“Considero a crítica literária não como uma atividade parasitária da literatura de criação e a ela contraposta, mas como uma atividade autônoma, apenas distinta da atividade criadora, mas cheia de contatos com ela e representando, antes de tudo, uma concepção geral da existência. Nisso está, creio mesmo, a grande dignidade e a grande responsabilidade da crítica literária, que passa assim, de atividade subordinada, a esforço intelectual livre e original.
E a esforço que implica não apenas em uma atitude analítica mas sintética; não apenas de comentário e julgamento, mas ainda de construção própria; não apenas de anotação aos livros estranhos, mas de visão própria; não apenas literária, mas vital. É uma visão geral da vida. Não uma visão livresca, nem só literária ou mesmo exclusivamente estética.
"Alguém que faz da crítica a sua vivência habitual (e julgo indispensável abrasileirar o espanholismo, tão justificável como existência, de existir) – não pode limitar-se a ver nela apenas um conjunto de anotações às atividades estéticas ou intelectuais dos outros. E a vida toda que tem diante dos olhos. Deve fazer da crítica um modo de exprimir sua própria visão total da vida.
"Tudo, portanto, entra no domínio da crítica, já que a atividade filosófica – contida na concepção geral da vida – compreende a universalidade das coisas, consideradas em suas relações mais gerais, em suas origens, em seus fins, em suas raízes.
"Filosofia, poesia e oração se tocam, intimamente, por essa insatisfação das aparências. O crente, o poeta e o filósofo querem vencer, por suas próprias forças, a servidão das superfícies e penetrar no âmago das coisas, dos segredos, dos silêncios...
"A crítica pertence a esse conjunto de atitudes no espírito. Criticar não é se prender a uma obra, a esta obra. Embora seja ela o seu objetivo direto e imediato, para vê-la bem, tem de ultrapassá-la. Deve procurar ver tudo. Ver o conjunto das coisas. Procurar o que fica antes, por trás ou depois da obra. Considerar o conjunto das obras. Nunca perder de vista a totalidade da existência. Não se confinar nunca no recanto da realidade em que se encontra nem confundir o particular com o geral.
"A estreiteza de espírito é, por isso mesmo, um dos maiores defeitos de um crítico literário. É a negação formal da natureza de sua própria atividade. Saber compreender, saber abrir-se ao real, ao real na sua infinita complexidade, eis um dos dons preliminares de todo crítico que se preza. A docilidade ao grande cântico das criaturas que se eleva de todos os recantos do universo, como uma sinfonia infinita em que cada objeto tem o seu papel a desempenhar, em que cada atitude tem a sua razão de ser, – é o passo inicial, é a disposição preliminar para que exista crítica literária e não apenas sectarismo crítico.
"É mister não confundir essa exigência preliminar e essencial à própria natureza da crítica literária, de ter olhos para tudo, – com o cepticismo ou com o ecletismo. O céptico é aquele que não crê em nada e para quem, portanto, são indiferentes todas as atitudes. O crítico céptico não se abre a toda realidade. Fecha-se a ela, por começar justamente negando tudo aquilo que seja afirmação, crença, substância, permanência, vendo todas as coisas como um cenário fugaz de figuras mais ou menos imaginárias.
"O eclético, ao contrário, crê em tudo; acha bons todos os pontos de vista; não faz distinções entre erro e verdade, entre bom e mau, entre sim e não. Colocando-se no extremo oposto ao céptico, acaba confundindo-se com ele. Pois tanto faz aceitar ou rejeitar tudo, indistintamente. No fim, o que há é uma confusão total, uma total indiferença e, portanto uma evasão da vida verdadeira, do drama do real.
"Abrir a sua inteligência a todo o real não é, portanto, excluir a discriminação das coisas e das pessoas. Longe disso. É justamente a condição indispensável para que essa discriminação se faça, não arbitrariamente ou na base de uma apreensão parcial da realidade, mas sobre um fundamento realmente inabalável.
"Abrir o espírito à compreensão de todas as coisas não é, portanto, equiparar tudo na linha de rejeição ou de aceitação total e indiscriminada. É justamente permitir que a apreciação crítica não seja uma anotação meramente subjetiva e unilateral, mas represente realmente uma visão geral das coisas. Essa visão se faz, entretanto, como ficou dito de início – “através das obras alheias”. Nisso se distingue, de modo formal, a crítica da filosofia.
"Não se trata de uma interpretação direta e sim indireta do universo. No primeiro caso teríamos uma atividade puramente filosófica, pois pensamos filosoficamente quando meditamos diretamente sobre a essência dos seres e suas manifestações.
"A crítica opera sempre de modo indireto. Seu objeto imediato não são os seres naturais e sim entidades acrescentadas à natureza. Não a esta e sim à arte e aos frutos de sua atividade é que se aplica o esforço intelectual do crítico. As obras de arte é que são o objeto imediato da crítica literária, como dissemos na segunda parte de nossa definição inicial. A elas se aplica diretamente a nossa atenção. Em torno delas gira toda a nossa atividade. A medida do valor do que fazemos, como críticos, é a obra alheia a que aplicamos a nossa inteligência. Por isso mesmo é que devemos sempre, nos críticos, distinguir a sua visão geral da vida e a sua visão particular das obras, através das quais o crítico elabora a sua filosofia. Sucede, mesmo, que essa atividade em relação às obras é a mais importante.
"Um crítico vale o que valem os seus julgamentos sobre as obras que analisa. Sua visão geral da vida é secundária em relação à sua apreciação das obras. Esta é que especifica a sua atividade. É a causa formal de sua condição de crítico. Digo isso, desde logo, para não pensarem que coloco as obras alheias como simples pretexto ou mesmo como simples instrumento de meditação filosófica de um crítico.
"Julgo que as duas atividades são complementares. Não há crítica, verdadeiramente, sem uma filosofia da vida e sem um julgamento das obras. Quando se dissociam as duas faces da mesma realidade, mutila-se também a nossa atividade. E passamos então, ou a relegar os autores e as obras para um plano secundário e portanto a sacrificar a atividade crítica precípua às nossas intenções metacríticas. Ou então, desdenhamos dessa metacrítica para nos prendermos apenas a uma espécie de positivismo crítico que é tão mutilante para a natureza total dessa posição do espírito, como é a exclusão sistemática da metafísica dentro de um sistema de ciências meramente experimentais ou naturais.
"Visão da vida através das obras alheias, e destas através daquela, exige a crítica, portanto, uma perene retificação para não nos deixarmos vencer - nem pela tentação do abandono das obras e dos autores, em benefício de uma constante afirmação do nosso eu, da nossa própria visão das coisas - em que a obra alheia entre apenas como um estímulo inicial - nem pelo apagamento exagerado do nosso próprio eu, para nos confinarmos no papel de simples reflexos da obra alheia.
"No equilíbrio justo entre esses dois pólos está a linha mestra do nosso roteiro crítico mais autêntico. De um lado a necessidade da visão dando à crítica a sua grandeza natural. “Where there is no vision, art and literature perish”. De outro o dever de colocar a obra estudada no centro imediato de sua cogitação e de não a converter em simples elemento ou pretexto para ilustrar um sistema de interpretação geral das coisas.
"A visão é, pois, indispensável para dar à atividade crítica todo o seu âmbito e o seu equilíbrio total. Mas a obra é que representa a realidade concreta e imediata com a qual o crítico tem de se haver. Por ela começa toda essa aventura apaixonada, caminho da crítica literária, em suas numerosas vicissitudes, que vamos tentar seguir, ao menos em suas linhas mestras, ao longo deste ensaio, fruto de vinte e cinco anos de experiência pessoal por essas regiões já tão exploradas.
A posição do crítico em face da obra alheia se processa em três fases, que podemos chamar de preparação, leitura e redação.”
Fonte: Textos Escolhidos
Disponível em: www.academia.org.br
E a esforço que implica não apenas em uma atitude analítica mas sintética; não apenas de comentário e julgamento, mas ainda de construção própria; não apenas de anotação aos livros estranhos, mas de visão própria; não apenas literária, mas vital. É uma visão geral da vida. Não uma visão livresca, nem só literária ou mesmo exclusivamente estética.
"Alguém que faz da crítica a sua vivência habitual (e julgo indispensável abrasileirar o espanholismo, tão justificável como existência, de existir) – não pode limitar-se a ver nela apenas um conjunto de anotações às atividades estéticas ou intelectuais dos outros. E a vida toda que tem diante dos olhos. Deve fazer da crítica um modo de exprimir sua própria visão total da vida.
"Tudo, portanto, entra no domínio da crítica, já que a atividade filosófica – contida na concepção geral da vida – compreende a universalidade das coisas, consideradas em suas relações mais gerais, em suas origens, em seus fins, em suas raízes.
"Filosofia, poesia e oração se tocam, intimamente, por essa insatisfação das aparências. O crente, o poeta e o filósofo querem vencer, por suas próprias forças, a servidão das superfícies e penetrar no âmago das coisas, dos segredos, dos silêncios...
"A crítica pertence a esse conjunto de atitudes no espírito. Criticar não é se prender a uma obra, a esta obra. Embora seja ela o seu objetivo direto e imediato, para vê-la bem, tem de ultrapassá-la. Deve procurar ver tudo. Ver o conjunto das coisas. Procurar o que fica antes, por trás ou depois da obra. Considerar o conjunto das obras. Nunca perder de vista a totalidade da existência. Não se confinar nunca no recanto da realidade em que se encontra nem confundir o particular com o geral.
"A estreiteza de espírito é, por isso mesmo, um dos maiores defeitos de um crítico literário. É a negação formal da natureza de sua própria atividade. Saber compreender, saber abrir-se ao real, ao real na sua infinita complexidade, eis um dos dons preliminares de todo crítico que se preza. A docilidade ao grande cântico das criaturas que se eleva de todos os recantos do universo, como uma sinfonia infinita em que cada objeto tem o seu papel a desempenhar, em que cada atitude tem a sua razão de ser, – é o passo inicial, é a disposição preliminar para que exista crítica literária e não apenas sectarismo crítico.
"É mister não confundir essa exigência preliminar e essencial à própria natureza da crítica literária, de ter olhos para tudo, – com o cepticismo ou com o ecletismo. O céptico é aquele que não crê em nada e para quem, portanto, são indiferentes todas as atitudes. O crítico céptico não se abre a toda realidade. Fecha-se a ela, por começar justamente negando tudo aquilo que seja afirmação, crença, substância, permanência, vendo todas as coisas como um cenário fugaz de figuras mais ou menos imaginárias.
"O eclético, ao contrário, crê em tudo; acha bons todos os pontos de vista; não faz distinções entre erro e verdade, entre bom e mau, entre sim e não. Colocando-se no extremo oposto ao céptico, acaba confundindo-se com ele. Pois tanto faz aceitar ou rejeitar tudo, indistintamente. No fim, o que há é uma confusão total, uma total indiferença e, portanto uma evasão da vida verdadeira, do drama do real.
"Abrir a sua inteligência a todo o real não é, portanto, excluir a discriminação das coisas e das pessoas. Longe disso. É justamente a condição indispensável para que essa discriminação se faça, não arbitrariamente ou na base de uma apreensão parcial da realidade, mas sobre um fundamento realmente inabalável.
"Abrir o espírito à compreensão de todas as coisas não é, portanto, equiparar tudo na linha de rejeição ou de aceitação total e indiscriminada. É justamente permitir que a apreciação crítica não seja uma anotação meramente subjetiva e unilateral, mas represente realmente uma visão geral das coisas. Essa visão se faz, entretanto, como ficou dito de início – “através das obras alheias”. Nisso se distingue, de modo formal, a crítica da filosofia.
"Não se trata de uma interpretação direta e sim indireta do universo. No primeiro caso teríamos uma atividade puramente filosófica, pois pensamos filosoficamente quando meditamos diretamente sobre a essência dos seres e suas manifestações.
"A crítica opera sempre de modo indireto. Seu objeto imediato não são os seres naturais e sim entidades acrescentadas à natureza. Não a esta e sim à arte e aos frutos de sua atividade é que se aplica o esforço intelectual do crítico. As obras de arte é que são o objeto imediato da crítica literária, como dissemos na segunda parte de nossa definição inicial. A elas se aplica diretamente a nossa atenção. Em torno delas gira toda a nossa atividade. A medida do valor do que fazemos, como críticos, é a obra alheia a que aplicamos a nossa inteligência. Por isso mesmo é que devemos sempre, nos críticos, distinguir a sua visão geral da vida e a sua visão particular das obras, através das quais o crítico elabora a sua filosofia. Sucede, mesmo, que essa atividade em relação às obras é a mais importante.
"Um crítico vale o que valem os seus julgamentos sobre as obras que analisa. Sua visão geral da vida é secundária em relação à sua apreciação das obras. Esta é que especifica a sua atividade. É a causa formal de sua condição de crítico. Digo isso, desde logo, para não pensarem que coloco as obras alheias como simples pretexto ou mesmo como simples instrumento de meditação filosófica de um crítico.
"Julgo que as duas atividades são complementares. Não há crítica, verdadeiramente, sem uma filosofia da vida e sem um julgamento das obras. Quando se dissociam as duas faces da mesma realidade, mutila-se também a nossa atividade. E passamos então, ou a relegar os autores e as obras para um plano secundário e portanto a sacrificar a atividade crítica precípua às nossas intenções metacríticas. Ou então, desdenhamos dessa metacrítica para nos prendermos apenas a uma espécie de positivismo crítico que é tão mutilante para a natureza total dessa posição do espírito, como é a exclusão sistemática da metafísica dentro de um sistema de ciências meramente experimentais ou naturais.
"Visão da vida através das obras alheias, e destas através daquela, exige a crítica, portanto, uma perene retificação para não nos deixarmos vencer - nem pela tentação do abandono das obras e dos autores, em benefício de uma constante afirmação do nosso eu, da nossa própria visão das coisas - em que a obra alheia entre apenas como um estímulo inicial - nem pelo apagamento exagerado do nosso próprio eu, para nos confinarmos no papel de simples reflexos da obra alheia.
"No equilíbrio justo entre esses dois pólos está a linha mestra do nosso roteiro crítico mais autêntico. De um lado a necessidade da visão dando à crítica a sua grandeza natural. “Where there is no vision, art and literature perish”. De outro o dever de colocar a obra estudada no centro imediato de sua cogitação e de não a converter em simples elemento ou pretexto para ilustrar um sistema de interpretação geral das coisas.
"A visão é, pois, indispensável para dar à atividade crítica todo o seu âmbito e o seu equilíbrio total. Mas a obra é que representa a realidade concreta e imediata com a qual o crítico tem de se haver. Por ela começa toda essa aventura apaixonada, caminho da crítica literária, em suas numerosas vicissitudes, que vamos tentar seguir, ao menos em suas linhas mestras, ao longo deste ensaio, fruto de vinte e cinco anos de experiência pessoal por essas regiões já tão exploradas.
A posição do crítico em face da obra alheia se processa em três fases, que podemos chamar de preparação, leitura e redação.”
Fonte: Textos Escolhidos
Disponível em: www.academia.org.br