O Triunfo da vontade: um documentário a serviço de uma ideologia (*)

“Até o diabo pode usar as Escrituras em proveito próprio”. – Maria Amélia Giffoni

A frase citada acima é da minha tia-avó e se trata de uma modificação de outra frase famosa, atribuída ao dramaturgo e poeta inglês William Shakespeare: “O diabo pode citar as Escrituras quando lhe convém”.

Ambas poderiam exemplificar muito bem o que pode fazer o cinema a serviço de uma ideologia, como é o caso do documentário O triunfo da vontade. O escritor, jornalista e teórico de cinema Siegfried Kracauer (que era judeu e fugiu do nazismo primeiro para Paris e depois para os Estados Unidos) afirmou que “os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta, de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico”.

Dirigido pela cineasta Leni Riefenstahl, o documentário teve sua estreia em 28 de março de 1935 e retrata o 4º Congresso do Partido Nacional Socialista Alemão (NSDAP), que acontecera em Nurembergue, na Alemanha, de 4 a 10 de setembro de 1934. O evento foi pensado para ser documentado, mostrando a figura ímpar de Adolf Hitler, ator principal da película.

O triunfo da vontade é um documentário de propaganda nazista e mostra como o Terceiro Reich moveu massas em direção ao terror, guiadas pela figura messiânica de Adolf Hitler. A abertura do documentário já indica isso quando mostra o Führer vindo dos céus, sendo saudado pelo povo, que está em êxtase. Uma população branca, forte, em sua maioria loira e jovem; saudável e limpa – o exemplo maior da superioridade da raça ariana. Porém ele é mais do que isso.

Para Bill Nichols, em Introdução ao documentário (2005), há em cada documentário três histórias que se entrelaçam: a do cineasta, a do filme e a do público.

“De formas diferentes, todas essas histórias são parte daquilo a que assistimos quando perguntamos de que se trata o filme.”

É necessário se levar em conta também o momento histórico-social, a cineasta e o público no período que o filme foi feito.

“A produção de ‘O triunfo da vontade’, de Leni Riefenstahl, por exemplo, continua sendo uma história de controvérsia das ambições artísticas de Riefenstahl de fazer filmes de grande apelo emocional, mas livres de intenção propagandística – segundo relatos da própria Riefenstahl –, com a história da pressão do partido nazista por um filme que gerasse uma imagem positiva num momento em que seu poder ainda não estava inteiramente consolidado e sua liderança ainda não inteiramente centrada em Hitler – do ponto de vista da maioria dos historiadores do cinema. As interpretações desse filme muitas vezes pegam o fio de uma ou de outra dessas histórias, elogiando a obra, como grande peça cinematográfica, ou condenando-a, como exemplo acintoso de propaganda nazista.”

Contudo, é inegável que o documentário de Riefenstahl tenha sido um marco para o cinema mundial e que ela tenha inovado em vários aspectos, como, por exemplo, a entrada dos três líderes nazistas tendo perfilados centenas de soldados alemães.

Bill Nichols, inclusive, cita esta cena em seu livro (op. cit.), comentando a “entrada dramática coreografada dos três nazistas, que enfatiza a absoluta centralidade do líder todo-poderoso em relação às massas de tropas subordinadas”.

A cena impressiona tanto, que décadas mais tarde o cineasta George Lucas a reproduziu no seu famoso Guerra nas Estrelas.

Leni Riefenstahl teve a capacidade de criar uma obra de arte tendo como base um assunto que, passados tantos anos, ainda causa revolta em milhões de pessoas.

Bill Nichols diz, logo nas primeiras páginas de seu livro, que é comum alguns documentários utilizarem práticas e convenções normalmente associadas à ficção, tais como roteirização, encenação, ensaio, interpretação e reconstituição. O autor salienta, ainda, que o contrário também acontece, quando a ficção utiliza práticas ou convenções empregadas pela não ficção ou pelo documentário, tais como filmagens externas, improvisação, imagens de arquivos, não atores e câmeras portáteis.

Esta troca de lugares – ficção utilizar práticas e convenções de documentários, e não ficção utilizar práticas e convenções de ficção – é tão comum, que se tornou banal utilizá-la.

Em entrevista para a Revista da TV, do jornal O Globo, de 28 de outubro de 2012, o diretor Luiz Fernando Carvalho explicou como foi gravar a nova série programada para estrear naquela semana na TV Globo, Suburbia, cujo roteiro foi escrito em parceria com o escritor e roteirista Paulo Lins:

“(...) Preparei-me para rodar as cenas de forma muito simples e rápida, repetindo o mínimo possível as tomadas para que o elenco não mecanizasse, me aproximando como um documentarista dos acontecimentos vividos por eles. No meu modo de sentir, a TV só tem a ganhar com estes talentos”.

A cineasta Leni Riefenstahl, de forma inovadora, mescla as duas práticas e convenções ao filmar O triunfo da vontade. Basta lembrar que Hitler não é ator, mas, com seu poder de oratória e discursos tão ufanistas quanto contundentes, fala àquele povo sofrido e humilhado pela Primeira Guerra Mundial o que eles querem ouvir, carregando seus discursos de um nacionalismo extremo, que conquista e empolga as massas.

Leni inovou ao filmar ângulos diversos não usuais para a época. Quem assiste ao documentário vê ângulos de janelas, alto de telhados, filmagens aéreas em movimento como nos aviões e dirigíveis, e também movimentos no chão como a vista de dentro de um automóvel. A cineasta não usa narração em off.

Os primeiros 22 minutos são de cenas com imagens em movimento. Mesmo a figura de Hitler só aparece depois de transcorridos quatro minutos do documentário. Há uma variação no posicionamento das câmeras, o que torna o filme ágil e não cansativo.

Leni também inovou quanto à perspectiva: na cena em que Hitler chega ao Congresso do Partido Nazista, a cineasta posicionou a câmera por detrás dele, dando a impressão de como seria a perspectiva do Führer em relação às centenas de pessoas presentes.

Olhando as cenas do passado, com o necessário distanciamento histórico, o que se vê hoje no documentário é um orador medíocre e um ator de quinta, com gestos pseudoeloquentes, mas naquela época não era visto assim. Tanto que a maneira de trabalhar a propaganda de uma ideologia serviu de base para uma mudança na forma de tratar as estéticas publicitárias e de propaganda como um todo.

Basta lembrar que muito da maneira de se fazer propaganda foi utilizado pelo então presidente Getúlio Vargas, que, no início da Segunda Guerra Mundial, era favorável aos ideais nacionalistas dos alemães.

Leni Riefenstahl sabia do poder da imagem ao filmar as impressionantes cenas do Exército de Hitler perfilado, demonstrando poder, disciplina e força. Quando se diz que o 4º Congresso do Partido Nacional Socialista foi totalmente planejado (foram mais de 170 pessoas entre cinegrafistas e assistentes de câmeras), não é mera palavra de retórica.

Houve um roteiro, que foi planejado e seguido; houve toda uma encenação, para demonstração de força e poder, de centenas de soldados alemães perfilados, com bandeiras nazistas tremulando ao vento; e, como já foi dito, há a interpretação de Hitler como o salvador e a fusão dele com aquele povo jovem, branco, de uma raça que se pretendia superior e ansiava conquistar o mundo.

Bill Nichols (2005) diz que o documentário pode ser feito para dar a impressão de autenticidade ao que, na verdade, foi fabricado ou construído.

“E, uma vez que as imagens tenham sido selecionadas e dispostas em padrões ou sequências, em cenas ou em filmes inteiros, a interpretação e o significado do que vemos vão depender de muitos outros fatores além da questão de a imagem ser uma representação fiel do que apareceu diante da câmera, se é que alguma coisa de fato aconteceu.

(...) A propaganda política, como a publicidade, também se funda na crença em um vínculo entre o que vemos e maneira como o mundo é, ou a maneira como poderíamos agir nele. Assim fazem muitos documentários, quando têm a intenção de persuadir-nos a adotar uma determinada perspectiva ou ponto de vista sobre o mundo”.

Graças ao documentário, Leni Riefenstahl ficou conhecida como a cineasta de Hitler. Em 1965, Leni (que nunca se filiou ao Partido Nazista) se defendeu, declarando ao Cahiers du Cinéma, que seu filme era apenas um documento.

“Mostrei aquilo de que toda gente foi testemunha ou ouviu falar. E todos ficaram impressionados. Eu fui aquela que fixou essa impressão, quem registrou em película”.

Ana Elisabeth Rodrigues Faro (2012) diz que a obra realizada pela cineasta Leni Riefenstahl teve grande influência na linguagem do cinema e na estética publicitária:

“(...) Caminhando para o que Hitler considerava como sendo o seu ideal de arte: a grega e a romana, ou seja, a arte clássica. (...) Ela (Leni) legitimou a atuação nazista incentivando milhares de alemães a continuarem lutando pela causa. Este filme é um dos melhores exemplos sobre a relação dialética entre o cinema e a sociedade, ou seja: assim como o filme representa a realidade, ele também influencia a mesma com sua ideologia (...)‘O triunfo da vontade’ é a comprovação de muitas teorias que são estudadas até hoje sobre o fenômeno nazista, revelando toda a ideologia de um regime totalitário, no qual a força das palavras e a vontade de vencer são muito evidentes. A propaganda é o recurso mais utilizado por tais regimes, pois eles precisam ‘manipular’ a realidade ao seu favor”.

Bill Nichols (2005) explica que alguns documentários traçam uma lógica informativa que organiza o filme: é a da solução com problema.

“O filme começa propondo um problema ou tópico; em seguida, transmite alguma informação sobre o histórico desse tópico e prossegue com um exame de gravidade atual do assunto. Essa apresentação então leva a uma recomendação ou solução conclusiva, que o espectador é estimulado a endossar ou adotar como sua”.

Segundo Nichols (2005) o documentário O triunfo da vontade é uma variação do estilo problema-solução: o Partido Nazista e, principalmente, a figura de Hitler são a solução para a desordem que estava a Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial, uma nação humilhada, falida e com um imenso colapso financeiro.

“O filme atenua os problemas reais; dedica grande quantidade de energia a instigar os espectadores a endossar os esforços do partido nazista e de seu líder para redimir a Alemanha e colocá-la no caminho da recuperação, da prosperidade e poder. O filme pressupõe que o público contemporâneo a ele estava bem consciente da natureza e da gravidade do problema. Mais crucial para Leni Riefenstahl do que as imagens de arquivos da derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial, a revisão dos termos humilhantes impostos pelo Tratado de Versalhes ou a prova das privações provocadas pela inflação astronômica, foi apresentar um retrato vivo e convincente do partido nazista, e de Hitler, cuidadosamente coreografado, no melhor de sua forma”.

Nichols (2005) lembra que documentários envidam um esforço para convencer quem lhes assiste, persuadindo ou predispondo a uma determinada visão do mundo em que se vive. Um dos instrumentos utilizados para essa persuasão firma-se na escolha da trilha sonora de um documentário.

“Muito de nossa identificação com um mundo fictício e seus personagens depende das imagens que temos deles. Os argumentos exigem uma lógica que as palavras são mais capazes de transmitir do que as imagens. Às imagens faltam o tempo verbal e uma forma negativa, por exemplo. (...) O documentário reapresenta o mundo histórico, fazendo um registro indexado dele; ele representa o mundo histórico, moldando seu registro de uma perspectiva ou de um ponto de vista distinto. A evidência da reapresentação sustenta o argumento ou perspectiva da representação”.

Corroborando esta ideia, basta lembrar que a trilha sonora utilizada por Leni Riefenstahl foi a do compositor Herbert Windt, que ficou conhecido como um dos compositores do Terceiro Reich e que escreveu diversas músicas de câmaras para seu documentário.

Além disso, a música clássica, principalmente do compositor Wagner, um artista que Hitler idolatrava como ideal de pureza artística, também pontuou não apenas o filme de Riefenstahl, mas outros eventos nazistas. Segundo Humberto Capellari (2008), a obra de Wagner esteve presente mais do que a de quaisquer outros nos eventos organizados pelo governo de Hitler, que fazia, à vontade, uso da mesma para os fins políticos que interessavam à propagação da ideologia nazista.

A ópera Os Mestres Cantores de Nurembergue, por exemplo, foi executada com todas as pompas durante a Segunda Guerra Mundial na Festspielhaus de Bayreuth.

O documentário de Leni Riefenstahl utiliza a trilha sonora durante todo o tempo. A música só deixa de ser utilizada no momento em que os atores sociais, como Hitler e seus generais, estão discursando. A última cena do filme é, justamente, a fusão da imagem de Hitler terminando seu discurso e lindos jovens alemães caminhando em fileiras, ao som de uma música/hino que exalta os ideais alemães, a juventude e a vitória.

Conclusão

Concluímos este artigo com as palavras de um dos grandes pensadores da relação entre o cinema e a história, o francês Marc Ferro (Coordenada para uma pesquisa. In: Cinema e história), que afirma que, desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a interferir na história dos filmes – documentários ou de ficção –, os quais, desde sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam e glorificam.

Para ele, os “dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço”. Foi o que aconteceu ao documentário O Triunfo da vontade.

Bibliografia

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Tradução: Mônica Saddy Martins. Campinas, SP: Papirus, 2005. Coleção Campos Imagético.

http://www.labpac.faed.udesc.br/ferro2_cinema_historia.pdf. Acessado em 3 de novembro de 2012. FERRO, Marc. Coordenada para uma pesquisa. In: Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 13-19. [1ª. ed. francesa: 1977,

http://www.oolhodahistoria.org/n11/textos/elizabethfaro.pdf. Acessado em 2 de outubro de 2012. FARO, Ana Elisabeth Rodrigues. O triunfo da vontade: o cinema a serviço da ideologia. Tese de Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia.

http://humbertocapellari.wordpress.com/2008/07/29/. Acessado em 15 de outubro de 2012.

(*) Este trabalho foi a conclusão do curso de pós-graduação em Roteiro para cinema e TV/Documentário, matéria dada pelo professor Tony Queiroga na Universidade Veiga de Almeida em 2012.

Carla Giffoni
Enviado por Carla Giffoni em 13/12/2012
Reeditado em 14/12/2012
Código do texto: T4034658
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