Para que serve a literatura?

(Fragmento do meu Trabalho de Conclusão de Curso - Letras)

Desde os primeiros tempos em que o homem começou a estudar a arte literária, o questionamento sobre natureza e função da literatura tem sido assunto de muitas controvérsias. Os filósofos do mundo antigo se dedicavam ao estudo do tema, o que se pode verificar nos escritos de Platão, para quem toda a criação, até mesmo a criação divina era uma imitação da natureza verdadeira - o mundo das idéias. Sendo assim, a representação artística do mundo criado por Deus, o mundo físico, seria mímesis, ou seja, imitação. Analisando o conceito platônico de mímesis, Samuel (1999, p. 57)* escreve:

Baseando seu sistema na existência das idéias universais e permanentes, por oposição às realidades singulares e transitórias, Platão aceita no Crátilo a mímesis como uma necessidade humana de manifestar a realidade por imagens, além de ter um valor gnoseológico, ou seja, pela mímesis se chega ao conhecimento das idéias presentes nas coisas. Mas já na República, quando se trata de mímesis na arte, considera que na realidade, o poeta, bem como o pintor e o escultor, faz uma imitação em terceiro grau, portanto afastado três degraus da verdade.

Relacionada à mímesis está a catarse, termo usado por Aristóteles no sentido de purgação, purificação das emoções. Largamente explorado em todos os tempos, o conceito aristotélico de catarse, fenômeno ligado ao leitor, deu margem a diferentes interpretações. No Renascimento, época em que o questionamento antropocêntrico se opunha ao teocentrismo da Idade Média, a literatura desempenhou importante papel, causando abalo moral e religioso, trazendo ao homem inquietação e angústia. Daí surgiu a interpretação de que, segundo Samuel (1999, p. 60) a catarse “purificaria o homem das paixões que fossem obstáculo a uma vida virtuosa, redundando numa vida alimentada pela caridade cristã. Desta maneira, ficaria reduzida a catársis a uma mera lição de moral”.

Segundo a interpretação racionalista, elaborada de acordo com as idéias iluministas, o homem seria conduzido a uma vida iluminada pela razão, ao ser operada nele a catarse que eliminaria os excessos viciosos provocados pelas paixões. Assim, os tormentos alheios proporcionariam ao leitor um alívio dos próprios temores. Não só o leitor se beneficiaria desse alívio, mas também o escritor, que é o primeiro a descarregar suas emoções nas construções poéticas. Cabe aqui questionar se haveria realmente um alívio ou, pelo contrário, as emoções seriam ainda mais instigadas. Wellek & Warren (1976, p. 41) entendem que as emoções representadas na literatura não são, “nem em relação ao escritor, nem em relação ao leitor, iguais às experimentadas na “vida real”; são emoções “recordadas com tranqüilidade”, são “expressadas” – isto é, libertadas – pela análise; são “sentimentos” de emoções, percepções de emoções”.

No decurso da história surgiram outras concepções sobre a natureza e a função da literatura. A arte pela arte, no final do século XIX, concebia a literatura não como veículo de princípios "superiores" ou "maiores", mas sem finalidade moral ou social. Buscando respaldo na concepção do filósofo Horácio, definia-se literatura, especialmente a poesia, como atividade doce e útil. Doce aqui equivalente a não imposto pelo dever, e útil, a não perda de tempo. Analisando esta concepção da função da literatura, Wellek & Warren (1976, p. 33) argumentam que:

Quando uma obra literária exerce com êxito a sua função, os dois factores referidos – prazer e utilidade - devem não só coexistir, mas fundir-se. Queremos sublinhar que o prazer da literatura não é apenas uma preferência de entre uma lista de prazeres possíveis, mas sim um “prazer mais alto”, exatamente por se tratar de um prazer numa superior esfera de atividade, isto é, na contemplação não aquisitiva. E acentuamos, por outro lado, que a utilidade - a seriedade e o poder de instrução - da literatura é uma seriedade aprazível, isto é, não uma seriedade de um dever que tem de ser cumprido ou de uma lição que tem de ser aprendida, mas uma seriedade estética, uma seriedade de percepção.

A literatura pode ser também um instrumento ideológico, um meio de convencer o leitor a aceitar os arranjos hierárquicos da sociedade. Em contrapartida, a literatura oferece meios para anular seus possíveis efeitos nocivos ao leitor, já que ela também seria um lugar onde a ideologia é exposta, e uma vez visualizada, torna possível ao leitor exercer a criticidade e a tomada de posição. Ela também pode encorajar a reflexão solitária, impedindo a interação social, o que promove o distanciamento do mundo, a passividade e aceitação do sistema vigente.

Retomando o passado histórico dos estudos literários e a visão dos filósofos em relação às funções da literatura, Curell (1999 p. 45) analisa e emite um parecer:

Platão baniu os poetas de sua república ideal porque eles só poderiam fazer mal, e há muito tempo se credita aos romances deixar as pessoas insatisfeitas com as vidas que herdam e ansiosas por algo novo – quer seja a vida nas grandes cidades ou uma aventura amorosa ou a revolução. Promovendo identificação através das divisões de classe, gênero, raça, nação e idade, os livros podem promover um “sentimento de camaradagem” que desencoraja a luta; mas também podem produzir um senso agudo de injustiça que torna possíveis as lutas progressistas.

As obras literárias em geral, por lidarem com a palavra, portanto comunicarem experiências dos seres humanos, seus sentimentos, conflitos e decisões, exercem naturalmente uma função ideológica. Elas manifestam idéias e concepções de uma sociedade, e exprimem valores morais, sociais e políticos, mesmo que não tenham por objetivo alcançar tal fim.

O discurso literário tem como meta a comunicação intensa, portanto, o papel da língua neste processo é fundamental, mesmo que representando apenas um dos planos da obra literária. É a língua que projeta o enredo, os personagens, os relacionamentos e os conflitos de valores. Sobre a função renovadora da literatura, Rosenfeld (1976 p. 54) afirma:

Uma das funções fundamentais da literatura contemporânea é, portanto, a renovação da linguagem, das próprias palavras e dos seus contextos, para libertá-los dos clichês e mistificações que carregam consigo através de décadas, na medida em que se tornam conchas esvaziadas da vida que antigamente talvez tenham abrigado.

Pelos estudos até aqui realizados, pode-se afirmar que não convém limitar o papel da literatura, mas admitir sua diversidade de funções ou propósitos. Além da função anteriormente referida (renovação da linguagem), uma obra literária pode possuir, ao mesmo tempo, a função catártica (purificação de sentimentos), a função lúdica (provocar prazer), a função estética (arte da palavra e expressão do belo), e a função pragmática (pregação de uma ideologia).

Cada período histórico produz sua literatura com uma marca particular, seja pelas técnicas de produção, ou seus modos de recepção e, sobretudo sua definição enquanto prática social e atividade humana. A literatura contemporânea, que recentemente encontrou seu lugar na mídia eletrônica, pode ser compreendida como a literatura dinâmica, em constante renovação, aglutinando novas formas, novos valores, podendo assim ser contemplada no futuro com outras funções antes não verificadas. Nunca na história a relação entre literatura, autor e leitor alcançou o nível em que hoje se configura, com o advento da internet. A influência do modo de vida da sociedade pós-moderna imprime nas artes suas características inconfundíveis.

dhu alves
Enviado por dhu alves em 06/04/2012
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