Algumas pistas para escrever mistérios
(Maristela Scheuer Deves)
Embora tenham por muito tempo sido tratados como subliteratura ou como um gênero menor, os livros policiais ultrapassaram esse preconceito e garantiram seu lugar entre os mais vendidos no mundo todo. Mesmo abominando o crime na vida real, o ser humano encontra prazer em ler obras que mostram assassinatos e outros delitos, bem como o esforço de alguém (policial, detetive particular ou mesmo uma pessoa comum) para solucioná-lo.
O que atrai o leitor para o livro policial, no entanto, não é somente essa luta entre o bem (representado pelo detetive) e o mal (representado pelo assassino), e sim a forma como essa batalha é narrada. O suspense é fundamental nesse gênero literário e é ele que vai prender o leitor da primeira à última página, sem conseguir dormir antes de saber o final.
Mas como esse suspense é construído? O que fazer para prender a atenção do leitor dessa forma? Embora não existam receitas prontas ou garantidas para escrever um romance policial que prenderá o leitor, vários escritores e estudiosos já tentaram estabelecer regras básicas para quem quer se aventurar no gênero. François Fosca, citado por Paulo de Medeiros e Albuquerque na obra O mundo emocionante do romance policial (Francisco Alves Editora, 1979), listou seis delas, que teriam sido aplicadas pelo escritor Edgar Allan Poe, o pai do romance policial:
- O caso apresentado é um mistério aparentemente inexplicável.
- Uma personagem, ou várias, simultânea e sucessivamente, é considerada erradamente culpada porque os indícios superficiais parecem indicá-lo.
- Minuciosa observação dos fatos, materiais e psicológicos, após o depoimento das testemunhas e, acima de tudo, um rigoroso método de raciocínio triunfam sobre as teorias apriorísticas e apressadas; o analista não adivinha, ele raciocina e observa.
- A solução que concorda perfeitamente com os fatos é totalmente imprevista.
- Quanto mais um caso parece extraordinário, tanto ele é mais fácil de resolver.
- Eliminadas todas as impossibilidades, o que resta, se bem que incrível à primeira vista, é a solução justa.
Outro autor que publicou um conjunto de regras para se escrever mistério foi Willard Huntington Wright, mais conhecido como S. S. Van Dine. Para Albuquerque, "algumas dessas regras são válidas; outras, positivamente acacianas; e algumas até mesmo ridículas". Mesmo assim, vale citar a introdução a elas escrita por Van Dine e reproduzida por Albuquerque:
"A história policial é uma espécie de torneio intelectual. Mais do que isso, é um torneio esportivo. E o autor tem de comportar-se corretamente com o leitor. Não pode recorrer a truques e escamoteações sem comprometer a sua sinceridade, assim como não pode usar tapeação num jogo de cartas. Tem de superar intelectualmente o leitor e prender o interesse do mesmo usando seu engenho. Existem leis definidas na feitura de entrechos policias; leis que não foram escritas, talvez, mas ainda assim imperativas, e todo autor de mistérios literários atende a essas leis."
A seguir ele lista 20 leis para o gênero, que, segundo ele, seriam baseadas na prática dos grandes autores. Entre elas, as que se destacam são que o leitor deve ter a mesma oportunidade do detetive, com todas as pistas claramente descritas, e que o culpado deve ser encontrado por meio de deduções lógicas e não por confissão, coincidência ou acidente. Ele também condena as soluções não naturais, como reuniões espiritualistas ou dispositivos fictícios, como o assassinato da vítima por um veneno desconhecido, ou a imputação do crime a um criminoso profissional, a exemplo de um assaltante.
Um dos conselhos que mais se aproxima do ideal e que resume inúmeras outras regras talvez seja esse de Nardejac: "é necessário que os enigmas propostos ao detetive sejam, ao mesmo tempo, verdadeiras provas. As situações dramáticas deverão, por conseguinte, ser numerosas e bem conduzidas".
Uma outra regra não-oficial mas praticamente institucionalizada entre quem escreve mistério é que o crime em torno do qual se desenvolve a trama deve ser algo com o qual as pessoas se importem, usualmente um homicídio. Ou, como disse Van Dine:
"É necessário que haja um cadáver na novela de detetives, e quanto mais defunto esse cadáver, melhor. Afinal, o trabalho que tem o leitor precisa ser recompensado. Os leitores são criaturas humanas e, portanto, um assassinato desperta neles o sentimento de vingança e horror. Desejam levar o assassino à justiça, e com isso se inicia a perseguição com todo o entusiasmo."
Uma vez cometido o crime, seja ele assassinato ou não, entra em cena outro elemento imprescindível, o detetive. Nesse ponto, deverá ser tomada uma das primeiras decisões importantes do escritor de mistério: quem será o seu detetive. Um policial? Um detetive profissional? Um semi-profissional, como um advogado ou um jornalista? Ou um outro personagem qualquer, uma pessoa comum que irá se confrontar com o crime e tentará resolvê-lo?
Cada um tem suas vantagens, entretanto a opção por um investigador que não é profissional tem para o eleitor um atrativo a mais, parecer-se com ele. Prova disso é o sucesso de um dos personagens criados pela Rainha do Mistério, Agatha Christie: sua inesquecível Miss Marple é uma solteirona que mora numa cidade pequena e que sempre acaba solucionando crimes e enigmas complicados.
Outro fator a ser considerado na escolha do detive ideal para a história é o público para o qual se escreve. Se em uma obra voltada a adultos a identificação com o protagonista já exerce papel importante na hora de cativar o leitor, isso é ainda mais verdadeiro quando se trata do leitor jovem. Afinal, qual o adolescente que não gosta de ler sobre outros jovens da sua idade envolvidos em aventuras, investigando crimes e solucionando mistérios?
Tão importantes quanto o detetive, talvez, são os suspeitos. Eles são todos que podem ter um motivo para cometer o crime, seja esse motivo financeiro, passional ou outro qualquer. Com o desenvolvimento da trama e o surgimento de pistas, novos suspeitos vão sendo acrescentados, enquanto outros saem dessa condição.
No livro Prelúdio para matar, considerado sua obra-prima, a escritora britânica Ngaio Marsh usa esse recurso com maestria. Detetives e leitores desconfiam ora de um, ora de outro personagem. A vítima é uma pessoa, mas acredita-se que o alvo poderia ter sido outra; como alguns envolvidos no caso teriam motivo para matar uma delas e outros, para matar a outra, cria-se um clima de tensão, que aumenta a curiosidade do leitor para saber quem foi, afinal, o perpetrador do assassinato. Essa curiosidade, que faz o leitor virar páginas e mais páginas sem conseguir para de ler, é um sinônimo do procurado suspense.
Para fazer o leitor desconfiar de um ou de outro personagem e mantê-lo preso ao livro até o final, é preciso fazer uso de pistas. Essas pistas não são apenas elementos concretos, como objetos deixados no local do crime ou pegadas ao lado do corpo da vítima. Podem ser palavras, diálogos, situações. São elas que vão guiar o trabalho do detetive, e também o do leitor, que estará concorrendo com esse detetive (e com o autor) para tentar descobrir o culpado antes da última página.
As pistas podem ser verdadeiras ou falsas (red herrings). Essas pistas falsas podem ser plantadas pelo próprio criminoso ou por algum outro personagem que tenha algo a esconder, ou ainda serem fatos que, mesmo parecendo suspeitos, nada têm a ver com o crime. Isso fará o detetive (e o leitor) ir por determinado tempo para o lado errado, suspeitando de alguém que não tem nada a ver com o crime, até outra pista levá-lo de volta ao rumo certo.
Da mesma forma, algumas pistas devem estar totalmente visíveis para os leitores e para o investigador que é o protagonista da trama, enquanto outras devem estar escondidas em meio a outros fatos ou objetos. O importante, destacam estudiosos e escritores do gênero, é jogar limpo com os leitores, proporcionando a eles as mesmas informações a que o detetive da história tem acesso (embora alguns escritores, como Agatha Christie, por vezes escondam pistas que só são reveladas no final).
Outra visão defendida por vários autores é que o desenlace da história deverá se dar a partir das pistas. O autor não deve recorrer a uma saída fácil que se apresenta miraculosamente para solucionar o mistério. Se a solução não vier através das pistas e do trabalho intelectual do detetive, o leitor se sentirá traído, enganado. Como disse Van Dine: "O culpado deve ser encontrado mediante deduções lógicas e não por acidente, coincidência ou confissão. Solucionar um problema criminal desse modo é como mandar o leitor numa empreitada inútil".
É novamente o conceito de jogar limpo com os leitores, que, dessa forma, têm as mesmas condições do investigador ficcional de descobrir o culpado a partir das pistas que vão sendo apresentadas. Voltando à orientação de Van Dine reproduzida por Albuquerque:
"A verdade do problema deve estar à vista, em todos os momentos – desde que o leitor seja arguto o bastante para percebê-la. Com isso quero dizer que se o leitor, depois de tomar conhecimento da explicação para o crime, voltar a ler o livro, perceberá que a solução de certo modo estivera bem clara, que as pistas realmente indicavam o culpado. E que, se tivesse sido tão perspicaz quanto o detetive, poderia ele próprio ter solucionado o mistério antes do último capítulo. Se a história de detetive for legitimamente construída, será impossível manter a solução afastada de todos os leitores antes das páginas finais. Existirá, de modo inevitável, certo número de leitores tão argutos quanto o autor, que poderão, mediante análise, eliminação e raciocínio lógico, indicar o culpado assim que o detetive o fizer. E aí temos o sabor do torneio."
Paralelamente às pistas, outro elemento é necessário para fazer o leitor desconfiar de um ou de outro personagem e, principalmente, para mantê-lo interessado na história: pontos de virada no decorrer da trama. Como foi dito anteriormente, se o detetive seguir sempre em uma direção, o livro terminará (ou perderá a graça) logo nos primeiros capítulos.
Para que ocorra essa virada, um ponto é básico: fazer algo acontecer. Esse fato novo pode ser um outro crime (talvez até mesmo do suspeito), uma nova pista que aponta para uma direção totalmente nova, etc. Outra tática consagrada e usada pela maioria dos autores de romances policiais é encerrar os capítulos com um algo novo, uma informação instigante que fará o leitor começar o capítulo seguinte imediatamente para saber o que vai acontecer.
A leitura, no entanto, não pode ser uma contínua tensão. É preciso saber dosar os picos de suspense com momentos em que o clima é aliviado. Isso pode ser feito por meio de tramas paralelas, mostrando outras partes da vida do detetive-protagonista: trabalho, namoro ou até mesmo problemas comuns, como um vizinho chato.
Além de todos esses elementos inerentes à história, tão essencial quanto ter uma boa trama para contar é como ela é contada. A escolha da palavra exata é importantíssima para garantir o efeito desejado, ensina Francine Prose em Para ler como um escritor (tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, Jorge Zahar Editor). Por isso, vale reler o texto com atenção, pesando palavras, frases e até mesmo capítulos enquanto se pergunta: era isso mesmo que eu queria dizer? Teria outra palavra, outro verbo, outro adjetivo que poderia exprimir melhor esse momento da trama?
Da mesma forma, detalhes por vezes considerados insignificantes podem ser tornar muito importantes para dar verossimilhança e credibilidade à história. "São os detalhes que nos convencem de que alguém está falando a verdade – todo bom mentiroso sabe disso (...) E que alívio é quando um detalhe nos assegura que um escritor está no controle e não caçoa de nós", diz Prose. Ela cita, para ilustrar, pequenos pontos que tornam mais crível a situação de Gregor Samsa em Metamorfose, de Franz Kafka: uma gravura na parede, roupa espalhada pelo quarto, etc. Acreditando nessas pequenas insignificâncias, salienta, passa-se a também "acreditar" na transformação de Samsa em inseto. Vale lembrar que, no romance policial, é ainda mais importante essa confiança do leitor no autor, essa sensação de "poderia ser verdade".
Para finalizar, uma dica sempre citada em oficinas literárias e que talvez resuma tudo o mais que foi dito aqui: ao sentar-se para escrever seu conto ou romance de mistério, pense no que você gostaria de ler. Recorde seus autores prediletos no gênero, tanto os que são considerados mestres quanto outros menos conhecidos mas que o agradam, e tente precisar o que exatamente torna seus textos interessantes, bem escritos e repletos de suspense. Você terá, então, tudo o que é preciso para dar início à sua história de mistério. O resto só depende de você...
(Maristela Scheuer Deves é jornalista e escritora, autora do romance policial 'A Culpa é dos Teus Pais' e do infanto-juvenil de mistério 'O Caso do Buraco')