Escritura Machadiana e a Questão da perda e do luto na revista Veja.

Há dois artigos que servem de reflexão quanto à inserção do escritor na cultura: o primeiro, Machado de Assis como crítico de seu tempo e sua sociedade; segundo, a questão da perda na visão de Betty Millan, psicanalista da revista Veja. Os artigos são de 1º de setembro de 2010, p. 184 e 164, respectivamente. Clique em www.veja.com O mais importante é o que me chamou a atenção: quanto ao texto machadiano, a voz de Altar & o Trono, obra de Ivan Teixeira, professor de Literatura no Texas, posiciona o velho bruxo na questão de sua escritura labiríntica, irônica, alegórica, cuja sátira é a imagem corrosiva de Machado como o crítico ferino e sutil da elite monárquica e republicana, descartando a escravidão. E como funcionário, nada acomodado e nem contente com a maneira de sua sociedade carioca em ver o outro. A visão do outro é sutilizada e explícita ao mesmo tempo na dialética proposta por outros críticos como Roberto Schwarz e Alfredo Bosi. No primeiro, Machado é o mestre da periferia do capitalismo tardio brasileiro na América latina. Ele, usando as mesmas imagens do cânone europeu (como fazia Nabuco), “parafrasear” até certo ponto, deixando-se revelar-se contra a visão eurocêntrica (naturalista, positivista, realista de seu tempo). Para Ivan Teixeira, O ALIENISTA é uma das expressões rebelantes de Machado ao cânone europeu e realiza sua visão revolucionária do autóctone negro ou mestiço na América portuguesa. Machado soube ser as entrelinhas das ideias “fora de lugar” como seu “torcicolo cultural” irônico, na visão de Schwarz. Vale aqui a intervenção oportuna de Silviano Santiago quando concebe a vez e a voz do intelectual latino-americano como o “entre-lugar” na ousadia de desrecalcar o arquivo europeu e usá-lo a seu valor, alterando as premissas desse discurso.

Por outro lado, o artigo e Betty Milan, interessante em sua abordagem sobre a perda e seu desconsolo. Ela mostra as dificuldades e estratégias de convivência e desconsolo diante da perda como um “não ter” o outro, mas conservar as recordações como condição de superação e alivio intrapsíquico. Para sua fundamentação, não citando Freud (que fica nas entrelinhas de seu discurso de psicanalista), recorre a Cervantes e Gabiel Garcia Márquez. Em Dom Quixote, a ficção é forte indicio de superação à medida que o enlutado consegue encontrar energias vitais (Eros) para gerenciar a perda, reativar imagens do outro em si. O processo de animização e construção de personagens projetadas reverencia um propósito lúdico e dialógico em que o luto segue na esteira de não negação do outro, mas ainda parceiro de nossas divagações e libidinização do ego. A pretensa evasão do real no quixotismo eleva o espírito humano na redimensionalização de sua aventura no mundo fantasmagórico e dos mortos, ainda vivos em nós. Saramago já asseverava que os mortos só morrem quando não há quem os recorde. Quando ao s Cem Anos de Solidão, o desconforto da perda é visto na perambulação da Vila de Buendía, para a qual os mortos são vistos como condição de diálogo de nossa vontade de que o outro continua a nos entender (mesmo morto). O romance nos seduz pelas imagens e insistência da viúva de José Arcadio. Úrsula, depois da morte do marido, o projeta no velho castanheiro, onde ele passou amarrado anos de sua vida. Nesse jardim (Hades) entre os vivos, Úrsula chora no ombro do marido para se consolar. A mimeses e a cartase evidenciam os suportes de quem passa pelo luto, sem perder o sentido de viver e integrar Eros e Tânatus na perspectiva do cotidiano. Permitir sentir tristeza não é sinônimo de fraqueza, nem de que se perde a fé, ou de que se é anormal. Nem precisa ser algo proibido e às escondidas. Quem morreu, fez sua parte na vida, mas ele continua, de alguma forma, ainda vivo em nossas recordações, enquanto também vivermos. O luto tem seu ritmo e tempo, é melhor que a depressão. Em todas as sociedades, há culto do ancestral. Os mementos e lembranças estão juntos na liturgia e na vida. Deveríamos não recear a falar da morte como a condição real e simbólica. Para isso, o ser humano inventou religião, literatura, ficção, cinema, romances, túmulos, histórias e ritos. Os índios do Xingu tem a cerimônia fúnebre – o Quarup – (leia a obra de Antonio Callado) em que o morto é projetado ou é uma tora, em redor da qual dançam, cantam, falam, choram durante uma semana; até lançá-la ao rio (na cultura grega, o rio é o Hades e os mortos vão para o Letes), representando a partida definitiva do ente querido para o reino dos ancestrais entre a natureza e o sobrenatural. O próprio Cristo, antes de morrer, resolveu ressuscitar seu amigo Lázaro, que apodrecia no Túmulo. Ele também chorou com as irmãs de Lázaro, como condição cultural e religiosa de sua cultura judaica.

O pior é a tristeza recalcada na depressão e remorso. Chorar é libertador, mas ainda é conversar com o morto que é nosso intimo confidente no luto. “Quem não chora seu morto não é consolado.” Essa frase de Milan nos instiga a não ficar lamentando ou suportando uma existência pesada ou condenada à angustia de viver, culpando a si ou aos outros pelo que aconteceu... Todos temos perdas, que não é sinônimo de não ter... Essa sensibilidade nos faz solidário aos que também como nós perdem... Ter tempo para o luto e dosar os encontros da vida do outro que perde alguém é entender que somos limitados e precisamos uns dos outros. As soluções mágicas do romance nos ensinam a se valer dos recursos da ficção como as crianças de seus amigos invisíveis para superar e conviver com as perdas afetivas. Nossa imaginação é nossa aliada na dor... Rememorar é bom e lamentar tem seu limite. E tudo na vida passa; vivamos cada momento debaixo do sol e das estrelas e a noite continuará a ser cada uma diferente. Não esqueça que, atrás das nuvens, sol e lua existem ainda para quem crê na vida e no amor. Talvez seremos motivo de riso e lágrima para as futuras gerações; é sinal de que ainda se importaram conosco, mesmo quando partirmos um dia... Não é?