto produzem um sentido incomum, diferente do sentido presente no dicionário); realizada através de figuras de linguagem***2 como a metáfora, o símile, a comparação, a metonímia, etc. A utilização da linguagem conotativa amparada nas figuras de linguagem mostraria que houve um processo de criação literária, no nosso caso, a busca da construção de um poema.

c) A partir da utilização da linguagem conotativa abre-se caminho para a interpretação do leitor, cada leitor podendo ter a sua impressão para com o poema no todo, ou parte dele. No todo e nas partes constituintes do poema, as escolhas vocabulares unitárias e/ou agrupadas nos levam às plurissignificações do texto. O que era linear, sem interpretação da casa amarela se tornará interpretativo, com diferente entendimento para cada leitor.

***1 e 2 Lembrando que o texto literário (aqui se inclui o poema) deve ser aceito pelo leitor, como formador de uma situação possível (plausível): na realidade vivenciada e expressa através dos sentimentos pelo eu-lírico, bem como, na sintaxe dos versos e nas figuras de linguagem criadas.

Como poderia o poeta transformar o texto da casa amarela em um poema?

Imaginemos a casa amarela da descrição, a vida lá vivida pelo eu-lírico e quem sabe a inspiração e a transpiração (trabalho de burilamento da inspiração) nos ditem um poema assim (criei o da casa amarela para ilustrar o assunto dos elementos constitutivos do poema, mais a frente chegaremos lá):

POEMA DA CASA AMARELA

Saudosa casa amarela.

Da sacada da janela

Olhava as gotas do céu

Tal fossem pingos de mel

A adoçar toda tristeza

De uma vida na pobreza.

O que aconteceu com a simples descrição da casa amarela? A casa amarela desapareceu no poema?

Certamente que não.

A presença de certos vocábulos transforma a simples descrição da casa amarela em um poema.

Se observarmos o eu-lírico se manifesta de imediato, na primeira palavra do poema (o adjetivo saudoso):

Saudosa casa amarela.

Não temos mais aqui, apenas uma descrição objetiva da casa amarela.

O eu-lírico inicia o texto manifestando um sentimento, lembra-se da casa amarela que morou/conheceu, rememora o passado, vivencia uma lembrança.

O eu-lírico vai além da cor da casa que todo transeunte descreveria: amarela, este, distanciado de uma emoção, de ter sido morador/conhecer d(a) casa.

Nos três versos seguintes:

Da sacada da janela

Olhava as gotas do céu

Tal fossem pingos de mel

Um mundo imaginário se origina, onde o eu-lírico rememora que quando olhava (ele ou alguém que ele conhecia, pode ser o pai ou a mãe ou outra pessoa) da janela a chuva cair imaginava serem pingos de mel. Gotas (de chuva) do céu metaforicamente transformadas em pingos de mel. Uma comparação (figura de linguagem de pensamento) surge: gotas do céu imaginadas como sendo pingos de mel.

Não necessariamente, o subjetivismo e a linguagem conotativa precisam estar em toda a construção do poema. Se observarmos: “Da sacada da janela” (segundo verso) é o introdutor da figura de linguagem de pensamento: comparação e mostra a ideia de uma ação continuada relatada pelo eu-lírico. “Da sacada da janela” é um verso com linguagem denotativa. Se de repente faço assim: “Da sacada da janela/olho o carro do vizinho/ que estaciona na garagem”, ai sim, abandonei a Poesia, e o texto tornou-se apenas o relato de um fato cotidiano de agora e com linguagem apenas objetiva (denotativa) no formato de versos.

Pode-se questionar se o poema acima não poderia ser reescrito em formato de prosa. Porém, se observarmos cada verso tem um significado particular e que no todo forma um conjunto de seis versos e se harmoniza a ideia da casa amarela. Temos o elemento da Poesia clássica chamado: métrica, e a busca de manter sete sílabas poéticas em cada verso, que dão musicalidade ao poema e dividem com perfeição cada verso (vou falar mais para frente sobre os elementos constitutivos do verso, sobre a métrica, sobre a escansão e sobre sílabas poéticas X sílabas gramaticais e ficará mais clara a presença do texto poético neste poema da casa amarela).

Vejamos os dois versos finais, para observar um pouco mais a linguagem poética e discutir a questão da utilização da preposição “de”.

Um pouco mais sobre a linguagem poética:

A adoçar toda tristeza

De uma vida na pobreza.

A função de imaginar as gotas da chuva como pingos de mel:

Para adoçar toda a tristeza de uma vida na pobreza.

Adoçar a tristeza - (uma metáfora - figura de pensamento) adentrou no poema. Adoçar o café seria uma ação descritiva (denotativa - sentido do dicionário); adoçar a tristeza uma criação poética.

E um marco da linguagem poética: pobreza, última palavra do poema, não está subentendida se diz respeito à pobreza material ou à pobreza espiritual ou as duas ao mesmo tempo. (Aqui a plurissignificação do texto poético fica visível).

Quanto à preposição “de” que une os dois últimos versos do poema.

A adoçar toda tristeza

De uma vida na pobreza.

Não é muito usual valer-se de conectivos (preposição, conjunção e pronome relativo) para a conexão de versos. São um tanto artificiais as construções poéticas, deste tipo, se não há o cuidado devido ao executá-las. Neste capítulo, ainda, vou justificar melhor a ideia de se evitar os conectivos, para não incorrermos no erro de criarmos um poema em formato de prosa, que denomino Poesia em prosa, sem privilegiar o verso: o verso e a procura de dar a ele uma identidade e significados próprios.

Aqui, os elementos estruturais do verso se casam com o conteúdo do poema (esta afirmação é válida sempre!). Existe uma harmonia interna, nestes dois versos, uma ligação indissociável entre a forma e o conteúdo.

A parte técnica do verso, o número de sílabas (sete), os segmentos melódicos: menor unidade estrutural do verso e que dividem em duas partes cada um dos versos acima, mais a cesura: a pausa prolongada e centralizada na leitura, ocorrendo, aqui nestes versos, logo após o término do primeiro segmento melódico de cada verso, a formar seus dois hemistíquios: a divisão central ou mais ou menos central do verso, justifica a estrutura dos mesmos.

Além da colocação das sílabas poéticas fortes em determinadas sílabas poéticas do verso criando um elemento essencial: o seu ritmo. (No próximo capítulo vou destrinchar todos estes elementos/conceitos presentes no verso).

Só para a visualização, por hora, dos segmentos melódicos de cada verso:

A adoçar/ toda tristeza

De uma vi/ da na pobreza.***

*** O sublinhado são as sílabas fortes do verso, determinando o ritmo: verso primeiro 3/4/7 e verso segundo 3/7. A barra paralela mostra a divisão em dois segmentos melódicos em cada verso, com, respectivamente, três e quatro sílabas poéticas, mostra ainda a cesura, e os dois hemistíquios.

O encaixe da preposição “de” no início do último verso mostra essa relação íntima do penúltimo e último verso, justificando sua presença no poema. E porque não dizer do último verso com todo o poema: imaginar as gotas da chuva como pingos de mel a adoçar toda tristeza de uma vida na pobreza.

Na Poesia não se busca a precisão dos fatos. Lembrança, descrição da cor, saudade, realidade atual e do passado se misturam e dão vida ao poema da casa amarela.

Esta possibilidade de misturar realidades, mundo objetivo e mundo subjetivo, presente e passado, saudade e realidade mais lembranças vagas ou precisas é uma das mais bonitas características que a Poesia nos oferece.

Atentemos para o verbo olhar (no terceiro verso). Ele está conjugado na primeira ou na terceira pessoa do pretérito imperfeito do indicativo: olhava. Quem olhava? O eu-lírico? Outra pessoa que morava na casa amarela?

Esta é a marca da Poesia, a capacidade de interpretação.

O que na nossa descrição é totalmente retilíneo e que inúmeros desenhos da casa amarela, feitos por desenhistas, crianças e adultos apontarão os mesmos elementos constituintes da fachada da casa, só mudando a qualidade do desenho pela capacidade de algumas pessoas desenharem com perfeição e outras não, aqui no poema, faz transposições, ultrapassa o limite físico da casa, porque retrata um mundo subjetivo, interior, imaginário e sentimental. É o olhar de dentro d´alma para fora, um olhar de quem vivenciou uma realidade humana na casa amarela.

E a forma geométrica de uma casa amarela vista com os olhos do neutro desenhista deu lugar para a casa amarela interpretada por cada leitor à sua maneira e subjetivamente.

Até seria possível descobrir dados desse eu-lírico e dessa casa amarela, para uma análise detalhada do escritor do poema e da casa amarela. É só buscar detalhes da vida do poeta, porém, não é 100% possível interpretar o poema da mesma maneira após a pesquisa e poderemos descobrir que a casa amarela nunca existiu na vida do poeta. E não é o mais valioso, certo?

O sentimento, a Poesia, a criação, a beleza das imagens poéticas presentes em um poema qualquer valem muito mais.

Na descrição da casa amarela não se imagina criar uma casa amarela, apenas se desenha a casa amarela vista pelos olhos. No poema da casa amarela criou-se uma situação (real: pensando-se que foi vivida pelo poeta ou outra pessoa, ou imaginária) para descrevê-la, buscou-se o vocabulário próprio da Poesia, vingou o subjetivismo, a linguagem conotativa e as figuras de linguagem apareceram, pensou-se o verso e seus elementos estruturais, a rima e a estrutura do poema, e etc. e, então, neste caso, temos uma criação literária e em formato de um poema.

Esta casa amarela criada (real ou imaginária), que tomou corpo no poema da casa amarela, pode ser entendida, como a realização de um mundo paralelo, imaginado e criado pelo poeta.

A Literatura possui um conceito importante em seus domínios, a mimese, que representa a recriação - imitação do real (mimese).

Muitos teóricos da Literatura entendem que a criação literária é uma imitação/recriação da realidade nunca a própria realidade, então, transportando o conceito da mimese para o poema da casa amarela, poderíamos dizer que a casa amarela do poeta, existe no poema, como uma imitação da casa amarela real, porém, jamais será a casa amarela real.

Um pequeno lembrete. Parte dos teóricos e poetas considera que a linguagem da Poesia deve ser na terceira pessoa, porque eles creem com isto que se traz o leitor para ser partícipe do texto poético lido; já pensarmos um poema escrito na primeira pessoa seria uma atitude um tanto egoísta do escritor.

Escrito na terceira pessoa seria como dizer que o poeta e leitor são cumplices dos sentimentos vivenciados pelo poeta no poema, o poema como espelho da vivência humana, coletivamente. E coletivo enquanto escrita.

Eu respeito, mas, abdico deste ponto de vista, creio que o poético não se processa apenas por opção da cumplicidade e vivência coletiva do texto. O que pode emocionar o leitor é a força dos sentimentos, a força das palavras relatando uma vivência humana e interiormente processada tornando-se poema; independe da pessoa do verbo e de regras precisas.

Ler e se emocionar, enxergar-se cúmplice e até sentir-se espelhado no texto pode ser possível em um poema mais confessional ou em um poema menos sentimental. Possivelmente, que um estado de maior aflição, tristeza, de dor, solidão, silêncio é mais capacitado de lhe dar um poema mais significativo, mesmo não sendo uma regra.

3 - c) TEXTO NARRATIVO (CONTO) X POEMA

Da mesma forma que a descrição da casa amarela não se tornou um poema, mesmo com o fato da divisão da descrição em quatro linhas (imaginado por uma separação em versos/linhas e com dois pares de rimas), a simples criação de um texto narrativo (um pequeno conto) em formato de versos/linhas e com pares de rimas não forma um poema.

Não confundir com as narrativas heroicas em verso, como as (d)escritas por Homero em A Odisseia e A Ilíada ou os Lusíadas de Camões. Aqui se tem o poema heroico. Mais a frente no tópico 3 - i) vou falar do assunto.

Vejamos esta pequena narrativa:

JOÃO E A CASA AMARELA

João mora na casa amarela.

Ele vive debruçado na janela

E adora olhar quem passa na rua.

Vive todo dia “no mundo da lua”.

Ontem, subiu na árvore do quintal

Para se abrigar do temporal.

A narrativa (pequeno conto) acima conta sobre João, morador da casa amarela. Descobrimos o que João faz em sua casa: gosta de ficar na janela observando quem passa na rua, que João “vive no mundo da lua” e que ontem subiu numa árvore do quintal para se esconder de um temporal.

Este texto tem um narrador que conhece as ações de João e as narra, através de uma pequena estória. O fato de dividir em seis linhas (imaginadas como verso e a presença de três pares de rimas: amarela/janela; rua/lua; quintal/temporal) mais um narrador que conhece João não faz da narrativa João e a casa amarela um poema, nem a separação do texto em duas estrofes (estrofe: é cada agrupamento de versos de um poema, e visíveis pelo espaço/linha em branco que se apresenta de uma estrofe para outra).

Poderemos reescrever o texto João e a casa amarela em forma de prosa (um pequeno conto), como realmente está escrito:

João mora na casa amarela. Ele vive debruçado na janela e adora olhar quem passa na rua. Vive todo dia “no mundo da lua”. Ontem, subiu numa árvore do quintal para se esconder de um temporal.

O que há de novo no texto narrativo João e a casa amarela em relação à descrição da casa amarela?

Houve uma inserção da Poesia em meio à narração, a metáfora: “vive no mundo da lua” (quarta linha).

Em um texto narrativo (conto) podemos encontrar momentos de Poesia, também. Todavia, não se fez um poema na narrativa de João e casa amarela pelo fato de inserir-se nela uma metáfora, separar-se em linhas a narrativa e utilizar do recurso da rima em final de linha.

É muito comum textos em prosa, inconscientemente, serem divididos em linhas. E até mesmo sem rimar. (logo mais vou falar da Poesia em prosa e ficará mais clara esta afirmação)

Há casos em que orações são divididas em linhas e mantendo a sequência básica: sujeito + predicado + complementos e crê-se estar realizando um poema. Mas, nem sempre é correto dizer que se trata de um poema.

Aqui no texto de João e a casa amarela a linguagem denotativa é a preferencial. O sentido do texto é unívoco (sem ambiguidades). João mora na casa amarela, vive debruçado na janela para olhar quem passa na rua, sobe na árvore para se abrigar da chuva.

Porém, algumas situações nos levam a continuar um verso do poema na linha seguinte, como neste exemplo:

Saudosa casa amarela

E branca do meu passado.

Amei da tua janela

Moça do passo apressado.

Aqui, o poeta quis contar para cada verso um número de sílabas poéticas (um total de sete sílabas poéticas em cada verso foi o caso que imaginei). Sílaba poética é diferente de sílaba gramatical, ok? (mais a frente no estudo chegaremos ao estudo da escansão e falaremos da sílaba poética).

Por hora, fiquemos na discussão dos dois primeiros versos.

Vocês observaram que o primeiro verso parece invadir/continuar n(o) segundo verso?

Não lemos assim:

Saudosa casa amarela e branca

Do meu passado.

O que fez o poeta, sem deixar tornar-se prosa o texto acima?

Utilizou de um recurso técnico da Poesia, chamado pelos franceses de Enjambement, que na Língua Portuguesa traduz-se como: cavalgamento. Seria uma continuidade da mesma ideia no verso seguinte, não se imagina a característica da casa: amarela e branca separada, certo? Fez-se a separação para o acomodamento do número de sílabas poéticas em cada verso.

Na Poesia Clássica os versos de um poema, quase sempre, tem um mesmo número de sílabas poéticas.

A lembrança de que a casa era amarela e branca: Saudosa casa amarela e branca precisou desse recurso para o poeta inserir esta lembrança no poema, para garantir o número de sete sílabas poéticas em cada verso e para se realizar o par de rimas: amarela/janela.

É perfeitamente válido este recurso. O que não significa que a sua presença é feita de maneira aleatória, simplesmente quebrando uma oração em linhas (contando um número de sílabas poéticas idêntico), imaginando com este artifício transformar um texto em prosa em texto em verso.

O Enjambement é utilizado por poetas clássicos e poetas modernos. Existem diferentes modos de realiza-lo, um bom manual de Teoria Literária pode nos ajudar a identifica-los.

3 - d) CRÔNICA X POEMA

Da mesma forma que textos em prosa divididos em linhas e rimados, até com o mesmo número de sílabas poéticas em cada linha, sejam, apenas descritivos e até uma narrativa (formando um pequeno conto), não formam um poema, uma crônica, também, não é um poema.

Vejamos o texto abaixo:

O PROGRESSO

Morei numa casa amarela

E geminada. Tinha uma bela

Árvore no jardim da frente,

Que foi derrubada, infelizmente.

Era num bairro sossegado

E o progresso deixou de lado

O verde e a calmaria

Do bairro, que perdeu sua alegria.

Muitos carros, prédios e poluição

Dão ao lugar uma feição

Desordenada e decadente.

É o progresso da civilização

Moderna e a pouca preocupação

Com o meio-ambiente.

Vocês percebem que o texto foi construído em prosa e é uma crônica? Pela separação em linhas e os pares de rimas parece que temos um poema, não é verdade? Mas, é uma crônica.

Vamos reescrever a crônica no formato correto, em prosa, e encontra-la em suas características básicas:

O PROGRESSO

Morei numa casa amarela e geminada. Tinha uma bela árvore no jardim da frente, que foi derrubada, infelizmente. Era num bairro sossegado e o progresso deixou de lado o verde e a calmaria do bairro, que perdeu sua alegria. Muitos carros, prédios e poluição dão ao lugar uma feição desordenada e decadente. É o progresso da civilização moderna e a pouca preocupação com o meio-ambiente.

Apenas suspiros de Poesia apareceram nesta crônica, principalmente, na oitava linha: “que perdeu sua alegria”. O bairro do cronista perdeu sua alegria com o progresso da civilização.

A comparação entre passado e presente foi realizada de maneira direta, objetiva, em uma sequência de orações, que o escritor acreditou que as criando e as quebrando em linhas aleatórias, após as rimas, realizaria versos e faria um poema. Não foram utilizadas figuras de linguagem, nem houve predominância de uma linguagem conotativa. E não é um texto interpretativo (que se possam gerar dúvidas, pontos de vista diversos), apesar de gerar uma reflexão nos leitores, sobre os malefícios do progresso da civilização, segundo o autor.

A simples constatação da transformação do bairro não levou o escritor à realização de um poema. Não temos o poético aqui e sim, o relato de um ex-morador do bairro sobre a sua transformação com o progresso da civilização. Realizou-se aqui uma crônica, portanto, um texto em prosa. O significado das palavras é o do verbete no dicionário, portanto, denotativo.

Por exemplo: poluição é resultado da emissão de gases tóxicos no ambiente (linguagem denotativa) e não, por exemplo, confusão do pensamento (linguagem conotativa).

Nós aprendemos sobre a transformação do bairro pelo progresso da civilização, e não deixou dúvidas o escritor da crônica sobre o ocorrido no bairro. É um discurso objetivo, ideológico e saudosista em que a linguagem poética quase não está presente.

A tentativa de criar um poema, até fez com que o escritor utiliza-se em demasia dos conectivos. O que já disse não é valioso para um poema, se não for utilizado com cuidado.

3 - e) ORAÇÕES E/OU FRASES SOLTAS X POEMA E A AUSÊNCIA DE CONECTIVOS, CONJUNÇÕES, PRONOMES RELATIVOS, ARTIGOS E PREPOSIÇÕES.

A presença de frases soltas, orações curtas desconectadas (recuperadas no todo do poema, através da coerência textual), e até ausência de verbo é possível no poema e valioso. Num texto literário em prosa seria pouco provável.

Quando se escreve um texto em prosa é costumeiro utilizar de conectivos (elementos que ligam palavras ou orações: preposições, conjunções, pronomes relativos para conectar as ideias).

Ex. Trabalha e mora em São Paulo; Brigaram, mas vão se redimir; Vou viajar embora não saiba a data; Moro em São Paulo, mas nasci em Taubaté; Vivo apaixonado por ela que não sabe disso e que não dá bola para mim, A vida é bonita para quem ama e para quem sonha, etc.

Exemplo prático:

CASA AMARELA EM PROSA

Na casa amarela da rua de terra morava a menina bela. No tempo perdido ficou a cidade alegre, no mundo escondida, numa outra Porto Alegre que não existe mais.

Os vocábulos acima em negrito não se fazem necessários no texto poético, tendo o bom-senso de se estar construindo um poema.

Penso ser mais bonito escrever assim:

POEMA DA CASA AMARELA

Casa amarela.

Rua de terra.

Saudosa Estela:

Menina bela.

Tempo perdido.

Cidade alegre.

Mundo escondido

De Porto Alegre.

Pensando na construção do poema acima podemos notar que busquei dar um ritmo musical ao texto, o que na prosa desta inspiração do eu-lírico ficou menos possível. Notem que utilizei quatro sílabas poéticas em cada verso.

O texto em prosa tem uma presença do poético, também. Mas precisou de preposições e artigos mais conectivos e orações outras para se concretizar. O texto em prosa, narrando/descrevendo/relatando através de uma crônica a Porto Alegre do passado do eu-lírico pode conter a linguagem poética, mas não é o elemento principal do texto. A narração de ações e fatos ocorridos ou descrição e os relatos são principais, o poético, secundário.

No próximo tópico vou falar da prosa poética e com o exemplo ficará bem clara esta afirmação do parágrafo acima.

O que nos mostra uma característica importante a distinguir poema e texto em prosa: a linguagem poética é mais sucinta. Busca-se com economia de palavras dizer sobre algo que julgamos necessário, algo que nos aflige, que nos provoca emoção, saudade, lembranças, tristeza, alegria, etc., procurando com menos palavras abrir espaço para muito mais significados e interpretações.

Cada verso solto, pela organização do poema, se conecta à Porto Alegre do eu-lírico que não existe mais. A Porto Alegre da casa amarela, da rua de terra, da Estela: a menina bela, de um outro tempo: tempo perdido de uma cidade, que foi alegre, e hoje, está escondida esta alegria, onde o eu-lírico parece dizer que ainda existe a Porto Alegre da alegria, mas ele não sabe mais em que lugar.

Escondido pode ser lido como: a se procurar ou desaparecido para sempre. Aqui a escolha vocabular permite esta dúvida e interpretação diversa, característico da linguagem poética.

Aparentemente, os vocábulos do poema parecem mostrar uma linguagem mais objetiva do que subjetiva. Porém, cada adjetivo: amarela, terra, saudosa, bela, perdido, alegre, escondido vão dando uma qualidade a cada substantivo do poema, provocando lembranças, saudosismo, até fica subentendido uma tristeza, pela ausência da cidade da alegria.

E fez-se o poema da casa amarela sem precisar da presença dos verbos. O que na prosa da casa amarela foi necessário, utilizando-se os tempos verbais: morava, ficou e existe.

3 - f) PROSA POÉTICA X POEMA

Tenho como definição de prosa poética as seguintes palavras: é a incorporação da Poesia em trechos de um gênero literário escrito em prosa.

Os gêneros literários em prosa são quatro: conto, romance, novela e crônica.

Conforme o desenrolar da criação/leitura de um texto em prosa observamos que a narrativa adentra para um mundo familiar à linguagem poética, ela se “banha de Poesia”. Parece que por alguns momentos a narração adentra pelo interior do eu-lírico (de um dos personagens) e há um estado de Poesia a aflorar, seja saudoso ou contemplativo ou reflexivo e etc.

Estes trechos de Poesia, inseridos numa prosa literária formam o que podemos denominar de prosa poética e eles são, quase sempre, minoritários na narrativa como um todo.

É diferente, da Poesia em prosa e do poema em prosa, que tratarei na sequência.

Vejamos um exemplo de prosa poética:

TRECHO DO ROMANCE DA CASA AMARELA

(...) narrativa.

Prosa poética:

Morei com minha família numa casa amarela lá na rua dos sonhos mil. No passado, engraçado lembrar, voavam até o céu os meus sonhos. Eu acreditava morar no sol a esquentar todo dia meu coração, nas dores da vida e nos espinhos do amor. - Ah! Casa amarela! Da juventude! Quem dera pudesse ali restar, viver aquela vida de sonhos, ser jovem, acreditar, que o sol fosse minha morada para apagar as cicatrizes do meu coração.

(...) continuação da narrativa.

Percebe-se a linguagem poética no trecho do romance da casa amarela, ex. em “morar no sol a esquentar todo dia meu coração”, “que o sol fosse minha morada para apagar as cicatrizes do meu coração.” e etc., certo? Não se pode, contudo, dizer que foi pensado o poema e seus versos, nem que se construiu uma metáfora precisa ou outra figura de linguagem, nem se observou a realização da rima e nem se contou as sílabas poéticas. Encontrou-se, tão somente, um suspiro de Poesia (linguagem poética) em meio ao texto narrativo, no caso um romance. Este suspiro de Poesia em meio ao texto literário em prosa chama-se: prosa poética.

3 - g) POEMAS CLÁSSICOS X POEMAS MODERNOS. SEQUÊNCIA DE LINHAS CONTÍNUAS LIGADAS POR CONECTIVOS, CONJUNÇÕES, PRONOMES RELATIVOS, ARTIGOS E PREPOSIÇÕES: POESIA EM PROSA.

Existe uma característica muito comum, entre iniciantes ou não iniciantes no ofício da realização de poemas e presente, com maior força, na Poesia praticada hoje, por diferentes poetas, até renomados poetas que é a realização da Poesia em prosa.

Optei por conta própria em definir como enxergo o conceito: Poesia em prosa.

É simples observá-la e defini-la. Observa-se através dos contínuos conectivos a separarem os versos (as linhas do poema): que, e, mas, da, dos, etc. e que poderiam perfeitamente ser agrupados em um único parágrafo, como veremos logo em seguida, no exemplo: na casa amarela.

O que caracteriza a Poesia em prosa é que o escritor pensou a Poesia, mas não pensou o verso e acabou organizando/realizando uma Poesia em prosa e não um poema nem um poema em prosa.

Vejamos um exemplo prático:

NA CASA AMARELA

Na saudosa casa amarela eu sentia a poesia

Que um dia encontrou morada no meu coração

Que de tão colorida e bela se fez florescer em meu jardim interior

A perfumar meu viver de odores de rosas e almíscares.

Eu que sonhei com a vida mais harmônica e poética

Que se possa sonhar em meio ao silêncio, hoje,

No ritmo alucinante da vida,

Declaro saudosamente

Que vivo da ausência, daquela harmonia

Que hoje a desordem do mundo e do meu ser

Afastam para sempre do meu caminho

E me abandonam num lago estático e sem Poesia.

Após esta leitura do texto pensemos:

Estamos diante de um poema ou de um texto em prosa? De um poema ou de um texto em prosa com Poesia? Não seria possível alinhar tudo em sequência formando um texto em prosa? Apesar da Poesia nele existente?

Vamos reescrevê-lo:

NA CASA AMARELA

Na saudosa casa amarela eu sentia a poesia que um dia encontrou morada no meu coração que de tão colorida e bela se fez florescer em meu jardim interior a perfumar meu viver de odores de rosas e almíscares.

Eu que sonhei com a vida mais harmônica e poética que se possa sonhar em meio ao silêncio, hoje, no ritmo alucinante da vida, declaro saudosamente que vivo da ausência, daquela harmonia que hoje a desordem do mundo e do meu ser afastam para sempre do meu caminho e me abandonam num lago estático e sem Poesia.

Para se fazer um poema é preciso pensar os versos que o comporão. E pensar o poema como um todo.

No que devemos pensar?

1) Se teremos um mesmo número de sílabas poéticas em cada verso, seu metro; ou se serão versos livres (sem métrica definida), de tamanhos variados de sílabas poéticas – grandes ou pequenos versos;

2) Se teremos pares de rimas ou serão versos brancos (versos sem rimas);

3) Devemos pensar se o verso vai ter um ritmo demarcado (vou falar do ritmo logo à frente no tópico dos elementos constitutivos do verso - ritmo demarcado é a presença das sílabas poéticas tônicas em determinadas posições do verso);

4) Observar os segmentos melódicos do verso (seus pés), as pausas e cesuras do verso e seus hemistíquios. (no tópico à frente detalharei estes conceitos, também, essenciais ao verso);

5) Se vamos utilizar uma linguagem sintética sem a utilização de conectivos, artigos e preposições;

6) Se vamos ou não se valer de algum gênero poético clássico;

7) Se o poema terá uma estrofe ou várias estrofes (caso o poema não tenha um número de estrofes determinados, como o soneto, a trova, o haicai, a tanka, o Indriso, etc.);

8) Devemos pensar qual o vocabulário que iremos utilizar, etc.

Se apenas foi pensada a Poesia, mas não o verso fez-se, portanto, uma Poesia em prosa.

O que diferencia a Poesia em prosa da prosa poética é que na Poesia em prosa se pensou realizar um texto com predominância da linguagem poética: a linguagem conotativa, enquanto, na Prosa poética se fez um texto literário em prosa: conto, romance, novela, crônica ou se realizou uma descrição e em alguns momentos do texto literário em prosa inseriu-se a linguagem poética, ou seja, apareceram momentos de Poesia no texto literário narrativo ou descritivo.

Existem outras situações em que a Poesia em prosa pode ser vista. Duas se destacam:

1) Quando o poeta realiza um verso de tamanho exagerado, com mais de 14 sílabas poéticas e que não existe a preocupação no poema com a concisão da linguagem, característica do texto em formato de poema.

Ex.

Habitava a casa amarela nas longas noites de verão europeu

onde me tornei um homem solitário e triste habitante,

sem saber que a vida de um casal diminuiria a dor do silêncio.

O texto acima não teve o cuidado de pensar o verso, de dar um tamanho (medida) para o mesmo, fez-se um verso, que podemos denominar de verso sem medida. Está visualizado neste exemplo um texto em prosa e não um poema. É uma narração, aqui, apesar do sentimento poético, de tempos passados do escritor, portanto, temos uma Poesia em prosa. A sintaxe gramatical foi perfeitamente obedecida.

2) As vezes o escritor pode se valer de um artifício, que não é um enjambement, simplesmente quebra em linhas uma sequência de ideias gramaticalmente inseparáveis, querendo caracterizar um verso, onde não se pode considerar a sua existência. Talvez, creia que com estas quebras realiza um poema, através da “suposta visualização de um verso medido”.

Ex.

Velha casa amarela da minha pobre

infância, do meu tempo de menino

no interior de Goiás.

Casa pequena

dos sonhos gigantes

em noites cheias de estrelas

brilhantes

no céu azul anil

dos anos em que eu era feliz

e não sabia.

Quebras da sequência gramatical ficam visíveis, por exemplo, em: Casa pequena/dos sonhos gigantes/ em noites cheias de estrelas/brilhantes/no céu azul anil/dos anos em que eu era feliz/e não sabia. Fora a coleção de conectivos para formar o texto. O escritor rememora o tempo de menino na casa amarela, como no poema da casa amarela, porém, ele não pensa o verso, apesar de expressar-se através da Poesia; o escritor apenas divide um texto com elementos característicos da prosa em linhas. Não há nenhum verso (no caso, linha) com sentido próprio, uma linha vai se conectando a outra do começo ao fim do texto. Temos aqui, também, uma Poesia em prosa. A sintaxe gramatical foi perfeitamente obedecida, e um novo apareceu: ela foi separada em linhas, aleatoriamente.

Claro que a colocação de uma palavra, até mais de uma, formando um verso, separadamente (sequencialmente lida(s) pelo conceito gramatical), pode ser de caso pensado (calculada) para trazer um efeito estético ao poema (embelezando-o) e criar, também, uma ampliação de significados e interpretações para o texto poético. Na Poesia moderna é habitual esta construção.

Uma observação se faz necessária. Existem momentos em que, quase somente encontramos a prosa em texto(s) colocado(s) em meio a um livro só de Poemas. Neste(s) texto(s), em boa parte do seu conteúdo se faz prosa e a Poesia fica relegada ao segundo plano, e não temos um poema, como conceitualmente aprendemos até aqui, neste estudo. É uma mistura de verso e prosa, narrativa/descrição e Poesia. O nosso maior poeta: Carlos Drummond de Andrade tem bons exemplos desta afirmação em sua obra literária.

No ensaio Modernismo e a Geração de 45 o Poeta Domingos Carvalho da Silva, discorrendo sobre o período anterior ao seu em nossa Poesia, período de radicalização do Movimento Modernista de 1922, anos 30 do Século XX (conhecido, também, como período da Segunda Geração Modernista) afirma:

“Na verdade, naquele tempo, o chamado verso livre fora quase substituído pela linha livre e prosaica (...)”. Eros & Orfeu, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1966. (Pág. 120)

Cabe dizer que os poetas da geração de 45 reequilibraram a situação da Poesia brasileira. Resgataram pelo menos três coisas importantes do poema: o texto, predominantemente, poético (portanto, a Poesia), o verso (medido) sem a necessidade da precisão da medida clássica e sem o prosaísmo da geração de 30 e a temática lírica revigorou-se com maior intensidade.

O resgate do poema, não necessariamente, significou adotar a linguagem clássica da Poesia. Os poetas da geração de 45 buscaram uma nova forma de poetizar, reincorporando os conceitos relacionados ao labor poético, que estavam meio esquecidos.

Domingos Carvalho da Silva acaba por definir sua geração:

“A renovação da linguagem poética, pelo abandono de velhas fórmulas de retórica, pela pesquisa e ponderação do valor emocional das palavras e pela recriação semântica desse valor, eis a missão principal – sob o aspecto técnico – do poeta de nossos dias, que não tem mais as razões de 22 para ser contra o soneto ou qualquer outra forma fixa, ou para se angustiar diante do dilema da uniformidade ou da variedade métricas.” Ibidem. No ensaio: Dois Estudos Sobre Um Poeta (Pág. 76).

E acaba por definir o papel social do poeta (afirmação válida para todos os tempos literários):

“O poeta que traduzir, ao mesmo tempo, espírito universal de sua época e a tradição de sua cultura nacional, terá conseguido, por certo, sobreviver ao seu tempo. E nem precisará, para tanto, dar qualquer sentido político, ou de reinvindicação à sua obra.” Ibidem. No ensaio: Dois Estudos Sobre Um Poeta (Pág. 78).

3 - h) POEMA EM PROSA X POEMA

O poema em prosa é quando o poeta escreve conscientemente o poema no formato da prosa. A linguagem poética (linguagem conotativa) se apresenta no texto, porém, não houve a intenção da realização do verso.

Ex.

CASA AMARELA DA MINHA INFÂNCIA

Doce o lembrar da casinha amarela na rua dos sonhos. Vivi um conto de fadas numa terra de angélicas, em meio aos colibris e flores vermelhas. Ah! A moça da fantasia de ser príncipe: real e transparente, vestal reluzente a colorir meu diário de sonhos. Anjo feito menina, como se do Céu uma estrela baixasse para iluminar a minha existência. Tempo, tempo, que fizeste do antigo? Tempo, tempo, a madrugada acordou em minha vida! Sou um prisioneiro das lembranças, um destino sem futuro, uma sombra no passado.

Diferentemente da Poesia em prosa, o poema em prosa foi escrito para ser um texto em parágrafo(s). Na Poesia em prosa, se descobre que o texto está em prosa, na observação do seu conteúdo e das suas características formais, onde, não foi pensado o verso, como já alertei antes.

Neste poema em prosa da Casa amarela da minha infância a naturalidade da escrita é bem visível. Observemos que os conectivos, as preposições e os artigos quase não se fazem notar.

Na Poesia em prosa são mais comuns as conexões, porque ao não se pensar o verso, mas querer uma linearidade das ideias nasce o texto (inconscientemente, muitas das vezes, até por não ter o conhecimento aprofundado do que é o verso) com as conexões: que, e, da, dos, como, etc. e se perde característica importante da construção de um poema: a economia das palavras, a linguagem mais sucinta.

No poema em prosa, não se precisa crer na economia das palavras, na linguagem mais sucinta, porque estamos pensando e escrevendo um texto em prosa e não um texto em verso.

3 - i) NARRATIVA: PROSA EM POEMA

A discussão e delimitação dos limites entre poema e narrativa em versos podem ser valiosas.

Pensemos o gênero poético épico, ex. Os lusíadas de Camões e o gênero satírico, ex. um poema humorístico de Bastos tigre e reflitamos:

Estes textos contemplam-se totalmente no campo da Poesia e na existência de um poema ou podem ser entendidos, muito mais, como uma narrativa em versos?

Em Os Lusíadas de Camões, por exemplo, há inúmeros relatos de acontecimentos da História de Portugal onde, não se vê, precisamente, a Poesia, como a imaginamos, subjetiva, conotativa e manifesta pelo eu-lírico, apesar do emprego de toda a técnica de construção do verso clássico; apenas se encontra a Poesia em determinados momentos, quando os sentimentos do eu-lírico afloram e o lirismo se destaca, em pequenas partes do grande poema épico.

Fique claro:

Os dados históricos não são condição para existência de um poema e nem a precisão dos acontecimentos e suas respectivas datas. Todavia, um texto em versos sem subjetivismo, emoção, sentimentos, figuras de linguagem, possibilidades de interpretação para o leitor dos acontecimentos vividos pelo poeta, tem menor chance de ser classificado como um poema.

Como já vimos o simples fato de se construir versos não significa que se constrói um poema. E que não é a busca do poeta, relatar no poema uma situação precisa, com espaço e tempo determinados e até personagens, entraríamos no campo da narrativa e sairíamos dos fundamentos essenciais da Poesia.

Como divisar precisamente, se estamos diante de um poema ou de uma prosa em formato de poema?

Pensemos a pergunta, a partir desta quadra humorística:

QUADRA HUMORÍSTICA*** - História do Zé e da Maria.

- Maria, casa, já!

Zé em tom elevado

Co ´olhar arregalado

Ela correu p´ra lá!

*** cada linha acima é um verso do poema: denominado de quadra por conter quatro versos.

Antes de buscarmos respostas para a pergunta pensemos nas escolhas vocabulares e na sintaxe utilizadas na construção da quadra levando às suas plurissignificações, através dessas indagações:

Maria correu para casa dela ou para a Igreja? Zé exclamou em tom elevado por que estava cansado de esperar Maria se decidir a casar? Por que quis fazer uma surpresa à Maria? Por que estava bravo? Zé estava obrigando Maria entrar para dentro de casa ou a se casar? Zé era o Pai, outra pessoa ou o homem que queria casar com Maria? Quem arregalou os olhos? Maria, Zé ou os dois? Etc.

Relembremos aqui do sentido da plurissignificação:

A escolha vocabular e o arranjo das palavras formam o texto literário, no caso acima, uma quadra humorística. Poderíamos dizer que foram trabalhados os dois eixos do estudo da Gramática: o eixo vertical, das escolhas vocabulares (eixo semântico), e o eixo horizontal, do arranjo das palavras escolhidas (eixo sintático), formando os versos e o poema como um todo, não se esquecendo da falta de pontuação, que se encarrega, também, de deixar as interpretações ao poema fluírem na imaginação do leitor.

Voltando à pergunta. Estamos na quadra humorística diante de um poema ou de uma prosa/narrativa literária em formato de poema? E quais os limites para o poema não ser apenas uma narrativa literária em formato de versos? Dispensável de estar em versos.

Nesta quadra humorística podemos até questionar se estamos diante de um poema. Numa postura radical diria que não se contemplou o poema, e fez-se apenas uma prosa/narrativa literária em formato de poema. Cadê o eu-lírico, o subjetivismo, a linguagem conotativa, as figuras de linguagem?

Todavia, enxergo que o propósito da quadra humorística seria este: transitar entre polos opostos: verso e prosa, concomitantemente, para poema e narrativa se juntarem, valendo-se do formato do verso e não da narrativa.

Como contar a História do Zé e da Maria melhor que neste formato de quadra?

A maior concisão do poema em relação à prosa, não levou a ideia inicial, para um texto literário melhor?

Imaginemos reescrever a quadra humorística em formato de prosa:

- Maria, casa, já! Zé em tom elevado co ´olhar arregalado ela correu p´ra lá!

Nem sequer foi possível reescrever o texto de maneira correta, dentro do nosso conhecimento de sintaxe, de pontuação, certo?

O texto em prosa correto seria, mais ou menos, assim:

HISTÓRIA DO ZÉ E DA MARIA

- Maria, para casa, já!

Zé disse, em tom elevado e com o olhar arregalado.

E ela correu para lá!

*** sem negrito as partes modificadas na quadra humorística para se obter a prosa.

Ou assim:

HISTÓRIA DO ZÉ E DA MARIA

- Maria, para casa, já!

Zé disse, em tom elevado.

Com o olhar arregalado ela correu para lá!

*** sem negrito as partes modificadas na quadra humorística para se obter a prosa.

Não se perdeu a plurissignificação da quadra humorística, no texto em prosa? E até o contexto literário presente na quadra humorística?

Alguém imaginaria o texto em prosa como estava na quadra humorística? Não iríamos dizer/questionar: - esse escritor não sabe escrever!? Além de termos que pensar nas nossas aulas de Língua Portuguesa, quando o professor ensina a não cometer ambiguidades no texto, com a correta construção de uma oração, delimitando com precisão a quem se refere o que foi escrito.

Pensar o poema, seus versos, seu vocabulário, as figuras de linguagem, a métrica do verso, etc. são essenciais. E claro, deve haver sabedoria para não tornar o poema, apenas uma prosa em formato de poema.

Na quadra humorística o intento de ser poema a História do Zé e da Maria, se contempla melhor, do que se fossemos obrigados a reescrevê-lo em formato de prosa.

Então, tenhamos certeza, é possível, dentro de limites e com sensibilidade, a conjugação de uma temática oriunda da prosa com os conceitos do poema.

Ficando claro, como disse na primeira parte do estudo, quando da diferenciação de Poesia e poema, que realizar, didaticamente: em versos um conhecimento não necessariamente abrimos espaço para o poema nascer, e por quê?

Porque não se fez, provavelmente, nesse caso, Literatura e sim, apenas se ministrou um conhecimento qualquer em formato de versos.

No caso de Os Lusíadas de Camões, ora se relatou fatos históricos, ora se fez Poesia, mesmo com todo o valor literário da obra de Camões e mesmo com a presença dos conceitos técnicos do verso, manejados à perfeição, pelo maior poeta da Língua Portuguesa.

Na quadra humorística fez-se um poema, podemos dizer, por vias tortas. Parte dos conceitos, ligados ao conhecimento e a prática da teoria poética levaram até o poema. A concisão da linguagem, a não necessidade de conectivos e de pontuação precisa e a busca da plurissignificação do texto trouxeram a História do Zé e da Maria, conceitualmente uma narrativa, para dentro do poema, e ficou até visível, que não se faria o mesmo texto, em prosa, talvez, nem literário se conseguiria torna-lo se fosse obrigatória a prosa para a história relatada em versos.

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Alexandre Tambelli
Enviado por Alexandre Tambelli em 14/02/2013
Reeditado em 02/10/2017
Código do texto: T4140305
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