Síntese da dissertação de mestrado de J B Pereira

SEBASTIÃO BEMFICA MILAGRE: O LIRICO DA MODERNIDADE EM DIVINÓPOLIS

E Sebastião Milagre, pessimista e ironicamente, constata como Machado de Assis que “o progresso é uma desgraça e o atraso, uma vergonha” (SANTIAGO, 2004, p. 35), o que vale dizer elucidar não o segredo de uma vida ou poesia em si, mas evidenciar o grau de tradução de uma vida em obra de arte, trânsito entre o poeta-ator-músico e a poética como palco-ficção-estética, ambos captando momentos de uma cultura como processo de construção e representação.

Em 27/8/69, participou na 1ª Semana de Arte O Suplemento Literário de Minas Gerais, (BESSA, 2003, p. 69), Milagre confidencia: Participante é a poesia que traz (...) aquilo que se refere ao homem – cotidiano, desde as manifestações pessoais[às] implicações coletivas.(...) Dou valor à persistência, algo novo é recebido com reservas, mas, se é de boa qualidade, aos poucos, será aceito.

ROTEIRO MILAGREANO

Agradeço aos trovadores divinopolenses e aos de outras localidades do Brasil, o incentivo, o acolhimento e o carinho a que me dispensaram. Ao público que me honrou lendo minhas trovas, minha comovida gratidão. Divinópolis, 1990, MG, em Quartetos de Sopro (1991). O Autor.

Sebastião Bemfica Milagre, em vida, à margem do eixo Rio-São Paulo como ícone de resistência e apelo ao novo fazer poético, Milagre entre 1940 a 1960, deteve-se na produção de trovas e sonetos.

O interdisciplinar será um dos procedimentos metodológicos de leitura e confecção desse projeto, discutindo as questões do arquivo da memória coletiva nos itinerários do poeta pelas cidades de Minas, a interação entre tradição e modernidade em Divinópolis, os diálogos intertextuais diversos como influência do modernismo e vanguardismo na confecção da escritura milagreana, a confluência da poética milagreana com a arquitetura moderna no contexto da modernização de Divinópolis a partir dos anos 1960.

Sebastião Milagre se consagrou como ícone de transição entre a tradição parnasiano-simbolista e a poesia moderna. O caráter inquieto e o empenho inovador de Milagre vêm influenciando gerações de poetas e escritores desde os anos 1960.

Sebastião Milagre nasceu em Divinópolis no dia 02 de setembro de 1923 e morreu em Belo Horizonte no dia 22 de fevereiro de 1991 . Como poeta tardomoderno se destacou na literatura divinopolitana com 20 obras, além de uma antologia ainda difusa e não pesquisada. É o mestre o soneto e da trova entre 1940 a 1960. Mas, a partir dos anos 1960, participando de Movimentos de Artes I e II, em 1968 e 1969, respectivamente, diversifica seu fazer poético com a influência de leituras e viagens e com o impacto da ditadura na vida dos brasileiros. Incentivou a participação de jovens escritores nos jornais locais como a revista A Semana e no Jornal Literário Agora. Mas tarde, colaborou na estruturação do Movimento Agora, dando origem ao Jornal literário Agora e canalizando a irreverência dos Jovens do Agora em Diadorim. Publicou poemas no Diadorim, jornal local de divulgação internacional na década de 1960 e 1970. Nesse período, até os anos 1980, participou de concursos de poesia em outros estados e publicou poemas no Suplemento Literário de Minas Gerais. Sob influência de outros poetas portugueses e vanguardistas da capital mineira, optou tardiamente pelo verso livre o que significou uma guinada em sua maneira de ver a si, o homem e os paradoxos da modernidade. A morte prematura de Lilia (dia de Finados de 1970), a mulher amada, a tortura imposta ao filho Antônio Weber pelo DOPS em Belo Horizonte , a queda do Muro de Berlim (1985) e os antecedentes do colapso da Rússia (1991) foram instigantes a ponto de se constituírem referências temáticas recorrentes em suas obras Gritos (1972), Viaduto das Almas/ O Homem Agioso (1986), 3 EM 1 (1981) e Doador de Sangue/ Procissão da Soledade (1990).

Sua presença na cidade se faz sentir na memória de familiares, amigos e nas instituições que defendeu e fundou com acadêmicos. Foi o cofundador da ADL – Academia Divinopoliltana de Letras (08 de junho de 1961), fundador da Noite da Poesia (set. de 1986) e não permitiu o fechamento da antiga escola de música, hoje o Conservatório de Música. Amante das artes em geral, dedicou-se em especial ao violão e a poesia, seus parceiros de vida inteira.

Sebastião Milagre realizou algumas viagens que marcaram sua obra. É o que está registrado, ora explícita, ora implicitamente, em seus poemas. Ele começou com o soneto, descobriu-se integrante do movimento tovadoresco dos anos 1960, e aprofundou apropriações das “mais avançadas realizações do espírito oficinal de modernidade” (MILAGRE, 1991, p. 6)

E Milagre se justifica nessas habilidades de reelaboração e apropriação de antigas e novas estéticas conforme o seu processo de produção e maturação lírica, seja em Divinópolis, sua terra natal, seja fora, conforme as exigências de viagens, leituras em seu sinuoso e constante roteiro poético que será reconstituído passo a passo aqui.

Conforme o parecer de uma das contemporâneas da poesia de Milagre, Irene Amaral Ferreira, que prefaciou Fábula e o Livro do Povo, de Hugo de Lara (1975) , destaca:

O roteiro do poeta é (...) a surpresa do leitor (...) à medida que se penetra a trilha no mundo do autor (...), traçada pela própria gênese dos trabalhos. Todo o organismo sofre (...) o influxo da descoberta do homem-poeta e a consciência do que isto significa, principalmente na cultura de hoje. Ficaram gentes encurvadas ao pé da letra,/ e eu, poema ignorado. (1975, p. 10),

Essa previsão do roteiro como diagnóstico de futuras leituras por parte dos que se interessam pela poesia é acalentadora na obra de Milagre, visto que há gente que ainda se lembra de seus versos, conselhos e ditos.

O homem-poeta, que gostava de viajar e por onde passava deixava embalar-se pela poesia da cidade e suas particularidades, evidencia não só a obra significativa que produziu como expressa uma visão de mundo únicas, em estilo direto e temas variados.

Hoje se debruça sobre sua poesia, ainda que muitos possam não ter conhecido pessoalmente o poeta. Como se depreende da leitura da citação acima, “Ficaram gentes encurvadas ao pé da letra,/ e eu, poema ignorado” (1975, p. 10).

O eu conhecido ou ignorado do poeta Milagre percorreu, pois, os quatro itinerários de poemas-cidades, de que se pode perceber ao longo de sua obra:

O primeiro e o último itinerário de seu roteiro lírico são a sua própria cidade, cuja poesia exaltou, criticou e ponderou em vida e desejou que fosse contemplada após sua morte. Em Divinópolis nasceu e morreu! É o poeta que encantou, amou e passou por desencanto pelas coisas de sua cidade. Paradoxal, há de se contextualizar os poemas e seu alcance a partir de cada momento de sua vida, profissão, situação, momentos do humor variado do poeta introvertido e meditativo por tendência pessoal, ora extroversão decorrente de sua arte declamatória e aquele entusiasmo que o movia quando o assunto era uma poesia para o público-ledor e os curiosos de sua performance. Como se tentou aqui mostrar e analisar, a poética milagreana se bifurca em dois grandes momentos para se convergir na sua capacidade de ser o ícone de transição entre o antigo e o moderno. Um dos temas do poeta, em sua cidade, foi o sentimento neo-romântico e a meditação neoparnasosimbolista que perpassou sua poesia, sofrendo uma ondulação criativa, ora ufanista, ora cética, frente seu impulso de renovação advindo do esforço por apropriar-se do modernismo da primeira geração dos anos 1920, depois o retorno paradoxal à tradição – atitude da geração de 1950 – para avançar em experimentalismos das gerações; concretista, neoconcretista, poema-processo, poema-práxis e poema social.

São duas fases – a fase clássica dos sonetos e trovas com a fase moderna do poeta – que se misturaram criativa e sui generis, ao longo de seus quase 52 anos de dedicação à poesia.

A difícil montagem desse roteiro poético milagreano se debruça na tentativa de reconstituir os seus passos de uma viagem muito mais complexa que idealizada a partir de sua lírica. Há de se dizer também de que, se o arquivo dele se perdeu, dispersou-se, não há documentação tão sólida que demova nossa iniciativa de buscar nos vestígios possíveis de arquivos uma memória ainda pulsante e viva na comunidade e gerações que conheceram o poeta Sebatião Bemfica Milagre, como escrivão, poeta-declamador, compositor, seresteiro do violão e voz grave das serenatas, do radialista de músicas clássicas, inclusive em Saraus em sua nova residência no Sidil , do leiloeiro oficial, secretário das faculdades locais, do vendedor de seguros das horas noturnas da sua cidade. Enfim, baseando-se em Hall, a partir de Williams e Thompson, tais vestigios de sua vida e memoria na coletividade ainda são uma tentativa de descobrir a natureza da sua poesia e sua vida entre 1923 a 1992 como uma “organização geral em um caso particular [struture of feeling], elementos (...) numa forma interira de vida” (idem, p. 128-9). Essas estruturas da poetica milagreana em E. P. Thompson, evocam a inferência que motiva nossa pesquisa: “nenhuma cultura dominante esgota a prática, a energia e a interação humanas.(...). Cada modo de produção ser também uma cultura, e cada luta entre as classes ser sempre um lugar entre modalidades culturais” (ibidem, p. 129)..

Os poemas da fase tradicional foram os de sua estréia como poeta na imprensa com o livro Via-Sacra (1960), que nos remetem à cidade de Divinópolis, sob a égide da Tradição. A vida ainda era pacata e centrada na religiosidade e na prática do catolicismo, cuja referência foi a Catedral do Divino Espírito Santo, de Divinópolis.

Via-Sacra (1960) é oferecido à primeira esposa Maria da Conceição Natividade e aos familiares como pais, filhos, e ao irmão falecido Teófilo. Depois cita 12 poetas de sua convivialidade. A capa do livro é o ícone da tradição de semana santa das cidades mineiros. O texto depois de uma longa introdução, começa com a “Oração Preparatória” (1960, p. 33-4) e termina com o “Epílogo” (p. 91-92) . , ambos diferentes dos sonetos de cada uma das 14 estações contempladas (1960, p. 37-89), são compilados em versos livres, evidenciando a oração espontânea do fiel contrito diante do Senhor em sua santa paixão na via crucis da sexta-feira da Semana Santa. O espírito tridentino, ou seja, do concilio de Trento, perpassa o texto em pleno ano 1960. Hoje, a partir das reformas litúrgica do Vaticano II, na década de 1960, as estações da via sacra são 15, a última é a ressurreição do Senhor, vencedor de toda humilhação e conseqüências da injustiça e da morte, em uma dimensão de imortalidade e felicidade transcendente à condição terrenal do hunano. Hoje a via sacra é reproduzida diferentemente em contexto da vida do povo, ou ainda com algumas adaptações para a pastoral da Quaresma, onde a nossa Igreja e a CNBB sugere a Campanha da Fraternidade e sua Via Sacra comunitária nas paróquias das Dioceses do Brasil: Gostaríamos que a Via-Sacra fosse revitalizada de modo mais piedoso e envolvente pastoralmente nas comunidades paroquiais, inclusive na Praça da Matriz, onde Vossa Excelência teve sua solene posse:

Observando atentamente o número de páginas da Via-Sacra, ali estava o ano de falecimento de Milagre em 1992, ou seja, estava escrito o epilogo de sua vida e dor nesse mundo. E os dizeres da “Oração Preparatória” e do ‘Epílogo” são os seguintes do texto milagreano da Via-Sacra (1960):

Rogo-vos que, aprendendo a carregar, paciente,

Ate ao fim, a cruz desta existência,

Possa eu ter a confiança

De que e segundo o vosso exemplo,

Exemplo de perdão, exemplo de humildade

E de respeito ao Pai, que o homem entra no templo

Da Eterna Felicidade!... (1960, p. 34)

- E quero vos pedir (bem sei que o não mereço,

Mas por ser o melhor dos prêmios a eu aspiro)

Que depois de vos ter, em alma, acompanhado

Nessa via de dor, de flagelo e tropeço,

Possa ter uma sem igual ventura,

A de participar, também, um dia,

Do vosso triunfo sobre a morte fria...

Assim, serei a mais ditosa criatura.

A imagem foi adquirida em 1908, pelo Padre Manoel Maria da Silva e esculpida em Sabará, MG, por entalhistas portugueses, deixando rastro da tradição e da arte barroca. Durante muito tempo, na tradição do núcleo do povoado antigo, fazia-se no largo da Catedral de Divinópolis, onde estavam os “velhos prédios que plasmaram a memória” (p. 123) os passos da via sacra. O único que sobrou desse contexto histórico da tradição ou do núcleo do povoado antigo foi o casarão, hoje conhecido por Museu Histórico de Divinópolis, situado na Praça dom Cristiano, primeiro bispo de Divinópolis. Hoje a catedral tem dois relógios colocados em 2009, quando da posse do quarto bispo Dom Tarcisio Nascentes. Antiga igreja ou capela fora demolida e em seu lugar se construiu a moderna catedral com vitrais ao fundo da mesma.

Nos anos 1950, Dom Cristiano celebrava assim, retomando a essa tradição do início do século XX, realizando procissões e encontro da Virgem Dolorosa com seu filho o Senhor dos Passos. O domingo da Páscoa era realizada a caminhada com a Virgem Gloriosa, com capa azul, outra imagem de 1887, vinda da França, e o Cristo triunfante, eucarístico. Era a época de Pe. Américo Epifânio. A imagem mais nova é de 1912, adquirida por Pe. Matias Lobato, um dos pioneiros da emancipação política de Divinópolis. O mesmo sacerdote fora internado mais tardiamente com problemas mentais. A partitura da música de dolorosa melodia como quer a tradição da Via-Sacra foi composta pelo Professor Antônio Pires, executante foi o Professor Teodosino Campos. Esses fatos são lembrados por Milagre em 1958, durante a Semana Santa daquele ano. A via sacra foi oficiada por Monsenhor Hilton Gonçalves de Souza. A letra da Via-Sacra é a seguinte:

Sacrifício nunca visto,

Que ao remorso me conduz

Este em que, por mim, o cristo

Sucumbiu pregado à Cruz. (1960, p. 15)

Para alguns essa referência – a mesma da origem do antigo povoado na Praça da Catedral ou do Museu Histórico - é a mesma do Partido das Fêmeas , liderado pelo primeiro prefeito municipal de Divinópolis e o primeiro presidente da Câmara dos Vereadores de Divinópolis. A reunião dessa câmara acontecera no Casarão onde nascera o poeta Sebastião Bemfica Milagre. Crê-se que aqui está um dos motivos históricos e políticos que constituem o pano de fundo do poema “Meu Sobrado” (1990), em que o próprio poeta como menino contempla a vida de sua família e da cidade antes da modernização dos anos 1970.

O Partido dos Machos é a designação da oposição liderada por Pedro X. Gontijo, político de índole polêmica, depois por Jovelino Rabelo, prefeito e empresário, gênio da indústria local que dinamizou o avanço da siderurgia na cidade – merecendo Divinópolis a posição de núcleo progressista, comercial, industrial no Centro-Oeste de Minas. Uma das versões dessa história dicotômica da política partidária local é a de Paulo Roberto de Sousa Moraes, neto do Coronel Antônio Olympio de Moraes

Em Divinópolis, uma ardilosa trama formou o Partido Reformador para derrotar o Partido Dominante. Estavam todos em casa de Pedro X, numa tarde do mês de junho daquele ano de 1918. (...) O Partido Dominante, até então formulado pelo Coronel Antônio Olympio de Moraes. (...) Pedro X Gontijo começou a publicar artigos no jornal “O Divinópolis”, que feriam a imagem dos dirigentes do município (...). Chegaram a ponto de apelidar o Partido Dominante de “Partido das Fêmeas e o Partido Reformador, de “Partido dos Machos”, intenção clara de ridicularizar todos com baixo recurso. (...) Antônio Olympio se sentiu profundamente abalado e amargurado com tanta maldade e obsessão pelo poder. (2008, p. 161-2).

Esses grupos politicamente se revisavam no poder de governar a cidade por muitos anos, desde a sua emancipação político-administrativa em 1912.

Como Milagre se expressou, modestamente, na apresentação de Via-Sacra (1960, p 19-29), referendo-se à semana Santa de 1958, em Divinópolis, quando a mesma aconteceu no Largo da Velha Matriz: “A celebração da Via-Sacra (...) em via pública, era uma feliz inovação, porque despertava um sentimento mais intenso de piedade, e conduzia a um estado de contrição, todos aqueles que se moviam ao longo da caminhada. (p.19)”

A sensibilidade do poeta na fé no contexto de modernização tardia em Divinópolis já nos adianta uma interpretação sobre as dificuldades da urbanização e crescimento populacional para a visão de conjunto pastoral da nossa igreja local, o que se exige uma dimensão de planejamento e ações conjunta com os poderes constituídos com apoio da sociedade civil organizada – facilitando o desempenho e eficiência da ação evangelizadora da Igreja Católica:

Paradoxalmente, hoje, que a cidade cresceu demais, parece que o sentimento religioso de nossa gente se arrefeceu. Pura ilusão! Com ela, cresceu a semente do bem. É que templos e mais templos foram sendo edificados, espraiando-se a população católica em diversos núcleos, ofuscando-se assim a impressão de numerosidade. (p. 20)

Com o livro Via –Sacra, o poeta obteve o título Menção Honrosa, seção de poesia, do Concurso Cidade de Velo Horizonte de 1960, promovido pela Prefeitura da Capital, e concorreu, ao prêmio Bezerra de Melo, da Academia Mineira de Letras. (MILAGRE, 1963, p. 9)

A obra de Sebastião Milagre deve ser vista no bojo de transformações históricas na cidade de Divinópolis nos anos 60. Ele ainda fala na década de 40 e 50, onde o catolicismo local desempenhava uma presença viva na tradição das procissões e celebrações públicas nas praças da cidade, especialmente na Praça Dom Cristiano:

Oh! Aos filhos da Terra do Paráclito, sempre o Largo da Matriz, com suas adjacências, apareceu como o lugar mais poético da cidade (em 1959). Porque foi a li que se embalaram os sonhos da sua mocidade, e as feições daqueles velhos prédios se plasmaram na sua memória. (Milagre, 1960, p. 23). (...) Essas coisas, hoje quase desaparecidas, insignificantes e desperecebidas para os de fora, significam para os divinopolitanos de ontem,l um motivo de recordação e de saudade. Pois bem, esse Largo, agora, estava transformado na Praça Dom Cristiano. (MILAGRE, 1960, p. 24)

A fase moderna da produção milagreana se dá a partir da publicação de poemas como “Divinópolis”, de Gomos da Lua (1963), até os poemas como “Achado Paraíso”, de Doador de Sangue (1990).

O segundo itinerário de seu roteiro foi fortemente marcado pelo Movimento Trovadoresco de Belo Horizonte que chegara à Divinópolis nos anos 1960, como afirma Milagre em Quartetos de Sopro / O Nome dela é Perpétua (1991):

Nos anos da década de sessenta, quando esse gênero poético sacudia todo o Brasil, com uma pujança nunca igualada por outro movimento literário, leu falei “presente”, editando [livros de trovas em Divinópolis], além de ter integrado o Grêmio Brasileiro de Trovadores e a União Brasileira de Trovadores através do numeroso núcleo local, que realizou, com inaudito sucesso, três etapas de Jogos Florais [com envolvimento da ADL e sociedade civil e apoio dos políticos locais); data de então o meu conhecimento pessoal com os maiores trovadores nacionais. Mesmo depois do declínio das atividades trovadorescas, a trova não me abandonou, nem eu a ela. A prova é que editei em 1985 e 1986, os volumes “Almanaque” e “Lápis de Cor”. É claro que trabalhei com outras formas poéticas como (...) o soneto até às mais avançadas realizações do espírito oficinal de modernidade. (MILAGRE, 1991, p. 6)

As trovas como gênero lírico marcará toda a vida do poeta! Entre os decênios de 1960 a 1990, Milagre publicara opúsculos de formato doméstico, gracioso, como: Toma Cuidado, Menina (1965), Pão de Sal (1966) e Pastilhas (1967), Lápis de Cor (1986), Almanaque/ O lírico da Noite (1985), e, ainda, por fim, produz antes de morrer: Quartetos de Sopro / O Nome dela é Perpétua (1991).

Toma Cuidado, Menina (1965), edição esgotada, escrito com seu filho Antonio Weber, 65 anos de idade, hoje engenheiro Químico no Rio de Janeiro, fora torturado pelo DOPS. O patrocínio ficou a cargo de Serralheria São Antônio Ltda; Bebidas Naná S.A; Viação Irmãos Teixeiras Ltda e São Cristóvão Ltda.; Tecidos Sales Ltda; a Transportadora Rodoviário Diniz; Galerias Orion, esse conjunto de Lojas modernas se localiza na Rua Goiás, 387, e Churrascaria e Pizzaria Ângela.

Em Toma Cuidado, Menina (1965), além do tema da sogra, Milagre desenvolve outros temas filosóficos e outros como a criação dos filhos, a morte precoce, a mentira, a abjeção, a melancolia do poeta:

Disse-me, um dia, um vidente:

“Morrerás na flor da idade”

E morri. Porque, realmente,

Vivo, apenas, de saudade... (p. 35)

Poeta, por ser poeta,

Acha sempre triste a vida,

Mesmo quando ela é florida,

De paz e sonho repleta... (p. 41)

Passou a infância a brincar

Com bonecos. Que saudade!

Não vai, agora, estranhar

Os bonecos de verdade... trova Noiva (p. 55)

Casou-se, afinal, a Adélia.

A mãe já estava aflita.

Solteira – quase era velha;

Casada – é nova e bonita... (p. 57)

Se eu pudesse, novamente,

Esta vida começar,

Quanto passo errado, à frente,

Outra vez eu ia dar... (p. 59)

Minha mãe estremecida

Vai, doente, a se findar.

E essa que me deu a vida,

A vida não posso dar. (p. 59)

Quem quiser vida sem dor

É melhor logo morrer:

- Ninguém vive sem amor;

- Ninguém ama sem sofrer... (p. 63)

Pão de Sal (1966), editado pela Livraria Frei Orlando, que não existe mais, é também de edição esgotada. Milagre, em parceria com o filho Antônio Weber, foi uma das obras de distribuição gratuita. O poeta abre a obra com a “Página de Saudade”: “À memória de Deodata Maria Sempreviva, avó e mãe dos autores, falecida em Divinópolis em março de 1966; Frei Odulfo Van der Vat, da Academia Divinopolitana de Letras, historiador, falecido em B. Horizonte em março em 1966.” Também alude a sua mãe no poema “Deodata”, de 21-7-1982, citado em Doador de Sangue (1990, p. 90-1): “Minha mãe foi bonita/ tinha olhos verdes claros/ foi feliz no começo/ e teve 20 filhos:/ um deles morreu louco/ e outro quase foi poeta./ (...) seu corpo resseguido/ jaz a 100 metros de mim./ a sua alma está longe,/ a 16 anos...”

O patrocínio desse livro virou propaganda explícita ao longo da obra como Volkswagem da Mila Divinópolis S/A; Indústria e Comércio de Bebidas Real Ltda;Tecidos Estrela Ltda. e a frota de caminhões do Expresso Divinópolis Ltda

Pastilhas (1967), trovas como ornamento arquitetônico dos edifícios, é uma analogia pra tecer considerações à virtude e ao bem e desferir críticas diversas à hipocrisia. Pastilhas, livro de distribuição gratuita, foi patrocinado pela Viação São Cristóvão Ltda.; Indústria e Coméricio de Bebidas Real Ltda.; Mercedes Bens da Divinópolis Diesel Ltda.; ; e surgiu como homenagem a miss-Divinópolis/67 Marli Rocha:

Miss-Interior! Honra e tanto!

Jovem Marli, Belezópolis.

O que mais te orgulha, entanto,

É seres Miss-Divinópolis. (p. 12)

A graciosidade das trovas, em Pastilhas, nos surpreende a cada momento. Há também a preocupação de denunciar como:

Como ter olhos serenos,

Ser feliz entre os mortais,

Quem e evita os que têm menos

E olha sempre os que têm mais? (p. 25)

Quem a fortuna persegue

Às vezes acaba louco

Porque, quanto mais consegue

Mais pensa que ainda é pouco. (p. 31)

Minha insônia (fica dito)

A dupla causa origina:

A poesia que medito

E a mulher que me fascina. (p. 39)

Neste tédio, mais pareço

Uma bola de bilhar:

Vou jogado ao endereço

Que os outros querem me dar. ( p. 51)

Esta trova de Pastilhas nos remete ao processo de construção da imagem do poeta como melancólico. A metáfora da bola de bilhar endereçada à caçapa sinaliza o modo como o poeta se apropria do discurso de si e dos outros. Desse jogo de forças da poesia na cultura o poeta procura desvencilhar-se inutilmente e sem sucesso. Ele representa um dos elementos-chave de construção da dinâmica sociocultural. Assim como o poeta se apropriou de outros e outras vozes; nós nos apropriamos e o poeta nos diz e nós nos vemos nele de alguma forma como paradoxo e representação na linguagem de sua poética.

Grande tristeza me arrasa,

Vivo em dor, incompreendido.

A minha vida é uma casa

Em que fui mal recebido. (p. 63)

Foi este um homem de bem.

Foi um homem, sobretudo,

Que jamais falou de alguém

Não falou... porque era mudo. (p. 69)

Peço, magoado, mas peço

A Deus, que guarde e proteja

Quem não quis o meu sucesso

E ainda o mal me deseja. (p. 79)

Já descrente e quase tudo,

Pela vida sofro a esmo;

Tão descrente, sobretudo,

Não dos outros, de mim mesmo. (p. 81)

Peço desculpas a quem

Tiver vivido a meu lado,

Que é chato como ninguém

Um poeta mal-humorado. (p. 82)

Lembro-te agora, ó Maria,

Na última trova, no fim,

Para que, no último fia,

Também te lembres de mim. (p. 107)

Almanaque (1985), fragmentos da memória milagreana como uma espécie de manuscrito inacabado, revela uma certa predileção do poeta em compilar um mosaico ou caleidoscópio de experiências e montagens poéticas do cotidiano do poeta, amigos, trovas, sonetos, poemas de versos livres, momentos da vida da cidade em que viveu ou alguns acontecimentos ou traços ou vestígios de viagens no tempo e no espaço do poeta.

O termo almanaque vem do árabe “AL-munãh”, que vai se tornando “almanakh”, dando origem às anotações manuscritas em “astronômicas úteis à agricultura”, ao cuidado com o rebanho, à vida urbana e à organização de festividades, depois compiladas em “calendários” cada vez mais precisos com valor de previsão meteorológica, incluindo culinária variada e um certo humor respeitoso e familiar, próprio com pensamentos filosóficos e da meditação. Com o tempo, neles se incorporaram trechos literários precisos (cf. SÉGUIER, 1955, p. 53).

É possível que a grácil publicação dos almanaques que encantou gerações advindas dos ambientes rurais e interioranos das vilas e arraiais e se deslocou para a busca inquieta ou frenética de novidade e curiosidades dos almanaques na vida complexa urbana. Aí adquiriram os almanaques volume maior com “matérias cientificas”, crítica literária e sem perder a leveza e humorismos, característica básica de um bom almanaque. Com o tempo, os almanaques se especializaram e foram classificados conforme seu escopo: “Almanaque Astronômico, náutico, turismo, literário”. (cf. NOVO AURÉLIO, 1999, p.101)

Nesse sentido, nos anos 1980, o poeta Milagre, como o lírico da noite ou da sua cidade, quis engendrar o seu Almanaque em que se posiciona com trovas e sonetos na discussão de temas leves e cômicos aparentemente, deduzindo e enxertando seu saber, cultura e visão de mundo, com o intuito de ser reconhecido e provocar discussões variadas e polemizar ou não o senso-comum, ou ainda propor uma reflexão mais significativa da vida e da cidade.

Almanaque (1985), publicado em Artes Gráfica Santo Antônio Ltda e com o apoio da ADL, é um livro de 134 trovas. O proprietário dessa gráfica foi amigo e companheiro de profissão de Milagre. Trata-se de Nasrciso de Souza, cujo depoimento breve de o4/08/2009, em Divinóplis, é agora transcrito:

Sebastião Milagre, um homem POLIDO, correto, que tive a felicidade de conhecer e manter contato quando era leiloeiro Oficial, o admirava pelo cuidado que tinha em apregoar o bem que estava sendo leiloado para que o mesmo recebesse um valor justo.

O poeta como trovador parte do conceito de trova, para versejar a vida e seus (des) encantos. O manejo da trova articula-se ora com seu fundo cômico e filosófico, ora com a discussão ou ratificação da moralidade ou sabedoria popular em questão. Elas nos remetem a questões universais dos provérbios ou nos situa na indagação do sentido da vida.

Brasileiro é bicho pobre

Com mania de grandeza:

Não é, mas finge ser nobre;

Não tem, mas finge riqueza. (p 14)

Meus lábios estão rachados,

O frio é negócio mau:

Dos remédios indicados,

Um é infalível: Cacau. (p. 14)

Ouve, Maria do Carmo:

O teu olhar transparente

(se um dia puderes dar-mo)

Vai curar minha alma doente? (1985, p. 28)

Na primeira trova, Milagre critica a hipocrisia ou reforça o estereótipo do ser brasileiro, uma ambigüidade de que pervade o discurso poético dependendo do ponto de vista a qu o crítico se apega. Ou ele se endossa ao ufanismo nacionalista ou desmascara a ideologia verdeamarelista de Cassiano Ricardo pelo prisma do primitivismo modernista de cunho oswaldiano, são duas formas de ver e descobrir o Brasil.

Os lábios rachados, pretexto para falar de Cacau, evidencia os subterrâneos de uma crise ancorada na vida do poeta. Um olhar transparente como provocação idílica e conotação de uma libido que emerge para interpelar o coração do poeta que se sente a dor da saudade e a melancolia.

Assim, Milagre disponibiliza uma nota em que comenta o apelido de Maria do Carmo Mendes Milagre: “[Ela] tem o apelido familiar de Cacau, e cacau é um produto que alivia os lábios dos efeitos do frio; a trova foi feita no tempo de namoro.” (p. 44) Esse namoro levou ao casamento de ambos em 1976. Eles se conheceram em uma festa de família, em que Milagre se apaixonou de novo, vendo os olhos de Cacau, semelhantes de certa feita ao de Lilia. Na verdade, foi bom esposo para ambas conforme ao parecer de Irene Silva, a considerada Rainha do Teatro Divinopolitano. Irene Silva me concedeu entrevista, afirmando que Milagre, após o falecimento de Lilia, entregara-se à melancolia e à solidão.

Em Almanaque (1985), Milagre se refere ao episódio de sua perda prematura da mulher amada, não somente em Gritos, mas em toda sua obra, como bem representa a melancolia milagreana:

Estranha, a tua mulher,

Variável, como ela só:

Se, agora, em beijos te quer,

A seguir, reduz-te a pó. (1985, p. 40)

O esposo de Irene Silva, sobrinho de Milagre, que possuía o mesmo nome do poeta, também perdera esposa: ambos tinham o costume de irem visitar sempre o cemitério e lamentar a morte de suas esposas precocemente falecidas. Eis o mal dos Milagre, comenta a mesma Irene Silva, em entrevista cedida a mim em 07/09/2009. Essa compulsão com apelos ao Mal do Arquivo nos remete a Derrida (2001, p. 56), quando se afirma que as memórias emergem-se da “espessura sem fundo desta inscrição abissal sob a nova pela de um livro consignado.” E, ainda, se pode indagar a razão do arquivo e como reinventá-lo ou interpelá-lo de modo construtivo:

O arquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo.(...) quando não disfarçá-lo, maquiá-lo, pintá-lo, imprimi-lo, representá-lo no ídolo de sua verdade em pintura. Uma outra economia está assim trabalhando: a transformação entre esta pulsão de morte e o principio do prazer, entre Thanatos e Eros; (...) esta aparente oposição dual dos princípios, dos arkhai (...). A pulsão de morte não é um princípio [em si]. Ela ameaça de fato todo principado, todo primado arcôntico, todo desejo de arquivo. E a isso (...) chamaremos de mal de arquivo.” (2001)

Assim, a obra milagreana é metaforicamente projetada como um cordão umbilical entre as memórias do passado nos arquivos disponíveis do presente do pesquisador. Cada livro, cada fragmento da memória pode deixar fluir de suas dobras e vestígios. O mal dos Milagre está em uma musicalidade nostálgica ou na perda do amor precoce e irremediável sem remédio, que os obriga rever o passado no presente da cripta da amada, em que Eros e Tanatos se vão imbricados necessariamente. As cidades dos mortos fazem fronteira com as dos vivos!

O coveiro do cemitério em que fora sepultada a primeira esposa me disse que o poeta Milagre era calmo, introspectivo, calado, meditativo... Milagre visitava semanalmente o cemitério! Ele se lembra de quando sepultou a ambos: Lilia e Milagre. Conversando com Cacau, a mesma me afirmou que Milagre fora gentil, bom esposo, que vivera bem com o poeta. Sentia-lhe a tristeza da alma, e investigando, Cacau descobriu que a leitura de Augusto dos Anjos estava provocando aquela melancolia constante. Ela pediu que não o lesse mais. Sabe-se que esse poeta marcara muito a poesia milagreana. Em 2004, Cacau me passou todos os livros que ainda tinha em casa que foram de Milagre. Ela me disse que Milagre escreveu vários poemas e a ofereceu. Creio que, parte desses poemas, estão em Sozinho na Multidão (1979), pois este livro foi claramente oferecido pelo poeta à sua segunda esposa, com quem viajara e vivera desde 1976 até falecer em 1992. Viveram, em segunda núpcias, por 16 anos.

Retomando ao início do Almanaque (1985), Milagre compila singelas trovas como a sua definição:

Trova – poesia do povo

Tão fácil de decorar;

Pequenina como um ovo,

Mas, de grande paladar. (1985, p. 9)

Trova é canto popular;

Mas, a perfeita é incomum;

Fazer trova lapidar

Não é para qualquer um. (idem)

Trovas – pílulas de choque;

Se espargidas a granel,

Dão, nas mentes, um retoque

Na base de flor e mel. (1985, p. 11)

A gente nunca se esquece

Da cidade em que nasceu:

“Divinópolis” – é a prece

Que vive no lábio meu. (1985, p. 13)

Essa trova foi feita pelo poeta quando morava e estudava em Belo Horizonte em 1941.

E nos Jogos Florais, denominação dada pelos trovadores em todo Brasil nos anos 1960. Milagre participou do tema Bondade e fez a seguinte trova, em Almanaque (1985):

Se neste “Jogo de Flores”

Eu for premiado (quem me há-de!)

Junto aos grandes trovadores,

Que delícia! Que bondade! (1985, p. 25)

Se os poderosos da terra

Cultivassem a Bondade,

Não haveria mais guerra

Flagelando a humanidade. (idem, p. 36)

Na verdade, em Quartetos de Sopro / O Nome dela é Perpétua (1991), no prólogo, é uma “Homenagem a Aparício Fernandes” e aos trovadores do Brasil, já falecidos e vivos. Aparício Fernandes não só foi o representante do movimento trovador em Minas como seu divulgador incansável. Como não bastasse, movido pela amizade aos poetas divinopolitanos, soube dedicar-lhes, inclusive à poesia de Milagre, vários artigos na imprensa falada e escrita de Belo Horizonte e do Rio Janeiro. Um das provas de sua dedicação à poesia mineira está no livro Nossas Poesias, publicado na Folha Carioca Editora, em 1974. Trata-se de uma referência a que aludem os acadêmicos como Jadir Vilela com o sentimento de valor e orgulho conquistado.

Após essa homenagem merecida, o poeta como autor de Quartetos de Sopro / O Nome dela é Perpétua (1991), continua seu prólogo com uma voz de “Adeus”. O poeta afirma ser seu último livro de trovas e se despede de se público-ledor com as seguintes palavras:

Desde que comecei a escrever nos idos de 1940, trova me acompanhou. (...). Nunca tive desejo de projetar-me fora de Divinópolis; aqui, pelo contrário, tenho feito o que posso em prol da literatura. Membro criador da Academia Divinopolitana de Letras, participante do lance trovadoresco e integrante do Movimento Literário Agora, dispersei-me com publicações em jornais e revistas e na fala radiofônica, sempre desinteressado de qualquer lucro financeiro. Digo, alegre, que jamais vendi um livro meu. Agora, fecho a série de livros de trovas. Sempre, no entanto, que me ocorrer oportunidade para fazer uma trova, não negarei a raça, porém, toda produção posterior ficará inédita. Tudo tem sua hora na viva. Agradeço aos trovadores divinopolenses e aos de outras localidades do Brasil, o incentivo, o acolhimento e o carinho a que me dispensaram. Ao público que me honrou lendo minhas trovas, minha comovida gratidão. Divinópolis, MG, em 1990. O Autor.

Como se percebe da leitura da citação acima, Milagre foi feliz por concluir ou poder ter concluido essa fase de sua vida de modo contundente e eficiente. São 51 anos de dedicação à poesia em sua variedade possível, historicamente construida com criatividade e desejo de renovação e conquista de seu público-ledor. É preciso, contudo, considerar que ainda não havia a febre ou obsessão de empresas pratrocinadoras de eventos e a força da mídia não assumia as dimensões que hoje nos domina quase inevitavelmente. Não há em Milagre a sedução das forças de lucro – canto da sereia do mercado editorial. O poeta estrategicamente e politicamente consegue com aval da política local e entidades da municipalidade certo concerto de suas atividades de divulgação e aceitabilidade de sua imagem que se torna cada vez mais popular e forte a partir dos anos de 1960. Se começara a escrever nos anos de 1940, ainda o jovem Milagre era um desconhecido e tímido escritor, embora aceito na comunidade pelo seu trânsito como escrivão de polícia civil. O fato mesmo de membro-ativo da ADL e partícipe do movimento trovadoresco, que redundou na criação dos Jogos Frorais, na primavera de várias cidades mineiras, inclusive na capital, foi um dos fatores de sua real projeção, ao lado de outras iniciativas em conjunto com outros jovens escritores e poetas da época que também começaram sua produção e projeção com os lançamentos de livros nos clubes e bibliotecas públicas da cidade de Divinópolis. Esses motivos aliados à atualização desejada e até incitada pelos eventos culturais como os Movimentos de Arte I e II, nos anos 1968 e 1969, com parcerida da UDE e UNE, que tinham ideais revolucionários dos Movimentos Estudantes locais e nacionais, justamente no flagor e irrupção da organização da sociedade civil contra a detadura militar que deflagou em março de 1964.

Alguns amigos vivos de Milagre como Mário Eutáquio Ferreira, franciscano por opção e revisão de texto e obras em Divinópolis, e José Lúcio, da Gráfica Sidil, onde Milagre publicara alguns de seus livros, foram nos anos 1960, jovens estudantes e integrantes da UDE – União Divinopolitana Estudantil. Mário Eutáquio Ferreira, lembrado por Milagre em O Lírico da Noite (1985) e na introdução de Doador de Sangue (1990) fora o responsável e fundador da APLAN – Arte e Planejamento de Publicidade, tendo organizado e revisto O Mundo e O Terceiro Mundo (1981), um dos livros mais críticos de Milagre, que se posicionava na epoca e denunciava os desmandos da ditadura e seus efeitos na economia brasileira e a dívida externa, os impactos ecológicos, as consequencias da Guerra Espacial e Guerra Fria, as violências do imperialismo no mundo, especialmente na África. Isso levou Domingos diniz, confirmar em carta de 2009, que Sebastião Milagre era um poeta divinopolitano do terceiro mundo. Milagre procura refletir a travessia do antigo ao moderno, a tradição e a globalização. Para tratar de temas tão diferentes, Milagre fora interpelado pelo movimento paradoxal da modernidade tardia em Divinópolis; criara-se uma poética diferenciada e atual frente aos demandas de uma sociedade em constantes transforamções culturais, de políticas advindas de pressões internacionais que interferira na gestão do local e da cidade em processo de forte modernização. O humor irônico é um dos ingrediente que faz parte da lírica milagreana para dar conta desse bojo de eventualidades e temporalidades, de praticas sociais, entre elas a confecção de uma lírica moderna, confindo-lhe valor, dignidade e criatividade mesmo nos temas vindos do cotidiano da cidade e da política, segundo parecer de Mário Eutáquio Ferreira. Este ainda afirmara que “o humor é o principal instrumento de crítica social”, pensamento que é reproduzido em introdução de Doador de Sangue (1990).

Mário Eutáquio Ferreira e José Lúcio Alves (homenageado pelo poeta em vida, na introdução de A Igreja de João XXIII, de 1986) e outros, mais tarde, aceitavam as intervenções e os conselhos do poeta e escrivão de Polícia Civil. Eram tempos que exigiam cautela e prudência. As torturas aconteciam inesperada e abruptamente. Inclusive, o próprio filho do poeta fora torturado pelo DOPS em Belo Horizonte, exigindo viagens e recursos do pai e poeta nesses momentos difíceis de negociação com o governo militar. Se o modo de agir político de Milagre já se restringia à estratégias do escritor mineiro conservador e prudente, agora muito mais. A dor era intensa! O pacto celebrado entre os Jovens do Agora era um combate indireto e sem trela à ditadura, absurdo do autoritarismo no Brasil. No livro de Milagre, O Homem e A Caixa Preta, em 1982, em que se avalia poeticamente esse mundo de mudanças radicais e rápidas, à luz da Divina Comédia, há não só poemas de beleza de versos livres como questionamentos sobre a fobia apocaliptica decorrente do uso da energia nuclear como acontecera na Segunda Grande Guerra. O livro descreve um artigo do Jornal do Brasil, de 05 de abril de 1981, caderno B, p. 2, de José Carlos Oliveira, cujo texto “O resólver e a Caixa Preta” é motivo de preocupada reflexão de Milagre quanto ao rumo tecnológico e militar do mundo, dividido entre Reagan e o presidente russo. O clima tenso da Guerra Fria é paralelamente vista no atentado de Jodie Foster, linda garota da Universidade de Yale, que rasga a carta de John e rompe com ele. Este decide matar o presidente americano para ter a atenção da garota, justamente quando sai da Casa Branca. Reagen vê no episódio a arbitrariedade gravissima que pesa sobre o mundo, uma figura ameaçada por dois potenciais assassinos da caixa preta. Este artigo é comentado por Milagre à medida que, poeticamente, elabora seus poemas como “Ladainha em Novembro de 1979”: “Os próximos 10 minutos; podem ser os derradeiros/ da história da humana-idade./ com o nuclear poderio/ se o quisesse poderia;/ basta o iangue desejá-lo/ basta o russo desejá-lo./ (...) à merce de um gesto/ dessas mãos periclitantes/ (...) nunca h/ouve tanta ameaça.” (MILAGRE, 1982, p. 36-7)

O mundo todo reagia com os eventos difusos no mundo, concomitantes com o maio de 1968 na França. Alguns críticos políticos já se posicionaram quanto a episódios que levam à sociedade brasileira a se radicalizar contra a ditadura mesmo antes de maio de 1968. Deve-se atinar para o fato de que os Jovens do Agora não eram os mesmos do movimento estudantil divinopolitano, embora houve eventualmente e por motivos comuns do combate indireto à ditadura, alguma troca de informações e mútua participação, ou apoio cultural signficativo entre eles. Os Jovens do Agora formavam um círculo de amizade especial com o poeta. Eram com o poeta, empreendedores críticos e escritores engajados. Seus integrantes foram Lázaro Barreto , sociológico e escritor, Dr. Fernando Teixeira, advogado, poeta e acadêmico da ADL, e Oswaldo André de Melo, poeta, escritor com artigos no Suplemento Literário. Não se pode esquecer a presença feminina de Neide Malaquias que integra a discussão dos Jovens do Agora. Trinta anos depois de suas investidas na imprensa celebravam a conquista do Jornal Agora nos tempos da exceção do regime militar. Na epoca, Osvaldo André escrevera esse artigo, ponderando e enaltecendo a iniciativa dos Jovens do Agora em plena ditadura. Em 07 de março de 1968, reconhecendo a iniciativa de uma juventude letrada e inquieta com ardores de vanguarda, que fizera a diferença naquele momento histórico dos movimentos estudantis e literários, Milagre e outros acadêmicos escreveram um oficio ao governador Israel Pinheiro e aos dignatários da Imprensa oficial que reconhecesse o pioneirismo do movimento agora e o integrasse uma comissao de consulta das demandas do povo mineiro em Divinópolis.

Também é significativo outro artigo de Mari Stella Tristão, no Estado de Minas, em 27/08/69, intitulado Semana de Arte de Divinópolis, que não só apresenta comentários sobre a programação desse evento como também apresenta o leque de celebridades do mundo da literatura e poesia, da arte, do teatro, com resultado palpáveis e aceitação nacional. As personalidades famosas foram Ana Hatherly, Lais Corrêa, Afonso Ávila, Bueno de Rivera, Moacir Felix, Fábio Lucas, Jaguar, dentre outros. Sebastião Milagre e o acadêmico Vinicius Peçanha havia lançado o disco do “Hino [Oficial] da FADOM” – Faculdade de Direito do Oeste de Minas, em 1969. Bessa (2003) recebe de Vinícius Raimundo Peçanha, que musicou o Hino da FADOM, de Milagre. O hino foi gravado pela Gravadora Bemol de Belo Horizonte, executado pelo Batalhão de Guardas da Polícia Militar de Minas Gerais, cantado pelo coral da Igreja do Bairro Santa Teresa de Belo Horizonte. Logo depois, saiu o disco de vinil, compacto simples no ano de 1970, reproduzido pela Discobel. Há cópias dele no Museu do Conservatório da UFMG e no Museu de Música da UFMG e no Museu Histórico de divinópolis, segundo testemuinha o mesmo Vinicius Peçanha. Esses dados estão em Bessa (2003, p. 32). Veja um fragmento da letra do Hino Oficial da FADOM:

... Sem da justiça a porfia

Um caos a vida seria. (...)

Que em prol da paz se levante,

Mais do que a força, o Direito triunfante. (2003, p. 30-1)

Outro compusera em vida, Milagre fez o “Hino do Guarani Esporte Clube”, que aparece em Doador de Sangue (1990). Milagre, em outubro de 1989, fez o hino e uma lista do primeiro Time de Futebal do Guarani: Faria, Louro, Mingote, Clóvis, Durval e Rabelo. Didico, Dedé, Guará, Pacu e Vinicius: reserva: zagueiro Cueca e ponta esquerda Ita. Veja o estribilho:

Vermelho e branco

Trago no peito

Como farol!

Sou Guarani!

Nunca me estanco

No duro pleito

Do futebol!

Sou Guarani! (MILAGRE, 1990, p. 58)

É preciso dizer uma palavra sobre o estudo de arquivo desse período da História de Divinpopolis, cujos documentos em parte está esquecida ou divusa na imprensa local, aguardando estudo sobre sua relevância como memória cultural dos movimentos literários que aconteceram no momento fértil e árduo da ditadura. Um dos estudos desse material está compilado por Bessa (2003) sob o título de Jornal Literário Agora: texto e Ressonância. Aí se encontram rica referência aos poetas desse período, sua produção e circulação na imprensa, como também recortes de jornais, palestras e correspondência.

Como a crítica divinopolitana reconhece, a história da literatura moderna de Divinópolis compreende o Movimento Literário Agora (agosto de 1967 a julho de 1969) e o Tabloide DIADORIM (nov. de 1971 a out. De 1973). O Agora constitui 12 números em 1967, projetando escritores locais como Milagre. Os dois primeiros anos de circulação esteve sobre a responsabilidade de Lázaro Barreto, seu fundador. Esse empreendimento abraçou outros grupos expressivos como a Voz dos Novos de Minas (grupo que incluia a participação de Oliveira, Itapecerica, Pirapoora, Cataguases, Guaxupé, Patos de Minas, Juiz de Fora e Belo Horizonte) e alguns escritores do Brasil como os grupos de Bahia e do Rio de Janeiro. Dai ser interessante para a investigação de nossa pesquisa sobre o Roteiro Poético Mmilagreano as cidades pelas quais, provavelmente, Milagre tenha tido de alguma forma contato e viajado, pelo menos, uma vez em vida.

Houve o incentivo de escritores nacionais e internacionais consagrados como Moacir Felix, Fábio Lucas, Lais Corrêa de Araújo, Jorge Amado, Guimaraes Rosa, Murilo Rubião, Carlos Drummond , Ana Hatherly e Geraldo Sobral, como instância crítica e divulgadores desses jornais regionais de vanguarda no exterior como na Inglaterra, Portugal, Argentina, Uruguai, Caracas e Chile. Houve intensa organização de três encontros de Poesia; duas Semanas de Arte de Divinópolis, divulgação da escultura primitivista de GTO – Geraldo Teles de Oliveira, um Festival de Música divinopolitana; promoção de Happening Poéticos pela Fiat e Gandart, em Itapecerica e Divinópolis e recitais de poemas e montagem de peças de teatro sob a orientação de Oswaldo André de Melo. Em 25 de setembro de 1979, Oswaldo André de Melo fez uma revisão do Movimento Agora, um roteiro de palestras, desde a sua circulação nos anos 1960. Nesse contexto de 1969, houve lançamento de livros como Gritos, editado em DIADORIM, de Sebastião Bemfica Milagre e A Lapinha de Jesus, de Adélia Prado e Lázaro Barreto, editado esse pela Editora Vozes.

O DIADORIM, uma segunda fase da literatura divinopolitana, circulou no Jornal Franciscano “A Semana”, o qual compôs 17 números, lançando 92 autores nos anos 1950 a 1960. Fora fundado por Frei Márcio e Lázaro Barreto. Muitos desses autores tiveram textos e poemas publicados nos Suplementos Literários do Agora e Suplementos Literários do Estado de Minas Gerais.

Não só isso, no bojo de transformações sociais e a crise do desenvolvimentismo de viés autoritário da ditadura e seus efeitos como a censura à imprenas com seversas torturas legitimadas pelo AI-5, acompanhadas pela suspensão abrupta dos direitos civis e das atividades políticas do congresso nacional, o Brasil vive momentos de exílio de intelectuais e a reação de grupos de guerrilhas; sumiço de brasileiros em plena copa deo mundo em 1970 e 1974.

Houve o milagre econômico nos anos 1970, que favoria as classes ricas e o empresariado cuja especulação e vantagens eram decorrente do sacrificio do povo brasileiro sujeito à inflação. Durante o período desenvolvimentista de nossa economia, o Brasil continua endividado e o abismo entre ricos e pobres ainda escandaloso. Milagre consegue em poemas e trovas retratar as dificulades políticas e crises na economia.

Contextualizando esse episódio da cena brasileira da ditadura e a economia quando da mudança de moeda. Isso foi registrado por Milagre:

Com a mudança da moeda brasileira, de cruzeiro para cruzado, mil cruzeiros passaram a valer um cruzado; parece que o rico ficou pobre, mas não ficou; os procos foram congelados.

Tiveste muito dinheiro;

Estás, agora, arruinado,

Os teus milhões, em cruzeiro,

Viraram pouco, em cruzado. (MILAGRE, 1986, p. 63)

E milagre em Pastilhas (1967), não deixa por menos, desfere sua crítica à nova moeda - o Cruzeiro:

Sofre quem gosta de cobre

Como o Felício Ribeiro

Que era rico e fica pobre

Com a mudança do cruzeiro. (p. 62)

Em tom de humor, milagre cria alguns versos livres sobre esse tema do azar, o rico ficar pobre, o tal de “Pedro Cem”, poema inserido em Gomos da Lua:

Qualquer um que hoje é rico,

Amanhã poderá ser pobre.

Há inúmeros casos

Daquele Pedro Cem,

Que já teve tanto ouro

E, hoje, coitado, nada tem... (MILAGRE, 1963, p. 61)

O contexto cômico, contudo, relativiza a riqueza! Essa graciosidade até beira à expontaneidade faz poeta Milagre um escritor predileto em diversos jornais, além de ser seu incansável divulgador como o Movimento Literário Agora, que deu origem ao Jornal Agora de Divinópolis, ainda em plena atividade semanal de publicações. Local em que os cronistas e escritores ainda têm possibilidade de publicar seus artigos diversos. Outro fator de projeção de Milagre foi como exímio declamador de poemas de sua autoriria ou de outrem. Embora seja de índole introvertida, discreto e observador, o poeta se revela capaz de conquistar e animar os seus contemporâneos com sua declamação. Essa imagem do poeta é cristalizada e confirmada pelas palavras de Adélia Prado, em entrevista realizada por Bessa (2003):

A lembrança do poeta Sebastião Bemfica Milagre é para mim a de uma pessoa que dificilmente se poderia imaginar enfurecida ou rancorosa. Sempre cordial, gostava de promover audições musicais em sua casa. Seu perfil é mesmo o que chamamos do amante das artes. Seus livros, muitos, escrevia-os e generosamente os distribuia, movido apenas pela necessidade de ser lido, partilhar sua sensibilidade. (...) Quem quisesse um leitor emocionado da poesia buscava Sebastião Milagre. Assim me lembro do poeta. (BESSA, 2003, p. 12-3):

Pela fala de Adélia Prado, o poeta é um gentleman e um animador cultural da poesia em sua cidade. Capaz de oferecer livros de poemas aos amigos e fãs gratuitamente. E o entusiasta dos eventos a favor da poesia e sua viva declamação.

Embora Milagre houve publicado os dois primeiros livros Via-Sacra (1960) e Gomos da Lua (1963) em Belo Horizonte, todos os outros froam publicados aqui. Via-Sacra foi o único livro que venceu em vida, e a renda revertida às obras sociais e pastorais da Igreja local, consoante a mesma opinião de Milagre. Via-Sacra (1960) foi enviado ao Vaticano e tido na imprensa local como um dos seus melhores livros, ao lado de Gritos (1972) e Doador de Sangue, esse último tão lido e encontrado nas escolas estaduais e municipais de Divinópolis desde 1990.

Assim, pelas trovas, sonetos e outras expressões estéticas circunstanciais ou epocais, Sebastião Milagre conquista um certo espaço de popularidade com suas declamações e um público-ledor estável. Sendo, pois, reconhecido em Divinópolis e na região do Centro-oeste como o Poeta Maior, primeiro para Carlos Altivo (1992), depois na compilação de Pedro Pires Bessa (2003), cujo livro é Sebastião Bemfica Milagre, O Poeta de Divinópolis (2003).

Milagre em Almanaque / O lírico da Noite (1985), em Notas Prévias situa sua produção de trovas e os motivos que o levaram a singela comunicação lírica pela trova:

Passados os áureos tempos do movimento trovadoresco no Brasil, durante os quais publiquei “Toma Cuidado, Menina”, “Pão de Sal” e “Pastilhas”, continuei a cultivar o gênero, fazendo trovas sempre que havia oportunidade e inspiração. (...) resolvi fazer delas um volume animado com as bondosas palavras de Domingos Diniz que, na apresentação da minha publicação “O Mundo e O Terceiro mundo”, assim disse: “Sebastião Milagre vai da trova ao verso livre, do soneto ao concretismo, saindo-se muito bem em todas as formas de expressão poética”. (MILAGRE, 1985, p. 3)

E Milagre ainda se justifica em “POESIA DE HOJE”:

O mundo de hoje é o da pressa. Não sobra tempo para nada. Negócios urgentes; (...) obrigações inadiáveis; horários para tudo. O resultado é essa agitação, esse formigamento nos conglomerados humanos. Mas, o homem precisa, entre outras coisas, do sagrado alimento da poesia. (...) e com ela conviver para resistir aos desgastes do cotidiano. E, face a essa contingência, ele não tem tempo para deglutir os longos poemas e os versos herméticos, mesmo que sejam de autores preferidos.

Nesse contexto de turbilhão de necessidades, uma das possíveis presenças à poesia no cotidiano é apontada por Milagre: “É aí que surge a trova, poema de quatro versos apenas, que a gente pode ler ou fazer em todo lugar e a qualquer hora. É fácil demais ler ou fazer a trova; gasta-se pouco tempo.” (MILAGRE, 1985, p. 3-4)

E Milagre, então, exemplifica tranqüila e singelamente o modo de fazer trova:

Trova – poesia de quem

Não tem minuto a perder;

No avião, na fila, no trem,

Pode-se ler ou fazer. (MILAGRE, 1985, p. 4)

No quadro abaixo, pode-se ter uma visão de conjunto dos temas dos poemas de Lírico da Noite (1985) e a quem são eles endereçados, inclusive o ano de sua publicação, quando possível.

81 “Na música ou na poesia/ ou no amor das criaturas/ não ficarei perpetuado; /

- Memória, nome ilustrado, /Isso tudo é fantasia.

“Fim de O lírico da Noite.” Divinópolis

Entre 1963-1992, procurou um diferencial nas estéticas modernista e vanguardista. Sua observação é pertinente à medida que Milagre constrói seus poemas como memória de suas viagens no tempo e no espaço, no passado retomado no presente, como está tematizado nesta trova nº 24, de Lápis de Cor (1986):

Quem é que não tem saudade,

Quem é que não tem lembrança

Dos tempos da mocidade

Ou dos tempos de criança? (1986, p. 37).

O segundo itinerário é contemplado pelas “Trovas de Cabo Frio” (1986, p.6-29) e “Trovas de Poços de Caldas” (1986, p. 30-43) em Lápis de Cor (1986). Na verdade, as trovas de Lápis de Cor vêm depois das trovas de Cabo Frio e de Poços de Caldas. Lápis de Cor, portanto, tem três partes: as trovas de Cabo Frio, as Trovas de Poços de Caldas e o Trovas sobre a sogra (1986, p. 46-66). No texto milagreano de suas NOTAS SOBRE AS TROVAS de Lápis de Cor, Milagre justifica a escolha desse tema:

Na década de 1960, por ocasião dos Jogos Florais em Divinópolis, houve, um dia, reunião de trovadores, inclusive Luiz Otávio e Colbert Rangel Coelho. Cada trovador escolheu, por brincadeira, o seu tema predileto. Por último, ficou para o autor desse volume. Qual o tema para ele? E, entre gargalhadas, ficou decidido que era... a Sogra. Eis porque, ao cultivar o gênero trovadoresco, o autor sempre aborda esse controvertido tema. (MILAGRE, 1986, p. 65-6)

Também em 1966, em Pão de Sal, Milagre já fazia referência, na devoção de Santo Antônio em trovas intituladas “Quando os Santos não podem”, às dificuldades da vida familiar, ao casamento e ao tema da sogra.

O meu problema, no entanto,

É um caso sério, um dilema.

Dá um jeito, Grande Santo,

É de sogra o meu problema. (p. 62)

Pra tudo em santo existe

- Este é velho, aquele é tenro –

Menos par o caso triste

Das rixas de sogra e genro.

E Santo Antônio então responde:

Quem vive na terra abjeta,

Não vive só de carinho:

Não há ventura completa,

Nem há rosa sem espinho. (p. 65)

Selecionamos essas trovas de Lápis de Cor para perceber o tema da Sogra na escrita milagreana.

A vida é uma estranha cousa,

Nos presenteia e nos logra:

Para nos dar uma esposa

Tem que nos dar uma sogra. (1986, p. 53)

A sogra é custosa um tanto

Mas, no amor, a filha medra.

Assim, “por causa do santo,

Sacrifico e beijo a pedra”. (idem, p. 55)

Veja que, nesse opúsculo, as trovas foram numeradas pelo poeta! Na trova 1: O poeta com Maria do Carmo Mendes vão a esses lugares nas férias em Cabo Frio, no Espírito Santo. Ficaram no Edifício Areia Branca por 10 dias, fizeram um turismo pela Região dos Lagos, pela Praia do Forte, Morro da Guia, dentre outros lugares:

Eu e Maria nos vamos

A Cabo Frio, eh lugar!

Neste passeio, esperamos.

O nosso amor aumentar. (1986, p. 6)

Na estrofe 55: Aproveitaram e foram ao Rio de Janeiro! Vai a Búzios!

Fomos neste feriado,

Ao Rio, pela 1001:

Que beleza o Corcovado!

O Rio é um sonho incomum. (1986, p. 19).

Na estrofe 1, o poeta destaca que a viagem a Poços de Caldas, em Minas Gerais. Ficaram no Príncipe Hotel. Eles sobem de teleférico ao Cristo Redentor, a Cascata das Antas, a Fonte dos Amores. a Represa Bortolan, a Basílica da Virgem Rainha, um grupo de seresta e uma indústria de Cristais.

Viemos de Poços de Caldas

Hidro cidade mineira

Que, entre montanhas e faldas,

É uma estâncias condoreira. (1986, p. 32).

Na estrofe 2, o poeta singelamente evoca os motivos de sua viagem a Poços de caldas. É oportunidade de ter acesso à cultura de outra cidade, mas existe uma condição interior fundamental:

Quando a gente está viajando,

As coisas ficam mais belas,

Mais cultura se alcançando

E da alma abrindo às janelas. (1986, p. 32).

Milagre, sensível às questões de ecologia, afirma na Trova 18: “Rio das Antas, é urgente, despoluir as suas águas...” (1986, p. 36). E observa o verde de Poços de Caldas, assim:

O verde desta cidade

É um verde sem proporções

Que às almas dá claridade

E otimismo aos corações... (1986, p. 40)

Em Almanaque (1985), Milagre aponta a escrita de si como o outro – alter ego freudiano – fala em si; ou implica a fala sobre o outro: “Muitas trovas e poesias referem-se a mim, outras, a acontecimentos. Foram resguardados nomes. (...) Desta forma, procurei manter a característica do poeta, que ora fala de si e por si, ora de outrem e por outrem.” (1985, p. 5)

Com quem Milagre dialoga? Para responder a essa indagação, ao percorrer a obra milagreana, deparamo-nos com vários poemas, sonetos cujo destinatário são os amigos de Milagre: Ataliba Lago, homenageado com o soneto “Naufrágio de Poesia” em Sozinho na Multidão (1979, p. 43)); Gentil Ursino Vale em “Deserção para o Mundo da Arte”, soneto em Sozinho na Multidão (1979, p. 67); a Carlos Altivo no soneto “Estrelas” em Sozinho na Multidão (1979, p. 87);

“Paraíso Perdido” em Sozinho na Multidão (1979, p. 93)

Por que homenagear amigos com sonetos? Porque naqueles anos era muito comum geração inteira de poetas construir os sonetos com certa facilidade e endereçá-los a amigos e a amadas. Era status de valor e valorização à poesia camoniana e parnaso-simbolista. Sabe-se que alguns dos modernista chegaram a cultivar os sonetos como Guilherme de Almeida, Murilo Mendes... E, tardiamente, até há a fase mística de Vinícius de Moraes, em que compila vários sonetos famosos como o “Soneto da Fidelidade”.

Sozinho na Multidão (1979) é como uma parte anterior de Arquivos- Poesias (1987), ambos com poemas desde os anos 1940.

O soneto “O Domador de Ondas” é para Frei Metelo Greeve, antes de ir para São João Del-Rei em Sozinho na Multidão (1979, p. 57);

Milagre faz um soneto para o Dr. Simão Salomé de Oliveira em Sozinho na Multidão (1979, p. 35).

Corgozinho (2003) afirma Nas Linhas da Modernidade que :

O moderno como portador do novo ou contraposição ao antigo (...) demarca uma mudança de mentalidade, no modo de vida cotidiano, na economia e política. Os indivíduos buscam o entendimento de si e do mundo na modernidade, sem tutelas externas.” (2003, p. 278)

Sensível aos paradoxos urbanos e existenciais, Milagre adotara um modo novo de fazer poético em Divinópolis a partir de 1963, quando lançara Gomos da quando lançara Gomos da Lua. Seu livro de ruptura é Gritos (1972).

Milagre, Lázaro Barreto, F. Teixeira e Osvaldo André de Mello optam pelas vanguardas na Revista Tendência e no Suplemento Literário MG.

Os “Jovens do Agora”, contra a ditadura, fazem alusão ou traduzem poemas estrangeiros no Jornal Literário Agora, conforme BESSA, Pedro Pires. Jornal Literário Agora: textos e Ressonâncias. BH: Imprensa Oficial de MG, 2003, 106 p.

Ana Hartherly, em 1969, esteve no Movimento de Arte II. Frei Márcio e Lázaro Barreto fundam o Diadorim em 1971. Em 1972, Milagre lança Gritos em Diadorim.

Camilo Lara (2003) publica Sonetos de Milagre e sintetiza um dos motivos da efervescência cultural em Divinópolis nos meados dos anos 1960 (2005):

A partir das primeiras publicações de poemas sobre a Poesia Experimental Portuguesa no Suplemento Literário de Minas Gerais, e das visitas dos poetas E. M. de Melo e Castro, a partir de 1966, e de Ana Hatherly, em 1969, a Belo Horizonte, a troca de informações e material entre os poetas mineiros e os portugueses se intensificou. Assim, era natural que os escritores e artistas de Divinópolis demonstrassem interesse de estreitar relações com os seus contemporâneos além-mar... (2005, p. 29)

Quanto à sua escolaridade e formação intelectual inaugural como poeta, Milagre esclarece em “NOTAS SOBRE ‘BELO HORIZONTE”, nos tempos do bondinho, compilada Quartetos de Sopro (1991):

O autor estudou no “Grupo Escolar Silviano Brandão” e no “Colégio Arnaldo”. A rua “romântica era a Diamanatina. A palavra “pivete” é empregada em seu legítimo significado, substância aromática. Luci, Odila, Negrinha e Raquel forma, em meninas, namoradas do autor, de longe. (MILAGRE, 1991, p. 30)

E Milagre transforma essa informação em trova, a começar a contextualizar sua vida no poema BELO HORIZONTE (1991):

Belo Horizonte, a cidade

Que eu amei, muito euforia;

Meu tempo de mocidade,

Tempo de sonho e poesia.

Eu morava na Lagoinha,

E, para o Colégio Arnaldo,

A pé, ou de bonde, vinha

Com meu colega Adroaldo.

Lembranças em relicário

Comovem-me o coração.

Eu terminara o “primário”

No bom “Silviano Brandão”.

A rua onde eu residia,

Romântica e sossegada,

Tinha violão, cantoria

E uma valsa apaixonada... (1991, p. 28) (...)

Tempos depois, em quarenta,

A Capital, nos quadrantes,

Formigava, suculenta,

Duzentos mil habitantes.

Eu namorava e estudava;

Bem cedo, o sol renascia;

De juventude gorgeava,

Tinha sonhos noite e dia.

Aos domingos, ia à missa

Na Igreja de São José.

Em Deus, minha alma submissa

Já devota, tinha fé. (1991, p. 29)

Luci, Odila e Negrinha,

Raquel e outras malmequeres...

Não deveria ser minha

Nenhuma dessas mulheres...

Pois, outro era o meu destino,

De casar-me com a Lilia,

A qual, em vôo repentino,

Deu seu lugar à Maria.

Belo Horizonte, hoje enorme,

É metrópole a fulgir:

Ama; trabalha; não dorme,

Sempre em busca do Porvir. (1991, p. 30)

Ainda, interessante, que vale aqui indagar, por que Belo Horizonte foi lembrada no final da vida do poeta? De que maneira a Capital marcou parte da infância no Grupo Escolar Silviano Brandão, momentos da juventude no Colégio Arnaldo e sua vida de estudos e paqueras?

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