FEDERICO FELLINI - a fusão entre o palhaço e o mágico
Fixar seu próprio sobrenome, transformando-o num termo etimológico para definir determinada situação, é para poucos. Muito poucos. Um exemplo disso é o termo felliniano, utilizado com três significados diferentes: o primeiro para se referir aos fãs e discípulos do diretor italiano Federico Fellini; o segundo querendo dizer ‘pertencer a Fellini’; e por último, como nomeia Cora Ayres no seu blog A língua felliniana, para caracterizar o estilo do diretor, notável em todos os seus filmes (por exemplo, dizer que uma mulher de “dimensões fellinianas” é uma pessoa com seios grandes).
Fellini deixou uma marca tão grande na história do cinema e das artes, de maneira geral, que se transformou em adjetivo. Ele se comunica com o público através de símbolos, investigando a realidade pelo viés onírico. Se o cinema, como disse Jean-Claude Bernardet (2006), começou com o objetivo de “reproduzir a vida como ela é, dando a impressão de realidade”, Fellini quebra isso, utilizando-se do surreal para pensar esta realidade.
Júlia Scamparini Ferreira (2010), cita a escritora Dacia Maraini, que trata sobre a fantasmagoria do diretor italiano:
“A fantasmagoria de Fellini, que durante anos se tornou cada vez mais onírica, coloca em cena o espetáculo da vida. O mais surreal diretor italiano paradoxalmente nos convida a uma reflexão sobre a Realidade”.
Se a linguagem transparente, aquela que dá a ilusão de que o que se vê é o real, domina até hoje o cinema mundial, Fellini subverte isso, revolucionando o cinema como forma de expressão. Ele conseguiu explorar suas memórias, vivências e visões de mundo, misturando tudo e utilizando para isso uma imaginação aparentemente infinita.
Mas a trajetória artística de Fellini não começou no movimento Surrealista. Ele havia trabalhado em jornais e revistas, escrevendo e desenhando. Depois de sair de Rimini, passou por Florença e chegou a Roma, trabalhando em jornais e no rádio. Após grande sucesso no rádio, colaborou com o diretor Roberto Rossellini no filme Roma, Cidade Aberta, que se tornou um marco do cinema Neorrealista.
Segundo Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães (2011), que assinam a Coleção Folha Cine Europeu nº 1, este trabalho – e, posteriormente, os outros – fez com Rossellini fosse fundamental para que Fellini “tomasse consciência de que o cinema comporta um grau de expressão pessoal como o que havia descoberto antes, escrevendo e desenhando”.
No livro Fellini visionário, o diretor italiano explicou a fase Neorrealista que viveu.
“O Neorrealismo foi importante nem tanto pelo plano expressivo, em função de um estilo, mas pela abordagem psicológica. Vínhamos de uma guerra desastrosa, de uma experiência política que havia mergulhado o país nas trevas... Nada sabíamos do nosso país, nada sabíamos sobre a vida em geral, não tínhamos cultura... Éramos um paisinho ignorante, que vivia completamente no escuro. O Neorrealismo foi então importante como contato direto com a realidade, com o país real. Foi uma espécie de ávida digestão, a explosão de uma realidade que ficara sepultada, renegada, traída”.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, a Itália se viu destruída, sobrando apenas ruínas. Mariarosária Fabris (2006), afirma que o país de Fellini teve que se reconstruir não apenas material, mas também moralmente, e que coube aos intelectuais a tarefa.
"Estes (os intelectuais) sentiam a necessidade de deixar as torres de marfim nas quais haviam se refugiado durante o chamado vicênio fascista (1942/1943) e de intensificar suas relações com a realidade. (...) Se a literatura e as artes plásticas puderam contar praticamente de imediato com um discurso crítico, o cinema, porém, para ser levado em consideração, teve que esperar até o final de 1946, quando finalmente se percebeu que ele podia contribuir para a formação de uma nova consciência democrática”.
Fellini continuou trabalhando com os Neorrealistas e ajudou a consolidar a produção cinematográfica da Itália no período pós-guerra. A influência do Neorrealismo pode ser sentida no primeiro filme que ele dirigiu. Mulheres e luzes não pode ser considerado um autêntico Fellini, mas já trás a semente de sua obra. Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães (2011) explicam que o “o filme já coloca em cena o mundo do espetáculo e o povo de reminiscências autobiográficas, reais ou inventadas, característica central da obra que o cineasta constituiria nas quatro décadas seguintes”.
É verdade. O diretor italiano trilhou seu caminho forjando uma estética própria e onírica, na qual a fantasia permeia o universo pessoal, e acabou afastando-se do Movimento Neorrealista para se inserir em outro – o Surrealista.
O professor titular da Universidade de São Paulo, Eduardo Peñuela Cañizal (2006), diz que o Movimento Surrealista “baseou seus princípios na crença de que existe uma realidade superior, à qual se chega por associações de coisas aparentemente desconexas ou, então, pelos chamados processos oníricos”. O Surrealismo é, para Cañizal, o movimento das vanguardas históricas que, com mais persistência, se entrega ao trabalho de libertar-se de certas ideias, sentimentos e desejos.
“Liberta-se dos recalques com que as diversas deteriorações sociais, frutos de conflitos bélicos e desigualdades entre os homens, desvirtuaram a essência da linguagem e debilitaram, consequentemente, sua competência comunicativa no atinente à capacidade que ela tem de expressar, de maneira estranhável , ideias, sentimentos e modos de comportamentos”.
A estética onírica de Fellini tem esse resultado de libertação. Júlia Scamparini Ferreira (2010) cita o que outro diretor italiano, Pasolini, disse sobre o léxico felliniano: “É colorido, raro, bizarro, superescrito, com pastiches expressivos provenientes dos mais diferentes gostos, tomados dos mais diferentes mundos”. Este é o mundo onírico de Fellini.
Mas o que quer mesmo dizer o termo onírico? O sentido semântico da palavra onírico, segundo o dicionário Houaiss, diz respeito aos ou que tem o caráter, a natureza dos sonhos.
Fellini coloca em cena atores escolhidos não por suas competências dramáticas, mas por seu aspecto físico. Além disso, ele preferia criar em estúdio as próprias locações. Basta lembrar que em E la nave va o mar é plástico e o barulho do vento é fabricado, ou seja, o diretor recria ambientes e mostra ao público a fabricação da realidade, sem esconder com que tipo de linguagem ele fazia uso. Júlia Scamparini Ferreira (2010) salienta esse aspecto, ao dizer que “a estética onírica revela o modo felliniano de ver e olhar a vida e acaba por se traduzida em linguagem cinematográfica”.
É dessa linguagem cinematográfica que o diretor italiano se utiliza. Fellini fundiu as habilidades do palhaço e do mágico para criar sua assinatura cinematográfica. Ele lança mão da ironia, da melancolia e do caricato para nos fazer refletir sobre assuntos tão diversos como a autoridade, seja institucional (polícia), escolar ou familiar.
Júlia Scamparini Ferreira (2010) faz uma análise sobre essas questões. Para ela, a seriedade teoricamente associada à ordem e ao ensino parece apenas uma fantasia, um disfarce para uma mentalidade sobre a qual somente no futuro haveria liberdade para avaliar e opinar. “A ironia, a caricatura, a ambiguidade e o humor são recursos linguísticos-cognitivos que se realizam em material cinematográfico, ou recursos de comunicação fílmica que o diretor coloca em prática”, argumenta.
Conclusão
Fellini não precisa dar ao público a ilusão de que o que vê é o real. Para isso, utiliza-se de uma linguagem que não esconde que está sendo utilizado o onírico e mesmo assim consegue fazer as pessoas refletirem sobre a vida – não apenas sobre uma sociedade italiana pós-guerra, mas sobre um mundo capitalista onde, assim como em A doce vida, ainda se vive envolto e entregue à volúpia e ao hedonismo de uma sociedade de consumo triunfante, como já disseram Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães (2011).
Utilizando-se do onírico, Fellini observa a humanidade e as relações sociais. Em A doce vida seu olhar recai, dissecativo, sobre a parte da sociedade mundana, na qual divas e playboys transitam ao lado de intelectuais perdidos e angustiados; em As noites de Cabíria, A trapaça ou mesmo em Os boas-vidas, a câmera mostra o mundo dos desvalidos, dos desajustados, da miséria e o drama dos excluídos. São quinze obras que totalizam a sua forma de expressão, começando por Mulheres e luzes e terminando com A voz da lua. Em todos eles, há sua assinatura inconfundível.
Essa assinatura de Federico Fellini, é bom que se diga, não deve ser resumida a apenas uma sucessão de atrações circenses ou um zoológico humano. Não se pode resumir a obra do diretor italiano a algo tão fácil e raso. Federico Fellini foi além do simplório e do fácil: ele mexeu com a psique humana, libertando o homem do recalque e mostrando a dor e o vazio existencial que cada um carrega. Por isso, Fellini continuará a ser um termo vocabular a perpassar décadas e décadas, transformando-se num cânone que cada geração será capaz de redescobrir e interpretar.
Bibliografia
CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. Surrealismo. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006. (Coleção Campo Imagético)
FABRIS, Mariarosária. Neorrealismo italiano. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006 – (Coleção Campo Imagético)
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção Primeiros Passos, 9)
CARLOS, Cássio Starling; GUIMARÃES, Pedro Maciel. Federico Fellini: A doce vida. São Paulo: Moderna, 2011. (Coleção Folha Cine Europeu, v.1)
Websites:
FERREIRA, Júlia Scamparini. Do simbólico ao subjacente: nuances de um discurso sobre a identidade italiana no cinema de Fellini. (Tese) Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. Faculdade de Letras, UFRJ, 2010. <http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/media/bancoteses/juliascampariniferreiradoutorado.pdf> Acessado em 29 de novembro de 2012.
AYRES, Cora. A língua felliniana. (blog) <http://alinguafelliniana.blogspot.com.br/> Acessado em 29 de novembro de 2012.
OBS: Este trabalho foi apresentado no curso de Pós-graduação em Roteiro para cinema e TV na Universidade Veiga de Almeida (UVA), referente à matéria Linguagem audiovisual ministrada pela professora Lia Bahia, dezembro/2012.